Desde a sua apresentação à Câmara dos Deputados, em 10 de agosto de 2021, até o início da votação pela Câmara dos Deputados em 3 de novembro de 2021, a PEC 23/2021 – a “PEC dos Precatórios” – sofreu profundas alterações.
Embora tenha sido abandonada a proposta de alteração ao art. 100 da Constituição Federal (CF), na forma de novo § 20, que previa que a fixação, em caráter permanente, de um segundo limite para os precatórios a serem executados sem parcelamento, ela ainda viabiliza, pelo prazo de vigência do “Novo Regime Fiscal” (até 2036) um expressivo “calote” contra os credores dos entes federativos que obtenham decisões com trânsito em julgado, ferindo, assim, o art. 60, § 4º, IV da Constituição.
Atualmente, a CF prevê que, caso haja precatório com valor superior a 15% do montante dos precatórios apresentados para inclusão no Orçamento, 15% do valor deste precatório será pago até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos cinco exercícios subsequentes, acrescidas de juros de mora e correção monetária, ou mediante acordos diretos, perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Precatórios, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado. Em 2021, esse valor corresponderia a R$ 8,46 bilhões, e, em 2022, considerado o montante de precatórios inscritos de R$ 89,1 bilhões, seria de R$ 13,35 bilhões.
A PEC 23 propunha incluir, nessa regra, um segundo limite, que corresponderia, na justiça federal, a R$ 6,6 milhões, ou seja, 1000 x 60 salários-mínimos. Nesses casos, o que exceder a 15% do valor do precatório poderia ser pago em 9 anos, e não em 5. E o valor do precatório passaria a ser corrigido pela Selic e não mais pelo IPCA, o que reduziria o montante devido: nos últimos 12 meses encerrados em julho de 2021, a Selic anualizada foi de 5,25%; a inflação medida pelo IPCA foi de 8,99%. Assim, além da redução do índice de inflação, haverá também a perda dos juros de mora, o que reduzirá o valor devido pelo ente.
A alteração ao art. 100 foi suprimida, mas incluída uma nova regra no Ato das Disposições Constitucionais transitórias (art. 107-A) para adiar o pagamento de dívidas judiciais dos entes federativos, com efeitos até 2036.
Assim, ela continua ferindo drasticamente princípios constitucionais intocáveis, como o respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito; ela fragiliza a segurança jurídica e, a pretexto de gerar espaço fiscal para medidas de interesse dos mais necessitados, desorganiza as finanças públicas, estimula a irresponsabilidade fiscal e reduz a transparência das contas públicas. Em duas ocasiões anteriores, o STF já declarou inconstitucionais tentativas de alteração no regime de pagamento de precatórios (ADI 2362, com liminar deferida em 2010; e ADIs 4357 e 4425, julgadas em 2013), reconhecendo a ofensa ao art. 60, § 4º, IV, que veda emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais, como é o caso da intocabilidade da coisa julgada e do direito adquirido.
Nos termos do art. 107-A do ADCT, ainda pendente de apreciação em face de Destaque para Votação em Separado, haverá um teto para todas as despesas com sentenças judiciais, a ser observado até 2036, inclusive Requisições de Pequeno Valor (RPVs) e precatórios, deixando de lado a possibilidade de parcelamento, como previa a proposta do governo.
Mas o pagamento dependerá do montante fixado em cada ano, tomando como base o valor total pago em 2016, corrigido pelo IPCA ano a ano. Desse total, seriam deduzidos pagamentos de RPVs, e o que sobrar seria destinado aos precatórios.
Entre os precatórios a serem pagos, já em 2022, será observada a ordem cronológica e a preferência para débitos de natureza alimentícia (art. 100, § 1º e 2º da CF) decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, assegurada a prioridade para débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para as RPVs.
Essa medida terá efeitos já no Orçamento de 2022, e implicará em grande frustração da expectativa de pagamento dos precatórios, reduzindo o total previsto de R$ 89,1 bilhões para cerca de R$ 40 bilhões, ou seja, um calote de quase 50 bilhões em dívidas decorrentes de decisões judiciais. Embora seja assegurada prioridade às RPVs, isso dependerá do próprio montante do “teto” para as sentenças judiciárias; quando maior a despesa com RPVs, menor a dotação que será destinada aos precatórios, e esse montante observará, ainda, as regras de prioridade supramencionadas.
Assim, a cada ano, haverá uma “fila” de precatórios, tendo preferência os que não foram inscritos no ano anterior devido ao limite, gerando uma “bola de neve” que acarretará enormes prejuízos aos credores, e incentivará um mercado de precatórios, com deságio. Estimativas da Consultoria de Orçamentos da Câmara dos Deputados aponta que, até 2026, essa fila totalizará entre R$ 200 e R$ 250 bilhões, e as RPVs, que teriam preferência, absorveriam o total do limite para despesas judiciais já em 2028, totalizando uma dívida acumulada e não quitada de R$ 1,5 trilhões até 2036, quando se encerraria a vigência da PEC 23, o que levaria, fatalmente, a uma “prorrogação”.
Para receber antes e, assim, “furar a fila”, o credor de precatório já expedido e não incluído no PLOA, em 2022, poderá fazer acordos diretos perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Pagamento de Condenações Judiciais contra a Fazenda Pública Federal, para receber o valor em parcela única, até o final do exercício seguinte, com renúncia de 40%. Ou seja, para receberem, em 2022, o que lhes é devido e já está inscrito como dívida, o credor deverá se submeter a uma verdadeira chantagem, renunciando a 40% do valor a que faria jus. Esses valores objeto de acordo, não estarão sujeitos ao “teto” de despesas com sentenças judiciais (art. 107-A, § 6º e 7º).
Parcela importante dos precatórios de 2022 corresponde a dívidas da União com Estados, relativos à complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef). Após disputa de longos anos no STF, a União foi derrotada, e o valor devido inscrito como dívida para 2022, num total de R$ 16 bilhões. Essa dívida, na forma do § 8º do art. 107-A, terá precedência em relação às prioridades estabelecidas no art. 100 da Constituição Federal, com exceção àqueles destinados a idosos, deficientes físicos e portadores de doença grave, mas os precatórios expedidos em favor dos Estados e Municípios serão pagos em três parcelas anuais e sucessivas, sendo a primeira no valor de 40% em 2022, e as demais em parcelas iguais no valor de 30% em 2023 e 2024. Assim, do total devido, o governo poderá deixar de pagar, em 2022, R$ 9,6 bilhões.
Além disso, o texto em votação prevê, na forma do art. 100, § 11 da CF, que créditos devidos pelo ente estatal sejam usados, pelos credores, para a quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente devedor, mas também para compra de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente, disponibilizados para venda, pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e aquisição, inclusive minoritária, de participação em empresas estatais, e a compra de direitos, disponibilizados para cessão, do ente Federado. Ou seja, haverá uma “compensação” de valores devidos pelo ente, em troca de ativos e direitos, gerando privilégios e compra a preço vil desses ativos, dilapidando o patrimônio público.
A redação dada ao art. 167, III, “a” flexibiliza a “regra de ouro”, permitindo que sejam realizadas, em todos os entes da Federação, operações de crédito para custar despesas correntes, mediante simples autorização na lei orçamentária, incentivando a irresponsabilidade fiscal.
Na redação dada ao art. 167, § 7º e § 8º, fica permitida a “securitização” da dívida ativa, ou seja, a dívida ativa dos entes públicos considerada de “difícil recuperação” poderá ser vendida no mercado, para gerar receitas imediatas, com perdas de recursos para os entes, que não terão preocupação em investir na cobrança dessas dívidas, o que estimula a ineficiência da administração tributária e sua execução. O texto (§ 7º, ainda pendente de apreciação) permite que os recursos originados dessa operação sejam vinculados a fundos ou despesas, como pagamento da dívida pública, ou como lastro de títulos emitidos em função da securitização, o que é vedado pelo art. 167, IV da Constituição quanto à receita de impostos. Assim, além de abrir mão de receitas, esses recursos poderão ser vinculados a despesas que não atenderão ao interesse da sociedade.
O art. 3º da PEC, originário da proposta do Executivo, altera a regra de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora das dívidas judiciais dos entes estatais, que passam a ser corrigidos pela taxa Selic, em lugar da correção pela variação pela Selic ou IPCA mais 6% ao ano, conforme a natureza do precatório. Essa medida, caso mantido o comportamento da Selic observada nos últimos 3 anos, implicará em redução dos valores devidos, não refletindo a perda do poder aquisitivo da moeda, gerando um novo tipo de “calote” e insegurança jurídica.
Já o art. 5º revoga o art. 108 do ADCT, que prevê a possibilidade de revisão, a partir de 2027, do método de correção do teto de despesas, ou seja, engessa, até 2036, o teto de despesas da EC 95, comprometendo ainda mais as necessidades do Estado no financiamento das políticas sociais.
Inovando em relação ao texto original, a Emenda Aglutinativa nº 1 à PEC 23/2021, apresentada em Plenário pelo Relator, permite que o “teto de despesas” fixado pela EC 95, na forma do art. 107 do ADCT, passe a ser corrigido, a partir de 2022, com base no IPCA do exercício, e não mais com base na variação de julho a junho do ano. Essa correção, dado o comportamento da inflação (INPC e IPCA) garantirá uma “folga fiscal” adicional ao governo, em 2022.
No total, o espaço fiscal em 2022 poderá ser ampliado em cerca de R$ 91 bilhões, devido ao parcelamento de precatórios e à correção do teto de despesas. Mas esse espaço deverá, também, cobrir despesas como educação (R$ 3,9 bilhões), saúde (R$ 1,8 bilhão) e previdência e assistência (R$ 24 bilhões), que estão subestimados no PLOA 20221. Parcela será incorporada pelos orçamentos do Judiciário e Legislativo, inclusive com possibilidade de que venha a ser empregada para aumento do Fundo de Financiamento de Campanhas Eleitorais; e, ainda, deverá ser empregada para aumentar a despesa discricionária do Executivo, por meio de emendas do relator ao PLOA 2022, em montante estimado em R$ 16 bilhões.
Do restante, o governo pretende utilizar em torno de R$ 50 bilhões para custear o novo “Auxílio Brasil”, benefício que sucede o “Bolsa Família”, de forma a garantir benefício mínimo de R$ 400 até dezembro/2022.
E, além disso, a PEC 23/2021 incluiu dispositivo para permitir a edição de crédito extraordinário para o pagamento de despesas com vacinas contra a Covid-19 ou relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico, no valor de R$ 15 bilhões, em 2021 (art.4º, § 1º da PEC), o qual não será considerado para fins da “regra de ouro”, e independerá da declaração de calamidade pública. Esse valor poderá ser empregado, em 2021, para a renovação do auxílio-emergencial destinado a mitigar efeitos da Covid-19 na renda de pessoas carentes e desempregadas, e isso tem sido utilizado como meio para “legitimar” a aprovação da PEC perante a opinião pública. No entanto, para esse fim, não seria necessária PEC, pois bastaria a edição de medida provisória, e a aprovação do Legislativo de novo decreto de calamidade pública, com efeitos transitórios, de forma mais simples que a aprovação de uma PEC.
Também visando a obter o apoio das bancadas estaduais, prefeitos e governadores, a PEC incorporou dois artigos (art. 116 e 117 do ADCT), permitindo o parcelamento de dívidas de contribuições previdenciárias dos entes federativos com os respectivos regimes próprios de previdência social e com o RGPS, com vencimento até 31 de outubro de 2021, inclusive os parcelados anteriormente, no prazo máximo de 240 meses, desde que comprovem ter alterado promovido as respectivas “reformas da previdência”, nos moldes aprovados pela EC 103/19 para os servidores federais. As dívidas com o RGPS terão redução de 40% das multas de mora, de ofício e isoladas, de 80% dos juros de mora, de 40% dos encargos legais e de 25% dos honorários advocatícios. Não foram apresentadas estimativas de renúncia de receitas, decorrentes desse “parcelamento”.
A forma como foi elaborada e aprovada a Emenda Aglutinativa nº 1, se deu à revelia dos requisitos regimentais e constitucionais: ela não foi baseada em emendas apresentadas à Comissão Especial, no prazo regimental de 10 sessões a contar de sua instalação, e não havia, portanto, emendas a aglutinar. Foi uma construção “política” desenhada para obter o apoio de parlamentares hesitantes, e garantindo o apoio de governadores de forma a assegurar o pagamento dos precatórios do Fundeb, ainda que de forma parcelada em 3 anos. Esse fato levou à judicialização da própria votação da emenda, mas com escassas chances de acatamento pelo STF, que, em geral, não interfere na tramitação de Propostas de Emendas à Constituição, mas julga se houve inconstitucionalidade apenas após a sua promulgação, o que levaria a um longo período até que haja pronunciamento do Judiciário.
Até a conclusão da votação em primeiro turno, deverá haver, ainda, pelo menos 8 votações pelo plenário, em vista de destaques para votação em separado, que objetivam suprimir pontos importantes da PEC. Para assegurar a vitória, o governo já vem investindo na liberação de emendas parlamentares2, com empenho pessoal do presidente da Câmara dos Deputados no “convencimento” dos deputados.
Mesmo que a votação em primeiro turno seja concluída e tais dispositivos, preservados, ainda haverá a votação em segundo turno, e novos destaques, que ainda poderão alterar o conteúdo do texto a ser submetido ao Senado, onde também precisará ser aprovado por três quintos de votos dos senadores, em dois turnos de votação. Esse é o caminho mais viável para que os vícios da PEC 23/2021 sejam superados.
Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo, professor Colaborador da EBAPE/FGV, sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP) e mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais/Estudos Comparados (UnB)