Mundo do Trabalho

A ADI 2.135 e o Regime Jurídico Único: questão se relaciona ao debate ora travado na PEC 32/2020, que visa, novamente, abrir caminho a novos regimes de trabalho no serviço público

Espera-se que o STF reconheça que o direito ao devido processo legislativo é cláusula pétrea da Constituição. Foto: Gil Ferreira/STF

Em 18 de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.135, ajuizada em 2000, visando afastar a aplicação da Reforma Administrativa do governo FHC, promulgada em junho de 1998 na forma da Emenda Constitucional (EC) 19/98, por ofensa ao devido processo legislativo definido na Constituição.

Em 2001, o julgamento do pedido de liminar se iniciou com o voto do ministro Neri da Silveira, relator, que opinou pela procedência do pedido, quanto à supressão do “caput” do art. 39 da Constituição e a extinção do regime jurídico único (RJU) para os servidores da administração direta, autárquica e fundacional. O relator acatou os argumentos, fortemente lastreados em fatos ocorridos durante a tramitação da PEC, que evidenciavam fraude ao processo legislativo: o plenário da Câmara rejeitou a alteração ao “caput” do art. 39, mas, numa manobra “esperta”, o relator elaborou redação para o segundo turno que colocava, como novo caput, o que era, então, o novo §2º do art. 39.

Na sessão em que foi apresentado esse voto do relator, o então advogado-geral da União, hoje ministro do STF, Gilmar Mendes, além de haver atuado em defesa do texto promulgado, fez, pessoalmente, sustentação oral.

Em 2007, o STF retomou o processo, e concluiu o julgamento da liminar, deferindo a suspensão da quebra do RJU, acatando o voto do relator. Assim, com eficácia “ex nunc”, ou seja, dali para a frente, foi restabelecida a regra original, vedando o regime de emprego público na administração dos três níveis da federação. Essa solução, porém, não afeta as empresas estatais, que sempre foram regidas pela CLT.

Em setembro de 2020, a ministra Carmen Lucia, nova relatora, proferiu voto pela confirmação da liminar, acolhendo na íntegra as razões que apontavam o desrespeito à decisão do plenário, que não aprovou o fim da unicidade de regime jurídico.

Quase um ano depois, o processo voltou à pauta, depois de muitos adiamentos e, para surpresa de quem esperava uma certa “contrição”, o ministro Gilmar Mendes, cujo voto, como decano, seria o último a ser proferido, solicitou autorização para votar em primeiro lugar. Em lugar de declarar-se impedido – como mandam o bom senso, o princípio da moralidade e, até mesmo, o art. 144 do Código de Processo Civil, segundo o qual é vedado ao juiz exercer suas funções no processo “em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como membro do Ministério Público ou prestou depoimento como testemunha” (regra, contudo, que o STF considerou ser de aplicação “facultativa”, a juízo do magistrado, em processos de controle concentrado de constitucionalidade) –, o ministro proferiu longo voto contrário ao da relatora, fundado na tese de que se tratava de mero “ato interna corporis”.

A matéria saiu novamente da pauta, após pedido de vistas do ministro Nunes Marques. Desde então, a imprensa vem destacando esse fato, extraindo do voto do ministro Gilmar – a rigor, impedido, eticamente, de julgar processo em que foi parte atuante, como advogado – uma “tendência” da Corte no sentido de validar a fraude legislativa ocorrida na EC 19/98.

No entanto, o que está em questão é o respeito ao devido processo legislativo constitucional, e não matéria interna corporis. A liminar deferida pelo STF em 2007, o voto do relator original e o voto da ministra Cármen Lúcia foram cristalinos e contundentes no sentido de afastar o argumento de que se tratava de mera questão regimental, reconhecendo que, de fato, a decisão do plenário, ainda em primeiro turno de votação na Câmara, foi pela preservação do Regime Jurídico Único.

Essa questão se relaciona ao novo debate ora travado na PEC 32/2020, que visa, novamente, abrir caminho a novos regimes de trabalho no serviço público, afastando a garantia geral da estabilidade no cargo ao servidor concursado após o cumprimento do estágio probatório. Mantida a redação do caput do art. 39 irregularmente promulgada em 1998, ficaria enormemente simplificada a discussão: bastaria ao governo, doravante, contratar empregados públicos, sem estabilidade, com fundamento em lei ordinária aprovada em 2000 (Lei nº 9.962) exceto para as “atividades exclusivas de Estado”, para as quais a estabilidade é inafastável.

Mas nem um nem outro caminhos são corretos ou adequados. A EC 19/98, na forma em que foi promulgada, é ilegítima, pois resultou de afronta grave ao devido processo legislativo, que foi, inicialmente, impugnada pela via de mandado de segurança, e, a seguir, declarada a sua prejudicialidade, pela via da ADI 2.135. A discussão travada na PEC 32/2020, que está na iminência de ser apreciada em comissão especial da Câmara, acha-se contaminada pela visão limitada do que sejam “cargos típicos de Estado”, e pela noção de um regime estatutário, para os servidores concursados, em que mais de 80% não terão estabilidade, mas tampouco as garantias do regime de emprego, como aviso prévio, Fundo de Garantia e multa rescisória. A ampliação da contratação temporária e da “terceirização”, e a previsão de um “vínculo de experiência” que poderá ter longa duração, trazem grandes riscos ao serviço público, ao Estado e à sociedade.

Em qualquer cenário, vulnerabilizar o servidor público diante de governos de plantão ou de conjunturas passageiras é uma temeridade. Experiências dessa ordem, adotadas em países como Hungria e Polônia, sob governos autoritários, ou em países como Portugal, em contexto de crise fiscal, não se mostraram positivas. Em países sob regimes autoritários (ou “conservadores”), a politização do serviço público, e o alinhamento ideológico com os governos, passaram a ser determinantes para a “carreira pública”. Em Portugal, além do empobrecimento dos servidores, deu-se, conforme Cristina Calheiros1, uma ruptura que tem como efeito a descaracterização absoluta da identidade da função pública, fruto do desaparecimento do conceito de funcionário e agente, da aplicação de um regime de vinculação claramente “privatístico” e da introdução de parâmetros economicistas enquanto critérios de decisão de recrutamento ou de evolução de carreira, bem como, finalmente, da aplicação de um regime jurídico na sua larga maioria igual ao regime laboral comum. A profundidade e gravidade dos efeitos dessas mudanças sobre a ética do serviço público e sua relação com a sociedade ainda estão por ser aferidos.

Ao fim, diversamente das pressões governistas, espera-se que o STF não somente confirme a liminar deferida, mas reconheça, uma vez mais, que o direito ao devido processo legislativo é princípio democrático, cláusula pétrea da Constituição e que não pode ser manipulado livremente pelas Casas legislativas. A demora no julgamento da ADI 2.135 e o momento em que vem ao julgamento o seu mérito não podem ser razões para que a subversão e fraude ao processo legislativo ocorrida na EC 19/98 sejam validados.

Luiz Alberto dos Santos é advogado e consultor legislativo do Senado, e ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil (2003 a 2014). Como advogado, foi o formulador e um dos patronos originais da ADI 2.135.