Política

A ilusão de liberdade oferecida pela meritocracia, de que o destino está em nossas mãos, desconsidera as obrigações cívicas para com a construção de um projeto democrático coletivo

Apesar da medalha de prata no peito, Rebeca Andrade foi abordada por um jornalista como perdedora: “O que faltou para alcançar o ouro?” Foto: Ricardo Bufolin/CBG/Fotos Públicas

Oh, qué gritos se sentían / por encima de las casas!” Federico García Lorca

As democracias liberais estão em risco. Por décadas atribuiu-se a ameaça à crise de representação, abalada por escândalos de corrupção nos dois hemisférios. A novidade do livro do professor norte-americano de Filosofia Política, Michael J. Sandel (A Tirania do Mérito, 2020), está em apontar a responsabilidade da meritocracia pelo espectro de destruição que paira sobre os regimes democráticos. “Humanos, embora nascidos para voar, por que caem a um sopro de vento?” Nunca a indagação na Divina Comédia, a obra imortal de Dante Alighieri, nascido no longínquo século 13, foi tão atual. A resposta à queda de tantos no círculo do inferno não tem a ver só com as condições sociais de nascimento, o que não é mérito ou demérito nenhum, pois ninguém é totalmente senhor de sua sina como agente moral do destino. Tem a ver com as consequências indesejáveis e nefastas de uma sociedade erguida sobre os controversos alicerces meritocráticos.

A guinada civilizacional provocada pela hegemonia do neoliberalismo, a partir dos anos 1980, substituiu a criação de produtos industriais pelo gerenciamento de investimentos nas Bolsas de Valores. As recompensas destinadas aos gestores de fundos, acionistas de megaempresas e banqueiros, conquanto desproporcionais à sua produtividade social, ultrapassou de maneira astronômica os dividendos auferidos por aqueles que orbitam o trabalho, no sentido tradicional da produção de bens e serviços. O acirramento das desigualdades que dividem o mundo entre “ganhadores” e “perdedores” mergulhou em descrédito as promessas de repartição dos ganhos. A ideia de que o fracasso advém da apatia, da incompetência ou da má índole desembocou em um revanchismo político. “Quatro décadas de globalização favorável ao mercado esvaziaram o discurso público, tirou o poder dos cidadãos comuns e incitou uma reação populista (leia-se, direitista, com raízes populares) que busca munir a praça pública de um nacionalismo intolerante e vingativo “, escreve Sandel.

A expressão American First traz embutida o aceno ao resgate do self made man, da crença na possibilidade de vencer pelo esforço e talento. A realização profissional para quem trabalha arduamente esfumou-se. O “sonho americano” simbolizado pelo Tio Patinhas, nos primórdios do capitalismo, baseado na ascese protestante que unia trabalho e poupança, não existe mais. Agora prevalece o hedonismo, em perdulários passeios pela Via Láctea, enquanto miríades de estrelas apagadas passam fome com dificuldade para sobreviver no dia a dia. O abismo da desigualdade é intransponível a essa altura, com o perdão do trocadilho. Com o que despendeu na viagem o bilionário Jeff Bezos, proprietário da Amazon, que aumentou em US$ 79,4 bilhões a fortuna no curso da pandemia, seria possível pagar vacinas contra o coronavírus para os esquecidos da Terra. As portas para alguém se fazer por conta própria, pelo empreendedorismo, fecharam-se. A menos que por espírito desbravador se entenda vender pães caseiros e rapaduras nos semáforos.

Winners and losers

O sociólogo Michael Young1 (A Ascensão da Meritocracia, 1958) inventou o termo, imaginando como seria formidável superar as barreiras de classe para que todos(as) tivessem a chance de ascender pelo mérito. Seria algo a festejar. Mas rápido percebeu que essa lógica acaba por nutrir a arrogância dos winners (ganhadores), por justificar privilégios e regalias, e a humilhação dos losers (perdedores), por ignorar a dor dos que tropeçam nos degraus da escada. Com a perda de empregos e salários veio o declínio da autoestima, que envenena os corações, e a raiva, que enche de ódio os ingênuos capturados pelos discursos antissistêmicos de lideranças da extrema-direita, mesmo que estas sejam bilionárias (caso de Trump) ou tenham parasitado sete longos medíocres mandatos eletivos (caso de Bolsonaro).

O erro das elites foi acreditar que controlariam as bestas-feras protofascistas, como fazem com a globalização pró-mercado e a financeirização da economia, tornada um “cassino” na caracterização do famoso economista, James Tobin. Cassino que não está acelerando o crescimento econômico, está desacelerando-o. As bases sociais do irracionalismo político amargam uma ira em face das “injustiças do sistema”, pela falta de compensações por ficar para trás. Daí tamanho apego a armas e religião. Reclamam por justiça, na concepção que implica cargos e honras (reconhecimento), não na que implica distribuição de renda e riqueza na direção do igualitarismo, como apregoam os socialistas respaldados na tendência do pós-guerra, a Oeste, que pressionou os países a aprovarem constituições com perfis, menos liberais e mais democráticos, para regulamentar o bem-viver coletivo.

O mérito tem uma função na peneira dos empregos e da prestação de serviços. Porém, não se pode comparar a seleção do melhor odontólogo para um implante dentário com a formatação das classes sociais, a escala do indivíduo com a da sociedade. Um erro que obstaculiza o raciocínio da cidadania, a exemplo das comparações manipuladoras entre o orçamento de uma família (limitado pelos salários) com o de uma nação (que possui instrumentos políticos para potencializar o erário). A intenção, com a prestigitação, é legitimar com um arrazoado pueril as iniquidades crescentes do capitalismo na fase neoliberal, fruto da ganância insaciável dos cifrões. É boicotar a comunhão de fatos e informações que conduza à reflexão sobre justiça e bem comum, no contexto reinante do capital financeiro. A malta inescrupulosa, que assim age, deseja que a polarização política extrapole as opiniões pessoais e converta os próprios fatos em... narrativas. Não à toa, os casamentos “interpartidários” escassearam, mais do que entre ocidentais e talibãs.

Limites morais do mercado

Historicamente, a noção de mérito está associada à expectativa de salvação com a compra de indulgências pelos pecadores ricos, em busca de lugar no céu. Muitas foram às catedrais europeias edificadas com recursos do comércio de almas, antes da Reforma luterana. A Teologia da Prosperidade manteve a aposta na graça celestial como corolário de atividades mundanas e, do sucesso, fez a prova de predestinação dos eleitos por Deus. Há carreiras funcionais (calvinistas) de Estado que se creem ungidas pela graça com a aprovação em concurso público, o que autorizaria as prebendas indecorosas. A combinação entre esforço pessoal e prêmio providencial é o combustível da fé na meritocracia, hoje. O resultado é a naturalização da segregação em uma sociedade hegemonizada pelos que têm direito a mercantilizar qualquer coisa dos “deploráveis”, até pedaços de seus frágeis corpos.

Sandel numa feita perguntou aos alunos, numa aula sobre os limites morais do mercado, o que achavam de um adolescente vender um rim para adquirir um iPhone. Três posições afloraram: a) O jovem tinha liberdade de fazê-lo, já que não se encontrava sob coação; b) É injusto que uns prolonguem a vida, comprando órgãos de pobres e; c) Quem dispõe de meios para conquistar mais saúde, merece viver mais tempo. A última ecoou o pensamento meritocrático, análogo à pregação evangélica de que saúde e abundância são sinais da presença de Deus. Veja-se, a propósito, a decisão do desgoverno brasileiro que rejeitou unificar leitos particulares e públicos para doentes pandêmicos. Um quarto da população – com convênios – reteve 60% de vagas nas UTIs. Três quartos (velhos, negros, pobres) morreram nas filas. Vingou a opção pela eugenia. Conforme o jurista Pedro Serrano: “Entre nós, a luta de classes tem um caráter eugênico”. A pesquisadora da Unicamp, Adriana Dias, corrobora: “Bolsonaro tem um projeto eugenista (neonazista). O mandato dele tem que ser interrompido. Não tem escolha difícil” (Revista Focus Brasil, 16 a 22/08/2021).

A desvalorização do trabalho manual agrava a situação, porque retira do labor a dignidade de garis que garantem a limpeza das cidades, dos catadores de materiais recicláveis que recendem os antigos profetas do Primeiro Testamento ao sinalizar caminhos alternativos de sociabilidade e dos entregadores de encomendas que sustentam o isolamento social para evitar a disseminação do vírus mensageiro da morte. A condição é que se empreste valor aos trabalhadores. “É o que faz com que o homem ligue a sua identidade humana a uma nação, e encare o seu trabalho como um fator imprescindível ao bem comum”, prega a encíclica do Papa João Paulo II (Laborem Exercens, 1981). O trabalho não tem por finalidade somente auferir rendimento para o consumo em shopping centers. Ele confere estima pública aos protagonistas e, em simultâneo, proporciona a coesão, a integração e a solidariedade sociais. Contudo, valores do tipo são hoje esmagados na roda desumanizadora das finanças.

Ora inveja, ora desprezo

No Brasil, o sentimento de revolta tem se convertido numa rejeição às normas democráticas e às autoridades que encarnam o poder visível: os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), os parlamentares do Congresso Nacional, os partidos políticos em geral (“meu partido é o Brasil, minha bandeira jamais será vermelha”) e os de esquerda em particular (“comunista bom é comunista morto”, para invocar o conto A Cicatriz, de B. Kucinski), mais os produtores de conhecimento e de ciência. Políticas governamentais com vetor igualitário, marcas do Partido dos Trabalhadores (PT) em prol das camadas empobrecidas, são interpretadas pela pequena-burguesia – para empregar um conceito em desuso – como alargamento da distância que a separa dos detentores do poder, aos quais acusa de abandono. Entre o descaso dos “de cima” e a proximidade dos “de baixo”, aquela destila ora inveja, ora desprezo aos que intervêm dentro das regras do jogo institucional. Tivesse consciência, assumiria uma postura revolucionária. Carecendo, assume a postura contrarrevolucionária do alegórico gado que se alimenta com rações de fake news.

O curioso é que a ideologia do merecimento, celebrada pelo reitor de Harvard, James Bryant Conant2 (Educação para uma Sociedade Sem Classes, 1940), visava superar a divisão da sociedade em classes rígidas, sem mobilidade social, e alavancar uma aristocracia de virtude e talentos independente de nascimento. Conant apoiou-se nos ombros prestigiosos de Thomas Jefferson, ao enfrentar o desafio com exames de admissão universitários que medissem o Quociente de Inteligência (QI) dos estudantes. Naufragou. Os selecionados pertenciam na maioria a berços dourados. Cabe assinalar iniciativas dos governos Lula da Silva (2003-2010), com melhores resultados. Na letra da Constituição de 1988, ao combater as desigualdades sociais e regionais em pinça, de um lado, expandindo as escolas profissionalizantes e interiorizando as universidades públicas; e de outro, criando cotas étnico-raciais para o ingresso no ensino superior federal que, afora a reparação histórica de importantes segmentos populacionais, estimulou uma notável mobilidade social.

A difusão do evocativo “você merece” acompanhou a ortodoxia do Consenso de Washington (1989), durante o processo de consolidação das políticas econômicas avalizadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial. Virou então corriqueiro classificar personas com muito dinheiro e saúde de “abençoadas”. E as coitadas que chafurdam na pobreza e na doença, de “amaldiçoadas” pelas escolhas que as impediram de assimilar determinadas habilidades e credenciais no campo da educação formal. Como se a exclusão social não decorresse de políticas de acumulação, mas de percalços escolares. Por tal fresta entram os epítetos de “inteligentes” e “burros” nas disputas ideológicas. O evangelho in search of prosperity compartilha com o neoliberalismo em voga a responsabilização dos indivíduos pelo que lhes acontece na vida, sem apelar para a contingência da sorte.

Faz escuro, mas eu canto

A meritocracia está internalizada na visão dos acontecimentos, em nosso tempo. A ginasta brasileira Rebeca Andrade, nas Olimpíadas de Tóquio, na entrevista coletiva de praxe ouviu a seguinte pergunta: “O que faltou para alcançar o ouro?” Foi abordada como perdedora por um jornalista, apesar da medalha de prata pendurada no peito, e perscrutada sobre as supostas falhas demeritórias que a alijaram do topo no pódio. Respondeu, com altivez, que nada havia dado errado e que se sentia feliz. Essa menina, afrodescendente, disse no passarán aos que separam o mundo em “ganhadores” e “perdedores”. E recordou a brutal injustiça de um sistema em que a igualdade de oportunidades é, moralmente, indispensável para balancear mazelas e misérias que sempre transformam, atletas, em novos heróis.

A felicidade anda ao largo das benesses de conforto e distinção. Pressupõe o acesso a uma vida digna e à cultura geral. Não se trata de possuir na garagem carros de luxo e proventos nababescos, senão de inserir-se numa ordem social que assegure efetivo reconhecimento por aquilo que formos capazes de alcançar e usufruir, à revelia das circunstâncias fortuitas de berço ou posto na sociedade. Eis, aqui, descortinado o horizonte utópico da humanidade, uma vez suplantada a divisão social do trabalho e, o trabalho, deixar de ser um sacrifício à subsistência para configurar-se em suporte vital ao desenvolvimento dos indivíduos. Para romper os grilhões da estética da miserabilidade, é preciso libertarmo-nos dos ideais meritocráticos do darwinismo socioeconômico. Na síntese de Karl Marx (Crítica do Programa de Gotha, 1875): “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. A isso poderemos chamar Democracia. Sim, com maiúscula.

A ilusão de liberdade oferecida pela meritocracia, de que o destino está em nossas mãos, desconsidera as obrigações cívicas para com a construção de um projeto democrático coletivo, que não se reduza às searas condominiais protegidas por cercas eletrificadas contra a aproximação das classes tidas por perigosas. “O bem comum apenas pode ser conquistado por intermédio da deliberação com nossos concidadãos sobre os propósitos e os fins de nossa comunidade política, a democracia não pode ser indiferente ao caráter da vida em comum. Ela não exige igualdade perfeita. No entanto, exige que os espaços públicos sejam coabitados por distintos níveis sociais e estilos de existência. Porque é assim que aprendemos a negociar e a acatar nossas diferenças. E é assim que passamos a nos importar com o bem comum... para além da tirania do mérito, na direção de uma vida pública menos rancorosa e mais generosa”, arremata Michael J. Sandel. O contrário fortalece o protofascismo da extrema-direita. Afinal, quem tem medo de ser feliz?

Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS, doutor pelo Institut D'Études Politiques de Paris (Sciences Po) e ex-secretário Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul (Governo Olívio Dutra).