Sociedade

Quais os paradigmas que levam outras pessoas a violentar física e moralmente a dignidade de pessoas que expressam sua fé a partir de uma matriz diferente da sua?

1ª Conferência do Povo do Terreiro do Rio Grande do Sul (2014).

No dia 23 de julho de 2020, na 5ª Reunião da Bancada do PT no Senado com o Movimento Negro, fiz um pronunciamento na tentativa de retratar a luta coletiva do movimento do povo de terreiro no combate ao racismo religioso e a defesa da laicidade do Estado. O texto, que ora apresento, é uma síntese desse pronunciamento contribuindo, como uma gota no oceano, na construção de estratégias no combate à intolerância religiosa. E o faço movida pelo compromisso de estar, constantemente, à procura de instrumentos que viabilizem a pauta de luta do povo de terreiro, como uma ferramenta estratégica na reorganização política, a partir dos princípios civilizatórios da tradição de matriz africana e afrodiaspórica, que reúne saberes e vivências capazes de saciar a fome coletiva em busca respostas na diversidade, no pluralismo, na coletividade, na ancestralidade e no bem viver de todos e para todos.

Falar de racismo religioso, em tempos de ataque à democracia, é falar da resistência desde que aqui chegou o primeiro homem africano e a primeira mulher africana, arrancados do Berço da Humanidade e despojados de sua dignidade de ser o que se é. Com isso quero, humildemente, dedicar essa escrita à Mãe Gilda, que morreu por conta da intolerância religiosa e, ainda hoje sofre racismo religioso, como foi o ato criminoso em que o seu busto foi violado.

O grito do povo de terreiro tem sido contundente para explicitar como o Estado brasileiro tratou e continua tratando a expressividade religiosa da tradição de matriz africana. Mesmo com a Constituição Federal de 1988, o Decreto 6040, a Convenção 169 da OIT, ainda é submetido a buscar autorizações e alvarás nas prefeituras ou submeter-se a processos de um Judiciário, de um Ministério Público, que o considera baderneiro e contraventor da ordem pública, obrigando que se renove a luta contra projetos de lei que criminalizam as manifestações religiosas de origem africana e afrodiaspórica e consolidam a opção do Estado em não reconhecer e aprofundar políticas públicas que coíbam a violência e o avanço do fundamentalismo religioso em detrimento da frágil laicidade do Estado brasileiro.1

A luta coletiva e da resistência de um povo cuja expressão da religiosidade quando percebida enquanto folclore é permitida e, muitas vezes, equivocadamente, ou pejorativamente imitada, mas quando se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência, o racismo se expressa na sua forma mais violenta e cruel, utilizando-se de mecanismos que tornam invisíveis as motivações criminosas daqueles que se colocam na categoria de intolerantes religiosos. No Brasil, não é intolerância religiosa. É racismo e, sendo assim, é crime.

Diante disso, a análise e a reflexão política, em tempos de resistência, devem se apresentar, para além do discurso, conectadas com a realidade do cotidiano e da luta do povo de terreiro; povo que ressignifica geotopograficamente os princípios civilizatórios da tradição de matriz africana, em todo território brasileiro comunicando seu propósito com a mesma potência das forças de Èṣù- Ẹlẹ́gbára, o Mensageiro da Comunicação, Senhor do Corpo e dos Caminhos, que ensina que, em tempos de ataque à democracia, há que se convergir na busca de estratégias revolucionárias para a construção de um mundo gerenciado pelo amor, pela solidariedade, pelo respeito, pela união.

O povo de terreiro atua enquanto pessoa no coletivo e, portanto, os desafios nunca são do indivíduo e os ataques a um serão sempre entendidos como a toda coletividade. Esse modo de vivenciar o mundo, faz com que se resista até aqui, como um taquaral que se curva à passagem das tempestades, mas jamais se quebra, pois é na luta, como Ògún, o Senhor do Ferro, da Guerra, da Agricultura e da Tecnologia, que se forjam as próprias armas e ferramentas no enfrentamento dos ataques em tempos de ataque ao direito de cultuar o sagrado.

Na diáspora africana, preservar a vida está subscrito no legado dos antepassados: a resistência. Viver neste país, para negros e negras, sempre foi sinônimo de luta e de resistência. Luta e resistência que são conferidas pela força de Yánsàn, Senhora dos Ventos e da luta pela Liberdade, luta que o povo negro faz, na diáspora, desde meados do século 16 até os dias de hoje, num desafio constante e intermitente como as ondas do mar, em um vai-e-vem nem sempre tranquilo e sereno, mas em determinados momentos provocando tsunami destruindo conquistas históricas como nos tempos de hoje.

Em tempos de ataque à democracia, à resistência e à preservação da vida, é preciso potencializar as forças em circularidade, pois se o mundo gira pela força da mudança, de estratégias e de novos paradigmas, a Natureza Guerreira de Ọbà, a Senhora do Poder Político Feminino, organiza na luta e no girar da Roda Mítica que movimenta o mundo, na troca do saber legitimado pelo rigor da oralidade que se transmite e se compartilha. Saber legitimado pela força do Machado de Ṣàngó, Senhor do Fogo, da Fala Sagrada e da Justiça Mítica do Equilíbrio das Forças da Natureza, para que as escolhas sejam colocadas na balança e as mentiras sejam desveladas e, mais uma vez, desafiar a encontrar estratégias de mobilização, para que no futuro se possa declarar que se contribuiu para a erradicação do racismo, assim como de todas as intolerâncias.

É preciso resistir diante daqueles que se apropriam do Estado, como se fosse propriedade privada, anunciando a morte e a destruição do direito de realização do outro. É preciso resistir e acreditar na radicalidade da democracia, no poder da Radicalidade Sagrada de Obaluaie, o senhor que vinga o malfeito, o desrespeito e a desonestidade, o Senhor da Vassoura Mítica que fortalece o grito que afugentara todos os usurpadores da democracia.

Há gritos entalados nas gargantas, embaixo de botas que sufocam os pescoços. Mas haverão de soltar todos os gritos que libertam, que emancipam, que anunciam possibilidades de mudança na realidade cotidiana desse povo que move esse país num intenso desejo de ser novamente uma nação respeitada no mundo inteiro, por ter erradicado a fome, o analfabetismo, a falta de moradia digna e se orgulhe da produção científica, da pujança de suas empresas e do melhor sistema de saúde do mundo.

Tem-se uma longa caminhada cujo condutor tem sido a energia vital que se faz semelhante a tudo que existe e que se nutre na proteção e preservação da Caça e do Caçador, pela benção dos Orixás Ọdẹ e Ọtin, Casal Mítico, Senhor e Senhora Provedores do Alimento do Corpo e do Espírito. Alimento que dá o conhecimento e fortalece o contato com a espiritualidade da tradição de matriz africana, na diáspora, milenarmente, repassado e ativado pela própria natureza da qual provém, que não se pauta por um livro sagrado, não tem uma bíblia, mas segue o rigor da oralidade.

É na Força Ser que é forjada no amor e na luta pela vida e pela liberdade que se fortalece a resistência do povo de terreiro, dos Povos da Tradição Civilizatória de Matriz Africana e Afro-brasileira no combate aos crimes de racismo e ódio religioso, crimes circunscritos na ideologia da supremacia de uns poucos sobre muitos. Por isso, defender o sagrado é lutar, com urgência absoluta, contra o extermínio do povo negro. É lutar contra as diferentes formas de violência. É posicionar-se frente à história; é restaurar o projeto de vida em comunidade; é lutar pela manutenção das tradições e pelo direito a vivenciá-las, pelo direito intrínseco à existência e ao modo de estar e de ser no mundo. É lutar pela preservação dos ambientes, dos territórios material e imaterial, da preservação das matas, das florestas, das águas e dos espaços sagrados no culto de Ọ̀ sányìn, Senhor das Folhas, aquele que guarda o segredo das plantas e das folhas que curam.

Em tempos de reconstrução de unidade na luta anticapitalista, de combate às práticas fascistas, de negação da ciência e dos avanços tecnológicos, a resistência do povo de terreiro está subscrita na energia criadora de Yemọjá, Senhora Dona do Pensamento, a Grande Mãe Cuidadora de Toda Humanidade, que abençoa cada vez que se caminha junto e as ideias se harmonizam no enfrentamento dos retrocessos de conquistadas coletivas.

São muitos os desafios. Desafio que é um só, mas que se dá em muitas frentes defendidas com o espelho mítico que Ọ̀ ún, a Senhora da fertilidade, das Riquezas Naturais, da Beleza, que concebe a diversidade como um direito sagrado de expressar o propósito de vida de cada pessoa, enquanto Ser Força e Guardiã dos bens da comunidade. E aqui cabe uma pergunta:

Quais os paradigmas que levam outras pessoas a violentar física e moralmente a dignidade de pessoas que expressam sua fé a partir de uma matriz diferente da sua?

A ausência de respostas declara a dificuldade de superação do racismo e consolida a opção do Estado em não reconhecer e aprofundar políticas públicas que coíbam a violência e eliminem os marcadores raciais das ações repressoras do Estado, escamoteando a realidade vivida no dia a dia pela população negra, na qual o preconceito perpassa todos os segmentos sociais, especialmente diante do fundamentalismo religioso que tem se caracterizado por práticas teocráticas, baseando-se numa leitura equivocada dos princípios que fundam as religiosidades. Mas basta! Nós queremos colocar o bode na sala. Um bode que tem permitido que invadam nossos terreiros, que matem nossos jovens, que coloquem o joelho e a bota no nosso pescoço e as balas de fuzis em nossos peitos quando matam nossa juventude e estrangulam o futuro desse país.

Portanto, a força, o fazer política, as ações, a luta e o saber dos antepassados estão representados nos fios de conta. Cada conta significa uma pauta de luta, um símbolo da luta pelo sagrado, símbolo pela ancestralidade, símbolo de luta de indignação pelo descaso e descompromisso do Estado, para com a pauta do combate ao racismo, às discriminações, a intolerância religiosa que violenta e mata.

E é por tudo isto que até Òṣàálá, o Senhor da Criação, do Pano Branco, da Paz, “também vai à guerra”, também sai dos terreiros para fazer política em tempos de resistência, diante do desmonte do que foi construído pelo suor, sangue e conhecimento do povo negro, desmonte causado pelo racismo antinegro, escondido sob o manto dos interesses do capital, da luta de classe e do crime de racismo cultural e religioso.

Ìyá Sandrali de Ọ̀ ún é o nome de identidade religiosa de Sandrali de Campos Bueno, psicóloga, especialista em Criminologia. Servidora pública. Autoridade Civilizatória de Tradição de Matriz Africana e Afrodiaspórica do Batuque do Rio Grande do Sul. Secretária Executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenadora do GT Mulheres de Axé do Núcleo RS da Rede Nacional. Secretária-geral do Conselho Municipal do Povo de Terreiro de Pelotas. Coordenadora do Coletivo Político Negratividade/PTRS. Coordenadora do Coletivo Antirracista O Melhor de Cada Uma/Pelotas/RS. Coordenadora de Formação do Movimento Negro Unificado/RS. Integra a Comissão Operativa do Fórum Inter-religioso e Ecumênico pela Democracia/RS e o Comitê Inter-religioso/Pelotas/RS. Integra a Executiva do PT/Pelotas. Integra o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Igualdade Racial-FPA