Política

As patacoadas do 7 de setembro puseram a nu a fraqueza do esquema golpista. O que fazer então? O recuo é necessário, mas tático ou estratégico? Afinal, o que está em jogo?

O 7 de setembro demonstrou que a vitória é o verdadeiro mito; prisão é o cenário mais provável. Foto: Isac Nobrega/PR

Apesar de divididas na atual conjuntura política, a elite brasileira, ou melhor, parte dela, tenta mais uma vez fazer uma “transição por cima”. Prática secular que aprendeu com os portugueses desde os tempos coloniais, desenvolveu com os ingleses e a partir de meados do século passado passou a ser orientada pelos norte-americanos. É necessário sempre – a história mostra – fazer as revoluções ou transformações, antes que o povo as faça...

Vale relembrar que D. João VI, quando retornou a Portugal depois que no Brasil se refugiou da investida de Napoleão Bonaparte: disse ao filho Pedro I que ficasse tomando conta do trono, “antes que algum aventureiro lance mão”. Aventureiros eram os brasileiros sedentos de liberdade, como Tiradentes. E Pedro ficou, reafirmou sua decisão no dia do “fico”, até proclamar a independência. Depois imperou o filho Pedro II, sujeito que tinha algumas ideias progressistas, mas antes de tudo servia à elites, era parte delas. No fim entregou os anéis para conservar os dedos, mas logo perdeu os dois: escravos e trono. A nova representação da elite com os militares à frente, aprendeu bem a lição e implantou a República que já nasceu Velha. E os coronéis – foi esse o nome que tomou nossa elite econômica – tiveram algumas disputas entre si, ora mandava o açúcar, ora o café, ora o leite – mas no fim se entendiam. Claro que a situação mudou, o capitalismo avançou, as novas ideias de liberdade e democracia se aprofundaram, o socialismo se apresentou, os trabalhadores e a pequena burguesia se politizaram.

E veio 1930, Getúlio liderou a revolução “antes que o povo a faça” como diziam os próceres. Mas com ele, pela primeira vez o povo brasileiro gozou um pouco de liberdade (mesmo que passageira) e o país um projeto de nação. Tudo com limites precisos, até porque a nova hegemonia que se impunha no mundo ocidental e cristão assim o exigia. O império do norte sempre quis todas as veias de nossa América Latina continuadamente abertas à sucção. E, embora alguns senões, assim foi. Só que o povo brasileiro apesar de nunca convidado a participar do botim, foi tomando consciência, exigindo direitos e obtendo conquistas. Então veio a ditadura militar para restabelecer a plenitude da sangria do pais e do povo conforme os interesses do império do norte.

A transição da ditadura militar

O processo de corrosão do regime militar implantado em 1964 foi lento e gradual, mas inevitável. Contra ele se estabeleceu uma enorme frente, de um lado a oposição efetivamente democrática e popular, de outro setores liberais, frações das elites, até dissidentes militares. Ao fim e ao cabo, o que prevaleceu? Não resta dúvida que uma transição controlada. Mas, se compararmos a redemocratização de 1985 com a que se deu em 1945 com o fim do Estado Novo, vemos diferenças, elementos novos significativos. Dois exemplos são importantes: a liberdade partidária que deu legalidade aos comunistas em 1945, logo foi revogada com a cassação do partido e dos mandatos; hoje a situação é bem diversa: apesar dos pesares a liberdade partidária vigora. Outro: a Constituição de 1988 é sem dúvida mais avançada que a de 1946. E apesar de muito conspurcada e violada, ainda estabelece amplos elementos a garantir as liberdades democráticas.

Mas em contrapartida, assim como em 1945, os crimes contra a humanidade não foram apurados: torturadores, assassinos, criminosos de lesa-humanidade e lesa-pátria não foram investigados e levados ao banco dos réus, como fizeram – ou estão fazendo – as repúblicas vizinhas do Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia. Sem uma justiça de transição que ponha a nu os crimes contra os direitos humanos penalize os criminosos, o país não é vacinado, permite a eleição de um presidente defensor da tortura.

Mas é necessário relembrar os elementos essenciais do processo: embora não fosse ampla, nem geral, nem irrestrita, a anistia proposta pelo general Figueiredo não anistiava explicitamente os torturadores. Ao contrário, excluía de seu benefício os chamados “crimes de sangue”. E o que foram os assassinatos e desaparecimentos senão “crimes de sangue”? Ora, o regime militar nunca reconheceu a tortura. Então, como anistiar um crime inexistente, como anistiar os torturadores? A abrangência da anistia para os torturadores foi um acordo político subjacente à anistia para os torturados, os presos, exilados, cassados. A Constituição de 1988 ampliou sua abrangência estendendo-a a todos as vítimas da violência política dos governos militares. Mas não a estendeu aos torturadores. Anos mais tarde, questionado, o STF estabeleceu esta esdrúxula interpretação, a partir de um relatório do ministro, ex-preso político (sic) Eros Grau, estabelecendo a reciprocidade da anistia “para pacificar o país”. E os torturadores tiveram a garantia da impunidade.

De um modo geral a elite brasileira embora tenha se beneficiado enormemente dos governos eleitos pós-ditadura militar, inclusive dos três últimos – FHC, Lula e Dilma – foi entendendo que a aplicação da Constituição de 1988, sem reformá-la profundamente, ia abrindo um fosso que ameaçava cada vez mais seus interesses, em especial os interesses dos patrões do norte. E por orientação destes iniciam o processo de desestabilização para reconquista do governo. Veio o golpe contra Dilma, a prisão de Lula e a “eleição” do pupilo Bolsonaro. Parecia que tinham retomado plenamente as rédeas da política e da economia brasileira, tudo ia se dar bem.

Ora, a economia passou a ser chefiada pelo ministro Guedes, o tchutchuca, representante legítimo da elite neoliberal. Na Justiça e na polícia o superministro Moro, o farsante da lava-jato. E como Bolsonaro nunca gostou de trabalhar (isso era uma condicionante conhecida), o governo caminharia bem, assessorado pelos militares que nele viram um novo e grande filão para suas promoçõe$. Mas houve um “pequeno” engano: o capitão revelou-se um capetão. Embora sempre tivesse mostrado seus dentes, avaliava a elite que uma vez na presidência ele seria domesticado. Mas não foi. E montou o governo à sua imagem e semelhança, com todos submissos a seus caprichos e a missão de destruir: as conquistas sociais, a nacionalidade, a independência, a democracia. E tudo tem feito neste sentido.

O capetão montou o mais profundo desgoverno da história nacional. O país vive às traças: o genocídio causou a morte de 600 mil brasileiros; o desemprego cresceu, a inflação retornou, e a fome se espraiou; a economia está paralisada, a Amazônia e o Pantanal em chamas e a imagem do Brasil no exterior ao rés-do-chão; a democracia periclitando sob ameaças constantes de golpe a partir de milícias bem armadas. Mas o capetão se isolou profundamente no cenário político e social.

E agora, José?

As patacoadas do 7 de setembro puseram a nu a fraqueza do esquema golpista. A elite abandona em massa o capetão, vendo as imagens do povo, a ação do Judiciário, a paralisia econômica, o desembarque de aliados. O que fazer então? O recuo é necessário, mas tático ou estratégico? Afinal, o que está em jogo?

Se o governo está em jogo, tudo está em jogo: possibilidade de impedimento, de interdição, de derrota eleitoral nem indo ao segundo turno (se garantir a candidatura). E os processos avançam, chegará a cadeia para os filhos e para si. Ora, ele reconheceu previamente que haviam três opções: prisão, morte ou vitória. O 7 de setembro demonstrou que a vitória é o verdadeiro mito; morte é acidente ou consequência do câncer que justificou a “faqueada”; prisão é o cenário mais provável. Daí a necessidade de costurar uma saída por cima que assegure a impunidade para si e seus filhos – já que os partidários criminosos, semiabandonados, estão sendo presos e processados. Mas para o chefe e família, um indulto garantido de antemão, é a melhor opção. Garante o desfrute futuro quem sabe nos States.

O capetão fez uma jogada esperta: abandona os seus, entrega os anéis ao ajoelhar-se ante o ministro Alexandre de Moraes que chamou de “canalha”, mas quem sabe conserva os dedos? Para a manobra convocou Michel, o temerário, que naturalmente terá alguma vantagem pessoal em troca, mas isso é o de menos. E à elite, ou parte ela, o que interessa tudo isso? Vislumbra uma trama que impeça a eleição de Lula.

Embora não impossível, o novo acordão “com supremo, com tudo”, é difícil de prosperar. Mas a elite está tentando, não quer um novo pesadelo de um governo democrático e popular, discute as saídas sem o capetão candidato, talvez até lhe dando um prêmio de consolação (uma cadeira de senador). Mas a trama vingará? Muitas são as dúvidas: primeiro porque o capetão não mudou seu caráter (que o diga o discurso na ONU), continuará a dar suas patadas, apenas retome o fôlego, apesar do crédito de alguns incautos (ou interessados?) que o avalizam. Segundo porque o acordo só pode ter êxito com o descarte da candidatura de capetão: seus 20% de apoio são essenciais para viabilizar a terceira via; ele aceitará? Terceiro: o Judiciário como um todo, alguns ministros do STF em especial, afinarão? Tudo é possível, mas pouco provável. Por fim: combinaram com o adversário? O povo brasileiro está mais esperto: conhecedor das manobras das elites está aprendendo a ocupar as ruas e terá que fazê-lo em grande estilo e amplitude para obter a vitória; o povo anseia liberdade, justiça, desenvolvimento econômico com emprego, energia barata nas casas, independência nacional, educação universal, comida no prato e vacina no braço; governo, enfim! E isso não é uma quimera. As pesquisas indicam e confirmam: Lula encarna a esperança!

Roberto R. Martins é fundador do PT, historiador e escritor