Economia

A figura do jagunço moderno como mecanismo de transmutação social estabelece a ligação entre a democracia enfraquecida, a comunhão entre a grande empresa da crise e a força moral da teologia da prosperidade

Habitantes da periferia guardam tão somente relações sociais precarizadas com a reprodução da riqueza. Foto: USP Imagens

Em homenagem ao esforço docente de Márcio Pochmann

 

Um quadro geral sobre a estrutura social brasileira e suas mudanças recentes

Durante aula proferida no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp, o Prof. Dr. Márcio Pochmann denuncia a existência do “Sistema Jagunço”, a união entre o fanatismo religioso e o banditismo social, soldados pela precarização das relações de trabalho, a descartabilidade social marcantemente racista, machista, transfóbica e xenofóbica, e o retrocesso do papel do Estado enquanto agente operador da “soldagem social” pelas vias da normatividade, da assistência social básica e do aporte gerador de crescimento econômico e do emprego.

Ao assistir à aula, percebi-me atônito, pois o conceito anunciado me obrigou a rever todo arquétipo histórico-teórico que até então acumulei para denominar o processo chamado “modernização conservadora”, pelo qual se modernizou a estrutura econômica, aprofundando relativamente as desigualdades sociais. Esse ensaio não propõe abranger a totalidade das transformações ocorridas na relação Estado-Mercado-Sociedade, recortadas pelos meios de reprodução do atraso social. O que se pretende é explorar de maneira desapaixonada dos contornos da tese do Sistema Jagunço descrito por Pochmann, a quem me desculpo antecipadamente por possíveis equívocos interpretativos.

Revisitando a literatura clássica sobre a cisão entre o sonho na aurora do Brasil moderno, digamos, a partir de 1950, e o país que marchou forçosamente para a desilusão pós-anos 1980, verifica-se um fenômeno que se esgueirou pela mutação da estrutura social brasileira nos últimos 40 anos: a consolidação de um poder paralelo, semelhante e distinto ao poder do Estado democrático que reproduz sob nova roupagem a antiga figura do jagunço, protetor fiel dos mandonismos locais desde os tempos do Brasil-Colônia.

Em O Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna, Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello demarcam o ponto de mutação entre o Brasil que ascendia econômica, social e culturalmente, para aquele cuja ruptura política do golpe de 1964, subverteu o sentido da modernização, reproduzindo os elementos que diluíram os valores da liberdade e da igualdade em favor dos valores mercantis do individualismo e da concorrência, fabricando uma nova forma de açoitamento pelo jagunço: se antes as chibatadas de couro de boi, doíam nos lombos de quem desafiasse o “coroné”, sob o rito ditatorial, a chibata foi substituída pela caneta, versão oculta dos instrumentos de repressão política, policial e econômica contra os refugiados, dos quilombos, dos recantos pobres dos sertões para as favelas, formação geográfico-social tão antiga quanto a velha república.

As demarcações entre os morros cariocas e Copacabana, entre Paraisópolis e os Jardins Paulistanos, acompanharam o ritmo da concentração da riqueza financeira e fundiária, assim como, a aceleração da precarização do trabalho e a sedimentação da “viração”, como saída para aqueles cujo descarte dos meios formais de trabalho é dado desde a “largada”, visto que as condições de escolarização, especialização profissional e a fluidez com que as reformas liberalizantes destruíram o dinamismo do mercado de trabalho brasileiro, formaram o conjunto de barreira historicamente intransponíveis entre a periferia e o centro das relações sociais demarcadas pela detenção da propriedade e do dinheiro, onde realizam-se efetivamente os nexos da cidadania.

A Constituição de 1988, como demonstra Paulo Arantes em O Novo Tempo do Mundo, imprimiu o timbre no papel em branco que a democracia, teoricamente, deveria rechear com os termos da alforria do indivíduo miserável e anônimo, elevando-o para o status de cidadão. Contudo, a democracia ganhou, mas não levou, pois, a cidadania oferecida aos habitantes da periferia permanece demarcada pela clivagem da concorrência, esfera protetora do verniz democrático que esconde os tons plutocráticos do poder no Brasil.

Nem mesmo a adaptação da tese de Wolfgang Streeck, em Tempo Comprado para a vasta terra do Pindorama, é suficiente para aportar as raízes da distância do Estado em relação à população periférica. No Brasil, as demandas sociais identitárias são pressões coadjuvantes sobre a estrutura democrática: o que, verdadeiramente, pressiona as barrigas sem cutucar os poros do poder é o fenômeno da fome, contemplado com marginalidade nos períodos em que a política social sobra como migalhas do banquete oferecido aos proprietários da riqueza. Mas, se para toda regra existe exceção, nos idos da marginalização das populações “faveladas”, a exceção fixou-se como regra, pois cada passo adiante na direção da integração social dos pobres, as canetas tripartites dos poderes republicanos expurgavam o faixo de luz pelo qual os oprimidos enxergavam esperança, pois os pingos de sangue que sobram da execução, criação e observância das leis no Brasil escolhe seu tinteiro, como o farialimer seleciona a folha do próprio tabaco: a fome do pobre alimenta o banquete do rico.

Completa o quadro, a interpretação de Raimundo Faoro sobre a estruturação do poder no Brasil em que aparecem contrapostos o estamento endinheirado ornado pela burocracia do Estado contra o povo sobressalente. De um lado, o Estado funciona como regulador dos conflitos sociais, de outro, transfere renda dos mais pobres para os mais ricos, utilizando-se da violência como método de “triagem” que separam a população periférica segundo as clivagens: do “bom cidadão” trabalhador, do “parasita” que suga o Estado, do “peixe pequeno”, hora, ou outra, eliminado pelo sorteio das balas perdidas, e do “bom bandido”, preso ou morto.

A tese central que amarra o quadro geral ensaiado nos parágrafos seguintes, encaminhará a seguinte lógica argumentativa: A decadência crescente dos meios de integração e mobilidade sociais transmutou a forma de operação do velho Sistema Jagunço, pela articulação e mobilização do poder paraestatal a partir das formas evoluídas e contemporâneas de reprodução do atraso social que conjuga a miséria, a violência seletiva e a precarização das condições de inserção no mercado de trabalho, parcialmente cobertas pela presença social do Estado. Desde logo, não se trata de contrapor o Estado constituído democraticamente sob o gerenciamento tripartite da ordem cívica e legal, e aquele nascido das múltiplas formas de poder paraestatais, como a milícia, a “grande empresa do crime” e os laços comunais cristalizados na religiosidade centrada na teologia da prosperidade, como vazão moral da ética da concorrência, eliminando qualquer meio de transcendência. O sistema estatal constituído sob as obstes da lei e da ordem atua manejando as tensões materiais e sociais que decorrem da desintegração dos meios de mobilidade social, enquanto o sistema paraestatal ocupa as lacunas deixadas pelo papel social do Estado, formando, como aponta Gabriel Feltran em “O Valor dos Pobres”, um espaço de sociabilidade distinta, consolidando uma intersecção entre os conjuntos de ação normativas e sociais do Estado democrático e societais do poder paraestatal.

O Sistema Jagunço: comentários ao desenvolvimento teórico e didático de Márcio Pochmann

Márcio Pochmann é autor de uma interpretação fundamental sobre as transformações da estrutura social a partir da desintegração dos mecanismos igualitários promovido pela franca ascensão dos pobres à chamada “nova classe-média”. Não menos relevantes são as contribuições de Antunes, Gimenez e Quadros que se encarregaram de jogar água no chope da miragem estatística observada entre 2003 e 2011. Contudo, o eixo norteador do Sistema Jagunço penso ser a transmutação da modernização conservadora, reprisando as formas historicamente verticais de poder sob a roupagem da concorrência, mar divisor entre duas realidades: a governada pelo Estado Democrático promotor da concorrência, como forma de individualização do mérito, e aquela nascida dos espaços cujo acesso do Estado Social se faz de forma nula, ou diminuta, exigindo a emulação das estruturas de poder sob mecanismos paraestatais de reprodução da esfera moral, punitiva, monetária e comunitária, completando as lacunas deixadas pela ausência, ou interferência do Estado violento na realização da clivagem social.

O Sistema Jagunço une, portanto, quatro esferas reprodutivas: 1) a sobreposição da moral protestante como forma de soldagem social entre a fé e as relações sociais comunais; 2) a viração como expressão da fluidez ocupacional dos mais vulneráveis; 3) a grande-empresa do crime como articulação paralela entre a reprodução do capital e o poder paraestatal de estabelecimento da lei e da ordem pela via da violência social; 4) O interstício entre o Estado, o sistema carcerário e a assistência social, entes de estabelecimento do sistema métrico que define a escala social dos desvalidos. A junção desses elementos transforma o conceito tradicional de modernização conservadora, centrado no mecanismo recíproco entre a expansão do poder estatal e do domínio do capital denunciado pela elevação das distâncias entre as oportunidades de integração social entre os super-ricos a flutuante posição da classe média e aqueles em situação de pobreza.

Tal transformação não torna mais conservadores os instrumentos do subdesenvolvimento periférico, mas realiza-se ao transformar a modernização conservadora em retrocesso do papel social do Estado que conjuntamente ao poder expansivo do capital acabam por racionalizar as interações com as populações periféricas, abrandando-as pelos programas focalizados de transferência de renda e enervando-as pela violência expressa nos índices de encarceramento em massa e de mortes, pela bala perdida, ou direcionada para aqueles não enquadrados na triagem social do “bom sujeito”. Desse modo, o Estado opera como jagunço, enquanto agente direto de representação dos interesses pessoais e financeiros das elites. Conforme observado na figura 1, verificam-se movimentos que quando reunidos descrevem sinteticamente a operação do sistema jagunço:

Figura 1: Esquema síntese das interações entre os polos de conflito do Sistema Jagunço

Legenda:

- Cada elipse representa a área de atuação social, geográfica e econômica dos grupos representados pelo Estado (em amarelo), pelo Capital (em vermelho), pela Periferia (em azul) e pela população submetida ao descarte social (em preto);

- O Tamanho das setas que representam o grau a conexão entre os grupos simboliza a sobredeterminação ou interação sistêmica entre eles;

- A forma das retas tracejadas significa, do menor ao maior, grau de interdependência das relações entre os grupos, evidenciados pela interação entre a mediação das cores ao longo das retas tracejadas.

A partir do esquema-síntese apresentado na figura 1, é possível tecer o conjunto de argumentos que dialogam e desenvolvem o conceito do Sistema Jagunço:

  • O conjunto de ações normativas coercitivas e econômicas do Estado aprofundadas pelo regime neoliberal e cujo clímax é atingido no cenário atual ocupa-se, em primeira instância, em garantir a solidez dos estoques de riqueza privados, despendendo quase metade do resultado fiscal para as cambalhotas do endividamento público no país dos rentistas.
  • Quando sobradas as migalhas do orçamento público, as políticas de assistência básica servem para amenizar os conflitos trazidos pelo desemprego e pela insuficiência material, prova disso, segundo Pochmann é que em 1980, apenas 3% da população recebia recursos na forma de transferência de renda, saltando para 40% em 2020. Para além disso, os movimentos de “pacificação” das regiões periféricas reforçaram a relação entre a grande empresa do crime e as milícias, transferindo no âmbito da periferia divisão do monopólio da violência pelo Estado com o poder paralelo na mistura entre as três cores: a normatividade seletiva da violência do Estado, a rígida moral estabelecida pela presença paraestatal nas periferias e a demarquia hayekiana que entremeia a ditadura do código do crime e a normatividade democrática das leis e direitos constitucionais.
  • Aqueles não absorvidos na triagem entre o poder constituído são encarcerados aos montes como forma de confinamento da desigualdade aos ditames nada prudentes da magistratura, capaz de afiançar um ricaço assassino e condenar uma mãe que surrupiou um pote de manteiga para alimentar seu filho, dando-lhe o mesmo destino dos mais de 700 mil presos sem acesso ao devido processo legal e ao um julgamento formal.
  • A reprodução da miséria, da viração e dos exíguos, senão inexistentes caminhos de ascensão social engordam as fileiras da população carcerária, enquanto formam a multidão de indivíduos reservados à convocação do capital para sua reprodução como mercadoria-trabalho, sob condições legais e estruturalmente cada vez mais precárias.
  • Por fim, os descartados sociais, habitantes do cotidiano periférico e carcerário guardam tão somente relações sociais precarizadas com a reprodução da riqueza, timbradas pela insuficiência material e referendadas pela autonomização do capital em relação ao trabalho.

Conclui-se encadeando o argumento aqui exposto que o Sistema Jagunço ao transformar a modernização conservadora estimulou o surgimento de novos nexos de conexão social que demarcam a existência de um outro tipo de sociabilidade, emulando os caminhos de encontro entre o indivíduo descartável, o jagunço que se ocupa do descarte e a superestrutura político-econômica que fazem do Brasil de hoje mera litografia opaca e distorcida do Brasil de 130 anos atrás, conforme argumenta Pochmann.

A figura do jagunço era protetora dos interesses político-econômicos das elites, munidos por ferramentas de opressão que formavam um sistema de leis e repressão próprias ao regionalismo do velho Brasil, a reprodução sistêmica da figura do jagunço moderno como mecanismo de transmutação social estabelece a ligação entre a democracia progressivamente enfraquecida, a comunhão entre a grande empresa da crise e a força moral da teologia da prosperidade, segundo a qual o eterno é uma premiação para quem chega ao fim do túnel, depois de despender seu sacrifício monetário, abandonando quanto mais as ligações espirituais e transformando-as em cifrões de cura, prosperidade, fama e influência política na reunião de interesses que solidificam o conservadorismo moral, político e econômico: a bala, a bíblia e o boi.

O Brasil não andou para frente, sucedendo o retrocesso, mas retrocedeu à medida que se modernizaram as formas de opressão social, sobrando do avanço econômico as marcas da pintura fresca da democracia, fazendo valer o concreto e real espaço do “poder”: a lei do dinheiro e o dinheiro da lei, o primeiro reflexo do jagunço moderno, o segundo reflexo do jagunço do século 19.

Nathan Caixeta é pós-graduando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NEC/Facamp