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A trama da violência carioca, formada por policiais, milicianos, traficantes e inocentes, é costurada pela lógica militarizada da beligerância, tendo como resultado índices de letalidade superiores a países em guerra

As Forças Armadas participam em operação conjunta com a Polícia Federal e as polícias estaduais na comunidade do Jacarezinho. Foto: Tânia Rêgo/ABr

“Guerra ao crime” parte do princípio de que criminosos são inimigos que devem ser executados. Jacarezinho, foto de Tânia Rêgo/ABr

Há quase meio século no Rio de Janeiro confrontos armados em áreas dominadas por traficantes são designados de “guerra”. Grupos ligados a diferentes comandos travam disputas infindáveis pelo domínio territorial e pela posse de armas para garantir um próspero negócio ilegal. Os confrontos armados entre traficantes, policiais e milicianos variam em intensidade conforme a política de segurança de diferentes governos, mas permanecem como uma política institucional. A inalterada política bélica de segurança carioca constitui a teia de ações que produz e reproduz a espiral da violência que elimina principalmente jovens negros em escala industrial. Na fúnebre trama marcial, banalizada pela torpe recorrência, morrem em linha de montagem jovens “soldados” integrantes de facções, policiais e moradores sem nenhuma relação com o negócio das drogas e tampouco com a “guerra”.

Não são poucas as autoridades dentre governadores, presidentes, comandantes de batalhões e chefes de polícia que irresponsavelmente reforçam discurso marcial ao denominar de “guerra” os conflitos armados que ocorrem sobretudo em favelas densamente populosas. Associar o termo guerra à política de segurança destinada a cidadãos não é uma retórica que se esfumaça no ar. Palavras têm peso, constituem a realidade, o emprego ad nauseam do termo “guerra” estimula o conflito com arsenal bélico, provoca desconfiança e temor, entra em colisão com a ideia de segurança pública da Constituição de 1988, com a atividade policial, como força comedida, que não contradiz direitos humanos, mas os protege, contribuindo com a coesão social.

Assim como a violência, a guerra pode assumir diversos sentidos, diferentes facetas, mas se não houver um empenho em defini-la, não será possível estabelecer uma política de segurança, não se compreenderá o objetivo a ser alcançado, não se saberá que tipos de ações e meios devem ser empregados, quem exatamente dever ser neutralizado. O famoso fundamento do Estado moderno, propugnado por Thomas Hobbes: Salus Populi!, corresponde à segurança da vida e bens dos cidadãos, a segurança pública representa um bem comum traduzido na proteção da vida de cada cidadão que integra o corpo político estatal como membro e tem direito à viver livre do “medo da morte violenta”. Hobbes, ao contrário do usualmente afirmado, lançou as sementes da democracia liberal ao defender o direito à vida, incolumidade física e patrimonial. O filósofo de Malmsbury, considerado o precursor do Estado moderno, buscou eliminar a inimizade do interior do corpo estatal, projetando-a para o exterior. Dentro do corpo político não existiria mais a guerra de todos contra todos, mas apenas proteção em troca de obediência. Inimizade somente poderia existir fora dos limites territoriais estatais, entre Estados, mas jamais no interior de cada Estado onde só poderia reinar a tranquilidade, a segurança e a ordem. A guerra era afastada das vísceras do corpo político e só poderia existir entre unidades estatais, de modo que a guerra intra-estatal, fratricida, representaria a própria dissolução do Estado.

Se autoridades empregam o termo guerra sem uma definição clara, porém, acessam seu sentido mais usual que pressupõe a mobilização de todos os recursos disponíveis pelo Estado para eliminar seu “inimigo”. Fazer a guerra tem elevado custo social, político e econômico, jurídico e diversas implicações: destruir o inimigo, reconquistar o território e estabelecer um acordo de “paz”. Só há a possibilidade de celebrar a “paz” com um inimigo, não com um criminoso, pois àquele é atribuído o status de um agrupamento humano capaz de certa autodeterminação e capacidade de negociação. A guerra convencional carrega o sentido de certo equilíbrio entre os adversários em conflito e essa relação reflete uma simetria capaz de possibilitar a limitação recíproca da intensidade da violência física entre combatentes. O uso do termo guerra sem maiores explicações traduz o sentido da guerra convencional que pressupõe objetivos políticos, mobilização de todo ou parte do aparato bélico, cálculo das capacidades e oportunidades, e possibilidade de negociar a “paz” com o “inimigo”.  Salta aos olhos a confusão entre crime e guerra! Indica precipitação, desespero e déficit conceitual para designar a tragédia que vem ceifando vidas em escalas que superam países que de fato se encontram em guerra a exemplo da Síria. O mais grave é que o uso equivocado do termo guerra por autoridades e representantes das mídias tradicionais revela a ignorância com relação às consequências que podem advir da mobilização do aparato bélico – monopolizado pelo Estado – para combater criminosos. A confusão entre crime e guerra leva à distorção do papel constitucional das forças armadas que, ao contrário das polícias, não são agentes de segurança e tampouco têm o preparo necessário para neutralizar criminosos no interior de comunidades com vielas e construções labirínticas habitadas por uma maioria de trabalhadores que nada têm a ver com a criminalidade. O plano de segurança dirigido ao combate do “inimigo” carece de inteligência, investigação, prevenção, resulta nas medidas imediatas de confrontos que expõe drasticamente a vida de polícias militares e civis, inocentes e criminosos que precisam ser submetidos à lei, não a assassinatos extrajudiciais. O discurso marcial leva ao uso frequente das forças armadas no Rio em atividades de segurança pública, o que resulta no desvio de sua finalidade precípua que a defesa da pátria. Resulta na incapacidade e no desinteresse de enfrentar as causas da violência, relegando as noções de defesa e segurança, guerra e crime, polícia e força armadas a uma zona de nebulosa, muito perigosa.

O aumento da intensidade dos confrontos armados no Rio, percebido em razão e extensão da letalidade das armas, do número exacerbado de mortes, inclusive de policiais, não justifica que autoridades responsáveis pela segurança designem conflitos armados de guerra. Enquanto uma organização criminosa age com propósito de cometer crimes para obtenção direta ou indireta de fins econômicos, a guerra, independentemente de ser interestatal, civil, simétrica, assimétrica, regular ou irregular, carece de objetivos políticos. A violência das facções cariocas produz efeitos políticos, mas elas não têm objetivos políticos, não lutam contra o Estado, contra o governo ou a ordem jurídica, ao contrário, seu interesse é se aproveitar de um Estado fraco e corrupto. Sua intenção não é subverter a ordem, mas corrompê-la e praticar crimes para aumentar cada vez mais seus lucros.  Se objetivo político da guerra, ao menos em democracias, se relaciona com a responsabilidade da autoridade governante sobre a vida de uma coletividade, o interesse econômico é regido por interesses privados. A desarticulação das redes capilares do crime organizado, resiliente e maleável, depende inicialmente de compreensão que seja capaz de estabelecer distinções básicas a fim de criar uma política de segurança alicerçada principalmente na inteligência. Não estamos diante de uma guerra convencional: o monopólio da força estatal vem sendo progressivamente questionado e minado, se dirigirmos o olhar para a situação dos presídios perceberemos que o Estado não consegue controlar as rebeliões e articulações de quadrilhas criminosas a partir das quais também se organizam os empreendimentos comerciais ilegais. O monopólio da coerção legítima do Estado não vem apenas sendo colocado em xeque por meio da entrada de armas e drogas pelas fronteiras nacionais, mas também a partir do interior dos presídios e as empresas de segurança privada. É necessário represar o referencial conceitual para aprimorar uma política de segurança que vem pondo em risco a vida de policiais e civis.

Certo é que organizações criminosas não têm nenhum interesse em proteger a vida de uma coletividade e muito menos garantir o interesse comum, como é o caso de uma associação política comprometida com segurança pública. Organizações criminosas visam o lucro, protegem interesses particulares e são capazes de usar da violência desmedida para garantir seus ganhos ilícitos. Quando governos declaram guerra ao crime, eliminam sistematicamente membros de sua população, provocam temor, insegurança e desconfiança, e terminam por correr o risco de perder seu status político e se converter em uma organização criminosa.

Há muitas controvérsias e várias confusões semânticas no debate sobre a segurança pública ou cidadã. Na última versão, o foco na segurança como direito do cidadão termina por criticar qualquer ação repressiva das polícias no Brasil, especialmente a Polícia Militar (PM), apontando para suas supostamente seculares vinculações com o Exército Nacional que, aliás, só foi criado na República. Ora, onde haveria polícias não repressivas? Nem na Grã-Bretanha onde o policial, que não usa armas, mas tem vários meios de comunicação com colegas e centrais, é chamado de bobby em homenagem a Robert Peel, que propôs a criação de uma força policial para enfrentar a alta criminalidade do início do século 19. Essa postura generalizou o enfoque negativo a qualquer forma de controle ou punição, venha de que autoridade for, mas que se aplica especialmente aos agentes da segurança pública. Poucos deles, em poucas situações são vistos como protetores dos cidadãos. Por quê?

As poucas mudanças já feitas nas organizações não mudaram, ainda há desvalorização das técnicas investigativas e da inteligência nas carreiras profissionais dos policiais militares em cada estado da federação. As armas que a polícia usa para matar, e continua a matar muito, ainda não são suficientemente vigiadas. A corrupção policial no Brasil continua altíssima, sem que se instituam formas eficientes de controle democrático. Policiais civis e militares continuam cumprindo um esquema de plantão que lhes permite complementar os baixos salários com o “bico” em segurança privada, alguns em empresas montadas por outros policiais mais graduados, outros em empresas informais sem o controle da Polícia Federal, outros até mesmo em milícias. A indicação política continua valendo mais do que os critérios internos de promoção na carreira, quando esta existe. Isso tudo aumenta a ineficiência policial que eleva ainda mais a sensação de insegurança e o medo dos cidadãos. Essas questões afetam tanto a polícia militar quanto a civil, o que nos leva a questionar a ideia de que a desmilitarização iria resolver o problema das nossas polícias.

Basta pensarmos que, se toda polícia é repressiva nem toda polícia é bélica, no sentido de promover uma guerra contra o que, pelo estereótipo cultivado do que é o crime perigoso e quem é o bandido, aponta para o que deve ser destruído. Pois fazer guerra implica a existência de inimigos, não de criminosos. Inimigos têm finalidade política, revolucionária, emancipatória, lutam pela existência coletiva, independência de um povo. Com inimigos se trava guerra, a possibilidade de destruição recíproca é reconhecida e por isso exclui-se a ilicitude da ação violenta em razão da existência do reconhecimento de objetivos políticos mútuos nos antagonismos existenciais entre as partes envolvidas. Em operações policias, por sua vez, o terreno de incertezas é, em geral, menor do que na guerra, pois a regulação das atividades policiais é mais severa, as assimetrias entre os adversários são maiores, estão previstas regras de engajamento mais rígidas, investigações, decisões e mandados judiciais. Somente há possibilidade de agir em legítima defesa proporcional à injusta agressão sofrida levando-se em consideração o contexto da situação e do local que muitas vezes é densamente populoso com muitos moradores que nenhuma relação tem com a criminalidade. 

Nos anos 1970, durante o regime militar, criminosos percebem que assaltar bancos era muito arriscado e o tráfico de drogas, mais fácil e lucrativo. A PM, já então encarregada do policiamento e da repressão, agia em favelas e conjuntos habitacionais com métodos usuais na época para coagir traficantes então independentes. Começara a dialética corrupção/ manutenção do negócio/ abuso da força policial/ violação de direitos. Nos anos 1980, instalaram a lógica da guerra entre eles, reforçada pela rivalidade mortal entre os comandos de traficantes, visto que os comandos, criados inicialmente na prisão para defender os direitos dos presos comuns, haviam se interessado pela lucrativa atividade como forma de financiar a organização. Certa corrida armamentista para dissuadir os comandos rivais de invadir as favelas controladas por essas organizações exigiu a compra de cada vez mais modernas e letais armas de fogo, assim como o treinamento de mais e mais jovens favelados para as atividades guerreiras.

Dados da pesquisa de vitimização feita no Rio de Janeiro em 2006 mostraram que, nas áreas sob o controle de traficantes, a morte por arma de fogo é de duas a quatro vezes superior à de outras áreas da cidade, o que aumenta o risco de morrer assassinado para homens jovens pobres. Não se pode, pois, exigir que o estado abra mão do monopólio legítimo da violência, ou seja, que policiais abram mão de portar armas quando cumprem o dever do Estado de prover segurança a seus cidadãos. Mas se pode, sim, exigir que policiais armados só façam incursões fortemente armados para cumprir mandados de prisão judiciais ou para revistar residências durante investigações sobre depósito de armas quando devidamente autorizados pela autoridade competente. Não se pode admitir, por exemplo, que traficantes ou milicianos impeçam o ir e vir de moradores, que inclui a ida a escolas e postos de saúde, que expulsem moradores de suas casas, que cobrem taxas para que montem seus pequenos negócios, ou que matem quem os desagrada ou ameaça o negócio deles. Ocorre que a polícia tem se mostrado despreparada, não consegue agir fora da lógica bélica que distorce suas funções comedidas, vinculada à proteção de todos os cidadãos sem distinção. O arsenal de guerra que algumas facções detêm não justifica abrir mão das atividades policiais de inteligência, investigação e prevenção. A estratégia da guerra ao crime, às drogas só alimenta e contribui manutenção do comércio ilegal de drogas, armas e o morticínio que vitima toda a sociedade civil, sobretudo os mais pobres que pagam com as próprias vidas o preço de uma concepção bélica de segurança pública.

A reforma policial precisa acontecer para que os cidadãos deixem de se sentir inseguros por causa da ineficiência, corrupção e violência nas polícias estaduais e na federal, apesar dos esforços já feitos para minorá-las.

Operação Exceptis no Jacarezinho

Com base no modelo falido de Segurança de Pública de “guerra ao crime”, parte do princípio de que criminosos são inimigos que devem ser executados, mesmo que isso não implique em redução da criminalidade. A recente incursão no Jacarezinho, batizada de Operação Exceptis, não seria diferente não fossem algumas circunstâncias que precisam ser iluminadas. 

A brutalidade desmedida, que resultou em 28 mortes, dentre elas a de policial civil André, alçou a incursão à ação policial de maior letalidade na história do estado. A maioria dos mortos não estava entre os destinatários dos mandados de prisão que fundamentaram a operação. Mas a surpresa maior reside em um detalhe: o momento da operação, deflagrada no dia seguinte à visita de Bolsonaro ao recém-empossado governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro. Haveria alguma conexão entre a visita do presidente e a incursão policial?

Bolsonaro trava uma batalha com as instituições democráticas, em particular o Supremo Tribunal Federal. A tensão hostil entre o Executivo e o Judiciário foi catalisada pela Covid-19, em razão de o STF ter restringido as operações policiais nas comunidades. A corte impôs um freio às diligências da polícia para abrandar a crise sanitária em bairros pobres, superpopulosos, sem infraestrutura, onde faltam água e energia elétrica. O STF pôs em xeque o principal modus operandi de uma das principais bases de apoio de Bolsonaro.

O mesmo STF proferiu decisão em abril do ano passado pela competência de governadores e prefeitos para adotarem medidas de enfrentamento da crise sanitária. Essa foi uma das decisões que mais afetou o presidente, pois fez Bolsonaro perder a liderança da gestão da pandemia e viu sua “política” de imunidade de rebanho ir por água abaixo. Aqui está uma das razões que leva Bolsonaro a ameaçar continuamente os poderes constitucionais, ora defendendo o estado de exceção, como é o caso do estado de sítio; ora proferindo impropérios como “se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter eleição”.

A decisão do STF conseguiu de uma só vez abalar o presidente, sua base eleitoral policial e a “política de segurança” que elimina sistematicamente policiais, criminosos e inocentes. É preocupante pensar que na situação atual do Rio, o enfraquecimento do comando do tráfico abre caminho para a expansão da milícia com quem o presidente e seu clã têm antigos laços sombrios. Não esqueçamos que no palco do Rio, atores como traficantes e milicianos controlam territórios abandonados pelo Estado onde há milhares de eleitores que podem decidir uma eleição. A aliança entre presidente e governador e a operação policial estão no curso de ações estratégicas voltadas à reeleição de Jair Bolsonaro e seu aliado recém-empossado. Pressionado pela opinião pública, bem como por parte da classe política, a manobra do presidente visou retirar a CPI da Covid do centro das atenções e jogar uma cortina de fumaça sobre os depoimentos que, até aqui, expõem falhas do governo na condução do combate à pandemia.

Por que se continua a insistir na irracionalidade de uma “política de segurança” em que sai perdendo toda a sociedade? Por que autoridades que se dizem terrivelmente cristãs instituem a pena de morte ao arrepio da lei e do próprio cristianismo? Por que tantas pessoas silenciam diante da hecatombe de um governante que se comprometeu com a morte das mais “vulneráveis”? É certo que a Operação Exceptis nada tinha de excepcional senão o fato de seguir a concepção bélica de segurança pública e uma estratégia de afrontar a Corte, agradar a base eleitoral com o modelo falido de guerra ao crime e deslocar o foco da “política sanitária” de rebanho do presidente. Mirando em 2022, o presidente segue sua sombria cruzada contra a vida, sobretudo dos mais vulneráveis.

A política bélica de segurança pressupõe a militarização da administração da violência, se traduz na solução dos conflitos violentos pelo uso exclusivo desmedido da força, o que resulta na exposição das partes envolvidas a constantes confrontos armados, mortes e traumas físicos e psicológicos. A trama da violência urbana carioca, formada por policiais, milicianos, traficantes e inocentes, é costurada pela insistência na lógica militarizada da beligerância cujo resultado são recorrentes índices de letalidade superiores a países em guerra. Por que a concepção marcial de segurança pública que provoca a produção industrial da letalidade, com massivos custos orçamentários, perdas humanas e sofrimento irreversíveis, continua a ser implementada?  

Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco é professor do IESP/UERJ e coordenador do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (Lepdesp)

 Lier Pires Ferreira é professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e do CP2 e pesquisador do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (Lepdesp)