Política

Não podemos participar somente nos espaços já institucionalizados, na esteira da Constituição de 1988, tampouco na forma da contestação e resistência apenas, por mais importante que seja

É preciso juntar pessoas num lugar que não seja apenas a Igreja e deixar que ações coletivas brotem. Foto: Cufa

É preciso retomar aquela energia de construção democrática que embalou a minha geração – a geração que nasceu na ditadura e cresceu com a democracia, que foi jovem durante a abertura e nela embarcou, seguindo o caminho que já estava semeado, sem suspeitar das sombras que espreitavam.

Para isso, requer-se tratar dessas sombras. Primeiramente nomeando-as, pois este é, no meu entender, o trabalho da filosofia: dar nome aos bois. Com os bois nomeados, fica mais fácil domá-los. E tem um nome, que está na boca do povo, um nome muito bom: neoliberalismo. É o neoliberalismo que nos assombra. Tem-se dito isso e acho que há aí um bom diagnóstico. A produção teórica contemporânea está caminhando para este desfecho – para o momento em que se tira o capuz do malfeitor e sua identidade, então, é revelada: o problema é o neoliberalismo. Depois de um tempo de certa hesitação sobre a pertinência do conceito (pelo menos de minha parte), já não restam dúvidas de que é um conceito revelador.

Mas, o que é o neoliberalismo? Para autores como Dardot & Laval e Wendy Brown, que seguem a trilha aberta por Foucault em O Nascimento da Biopolítica, o neoliberalismo não se reduz ao Estado que se retira da cena, deixando o desenvolvimento econômico a cargo do mercado e desincumbindo-se do papel de distribuir riquezas e produzir justiça. O neoliberalismo não se reduz a uma política econômica e não é sinônimo de privatização do que antes era dotado de valor público. O neoliberalismo é muito mais do que isso. É uma maneira de pensar, uma forma discursiva, uma gramática, uma certa racionalidade, um procedimento de produção de verdade, de valorização e legitimação de práticas, uma forma de subjetivação ou uma maneira pela qual os sujeitos se formam, concebem a si mesmos, projetam suas vidas e se deixam governar. Esta racionalidade toma conta inclusive do Estado, submetendo todas as esferas da vida à lógica econômica da competição. O neoliberalismo transforma o sujeito de direito em capital humano.

Em relação a essa maneira de compreender o neoliberalismo, quero insistir menos na forma de racionalidade em questão e mais nas consequências que ela traz para o campo social, seguindo uma trilha aberta W. Brown no primeiro capítulo de Nas Ruínas do Neoliberalismo, no qual a autora diz basicamente o seguinte:

  • A sociedade é o lugar por excelência da igualdade democrática, que, por sua vez, é o fundamento da democracia (a referência é Tocqueville, que define a democracia como um estado social igualitário). É também o espaço onde se produzem formas de dominação e opressão. A democracia requer o cultivo da “sociedade como o lugar em que experimentamos um destino entrelaçado (linked) em meio às nossas diferenças e ao que nos separa”; um espaço entre a Estado e a vida pessoal, em que se cultivam formas de emancipação, mas também de dominação.
  • No contexto do capitalismo e dos estados-nação modernos, o Estado tem um papel a cumprir na produção e defesa da igualdade democrática.
  • A racionalidade neoliberal destrói o social, no conceito e na prática, para colocar no lugar os indivíduos e a família, ao passo que o campo social é visto como invasivo. Gera assim uma cultura não democrática, que prepara o terreno para ascensão de Estados não democráticos.

Quero reter essa ideia: o neoliberalismo envolve a corrosão da sociedade. Isto posto, sigo por minha conta e risco, para focar no caso do Brasil.

Falamos no social, Estado social, campo social como o espaço em que a democracia se produz. Gostaria de introduzir outra expressão: tecido social. A sociedade civil é um tecido, feito de vínculos afetivos, morais, econômicos, religiosos e também de dominação, que pode ter maior ou menor coesão, a trama pode estar mais estreita ou pode estar esgarçada. O Estado tem um papel a cumprir para essa coesão, na medida em que dota o tecido social, perpassado por conflitos e diferenças, de uma unidade simbólica, fazendo do tecido um corpo. Do ponto de vista do Estado, tudo se passa como sefôssemos um corpo, um organismo bem articulado, porque estamos submetidos à mesma lei ou sistema legal, à mesma constituição e ao mesmo governo. E, sendo assim, é um fator de corrosão do tecido social que o Estado não consiga se oferecer como um representante, um signo da unidade ou coesão do social.

Este é o caso do Estado brasileiro, que é visto como (e é; mas, como ensina Maquiavel, o que importa em política é como as coisas aparecem) violento, corrupto, oligárquico, excludente, arbitrário, autoritário, burocrático, coercitivo. A racionalidade neoliberal vai ao encontro dessas percepções para esvaziar ainda mais o valor simbólico do Estado, colocando no lugar da unidade que ele representa, e com a qual dá coesão ao tecido social, o indivíduo e a família atomizada, como núcleo de desenvolvimento e educação dos indivíduos.

O bolsonarismo nadou de braçada aí – na descrença bastante justificada do Estado e o consequente desgaste do social. E temos de entender o bolsonarismo como algo que reflete a sociedade brasileira. Bolsonaro ganhou no voto e tem popularidade. As pessoas se veem naquela atitude: "não venham me encher com as amarras do social e do coletivo – multas ambientais, restrições sanitárias, ensino público. Sou livre, me garanto como posso, educo meus filhos como quero”.  Alguns estão inclusive dispostos a se armar para garantir isso.

E, assim, aquele movimento que já animou a sociedade brasileira, o pulsar democrático que chegou a brotar nela para se realizar, institucionalizar e virar lei nas estruturas do Estado desenhado pela Constituição de 1988, perdeu fôlego e refugou. É preciso reanimá-lo.

Mas isso – e aqui passo do plano do diagnóstico para o da ação (sobre o que não tenho experiência alguma) – não pode ser feito por meio ou a partir do Estado apenas, na forma de imposições legais e diretrizes administrativas. A sociedade tem que se reconhecer nessas leis e diretrizes. Para isso, tem que haver diálogo e participação. Não apenas participação nos espaços já institucionalizados, na esteira da Constituição de 1988. Nem tampouco participação na forma da contestação e resistência apenas, por mais importante que seja. Mas participação no sentido de vida social, de criação de institucionalidade a partir da sociedade, de projeto, reflexão e ação da sociedade sobre si mesma. Não dá para realizar um projeto democrático de país sem ir à sociedade, sem ouvir as pessoas e fazer com que falem: conversar, tirar do silêncio e da exclusão, criar espaço público, lugares de encontro, de ação comunitária, de produção de cultura, de reflexão política e social (o que é muito diferente de conscientizar, fazer trabalho de base). É preciso fazer isso nas periferias, nos territórios excluídos do Estado. Juntar pessoas num lugar que não seja apenas a Igreja e deixar que ações coletivas brotem daí (penso por exemplo na Cufa, Central Única das Favelas), deixar que a política aconteça, para que as pessoas se sintam como partes da sociedade que anima a estrutura formal do Estado e sobre a qual essa estrutura trabalha e se projeta, a fim de transformá-la.

Enfim, o Estado não pode ser visto e tratado apenas como um instrumento de desenvolvimento econômico. A disputa política não é apenas entre políticas econômicas e de desenvolvimento concorrentes e sobre o papel do Estado nisso tudo. A ênfase recaiu muito nisso. É preciso combater o neoliberalismo ao resgatar o Estado como instrumento de coesão simbólica do corpo social.

Este texto é resultado de participação no seminário do Núcleo Estadual de Políticas Públicas do Paraná (Nepp-PR), ligado à Fundação Perseu Abramo

Isabel Limongi é professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR)