Política

O sonho da consolidação da vida democrática e de relações políticas civilizadas foi pouco a pouco bombardeado por forças políticas que passaram a se rebelar contra resultados eleitorais

 A polarização nasceu da disputa, em especial eleitoral, no período pós-ditadura civil-militar e se consolidou entre 1994 e 2014. Foto: Eugênio Moraes/Folhapress

O tema da polarização política frequenta a atual opinião pública brasileira, ou melhor a opinião publicizada no país, dominada pela grande mídia. Para ela e para alguns sujeitos políticos, a polarização deve ser tomada como algo maldito. Ela precisaria ser superada em nome do que eles chamam democracia.

O país viveu uma polarização em cenário anterior. Ela resultou do embate político entre dois projetos de rumos para a sociedade brasileira, mesmo com graus diferenciados de completude. Projetos confinados nos limites estreitos da frágil democracia liberal vigente no país. A polarização nasceu da disputa, em especial eleitoral, no período pós-ditadura civil-militar e se consolidou entre 1994 e 2014. Nestes mais de 20 anos parecia que, enfim, a democracia liberal estava sendo aceita e pactuada no Brasil, ainda que marcada por desigualdades, fragilidades, exclusões, carências e privilégios.

A polarização dificultava, mas não cerceava, a existência de outros projetos alternativos de sociedade mais à direita do projeto de centro-direita, organizado em torno do PSDB, ou mais à esquerda do projeto de centro-esquerda representado pelo PT. O clima de liberdade permita a existência de tais projetos, ainda que a desigualdade própria da sociedade capitalista, em particular da brasileira, com seus enormes desequilíbrios de poder, inclusive no acesso ao aparelho do Estado, na organização da sociedade civil e na capacidade de visibilizar e silenciar dos meios de produção e difusão de bens culturais, dificultasse tais alternativas.

Apesar do parco pluralismo existente, a polarização aconteceu em ambiente democrático e o fortaleceu. A suposta identidade entre polarização e risco à democracia não mostrou vigente. Pelo contrário, mesmo com suas limitações, a polarização fortaleceu o regime democrático brasileiro, marcado por muitas fragilidades e promessas não cumpridas com relação à população.

O sonho, acalentado por brasileiros democráticos de variadas matizes, da consolidação da vida democrática e de relações políticas mais civilizadas, com a existência necessária, legal e respeitosa de disputas entre adversários, foi pouco a pouco bombardeado por setores de forças políticas que passaram a se rebelar contra resultados eleitorais, como aconteceu com o PSDB de Aécio Neves, que se recusou a aceitar a derrota na eleição presidencial de 2014. Ele passou a sabotar a democracia liberal, que havia colaborado em conformar no país, inclusive com a construção da polarização de projetos em ambiente democrático. No PSDB, os segmentos divergentes da desastrosa atitude de Aécio Neves e correligionários não foram capazes de se contrapor às pretensões antidemocráticas e terminaram por se colocar a reboque de tais posições, abandonando o legado democrático até então construído.

Além de tais setores políticos, que corroeram por dentro o jogo democrático, a grande mídia no Brasil, com seu escasso pluralismo e sua ligação umbilical às concepções do empresariado, desde antes do questionamento dos resultados eleitorais, assumiu um paradoxal “jornalismo de campanha”, que esquecia a busca de objetividade da informação e, politizado em demasia, buscava de maneira incessante intervir na disputa vigente. Pior, na atuação o “jornalismo de campanha” recorreu, sem nenhum pudor, à produção do ódio e às fake news. A grande mídia, bem antes das redes sociais, destilou ódio cotidiano e inventou notícias falsas contra a esquerda e o PT.

A atitude irresponsável do PSDB, um dos agentes da democratização no país; a atuação conivente de segmentos do Judiciário, do Legislativo e das Forças Armadas; e a postura antidemocrática da grande mídia fomentaram um clima tal de ódio na sociedade e na política brasileiras, que envenenou o ambiente político, as relações sociais e debilitou o respeito e a civilidade existente na política, apesar de suas limitações estruturais. Tal postura radicalizada, em lugar de levar o PSDB ao poder como era o objetivo do movimento contra a democracia, possibilitou a tomada do poder central pela extrema-direita.

Fora do controle de seus agentes, o ódio inoculado no dia a dia e a violência simbólica e física autorizada invadiram de tal modo a sociedade e a política brasileiras, que dilaceram famílias, inviabilizaram o respeito aos adversários e pavimentaram caminho para a extrema-direita chegar ao poder e impor seu projeto autoritário e ultraneoliberal, que hoje ameaça e destrói a democracia, o Estado nacional e o país, além de colocar em cena perigosamente a barbárie e a incivilidade em todos os poros da sociedade brasileira, em um retrocesso histórico gigantesco.

Depois de todo esse processo lastimável, agora alguns setores políticos e sociais e a grande mídia tentam desqualificar a nova polarização fabricada por eles mesmos no país. Agem como se não tivessem responsabilidade pelo governo genocida. Tais setores exigem de modo insistente que PT e esquerda façam autocrítica, mas não são capazes de reconhecer a situação caótica que produziram no país, por sua intervenção antidemocrática e sua inabilidade política, ao pavimentar o caminho para a extrema-direita tomar o poder.

Tão grave quanto esta postura irresponsável é a tentativa de afirmar a nova polarização como inimiga da democracia, pois, segundo eles, a polarização atual contrapõe posições de extrema-direita e de extrema-esquerda. Mais uma vez a manipulação se mostra escandalosa. Depois dos anos do PT no poder federal, marcados por governos conciliatórios, muitas interpretações podem existir acerca da experiência do PT no governo nacional. Nenhuma delas, honestamente, pode, para o bem ou para o mal, alinhar tais experimentos como sendo de extrema-esquerda.

As classes dominantes foram incapazes de assumir de modo consequente um compromisso com a democracia no país e de criar uma alternativa democrática para disputar e para derrotar a centro-esquerda. Inventar a falsa polarização entre a extrema-direita bolsonarista, que eles apoiaram no poder central, e a extrema-esquerda, que não tem tal força no país, é reiterar sua postura umbilicalmente antidemocrática e golpista. A polarização existente no Brasil hoje coloca em confronto a extrema-direita, inimiga da democracia, e a centro-esquerda, que historicamente, com seus acertos e erros, assume a democracia em sua versão liberal e, espero, tenha capacidade de aprofundá-la no país, garantido direitos da população e soberania nacional.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e professor da UFBA. Ex-secretário de Cultura da Bahia