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As comunidades quilombolas apresentam um processo crescente de mobilização e organização, cuja pauta é a busca pela efetivação dos seus direitos, com ênfase para o direito à terra
 

A ideia de aquilombar-se reside nas várias estratégias impetradas pelos quilombos, ao longo da história, para manterem-se íntegros física, social e culturalmente. Foto:Conaq

O movimento de luta das comunidades quilombolas por seus direitos e por sua identidade é histórico e político. Traz em seu íntimo uma dimensão secular de resistência, na qual homens e mulheres buscavam o quilombo como possibilidade de se manterem física, social e culturalmente, em contraponto à lógica escravocrata.

As lutas pela defesa dos territórios se fazem presentes em diferentes períodos históricos em muitas comunidades atualmente categorizadas e que se auto identificam como quilombolas. Estas possuem uma multiplicidade de denominações em seus distintos contextos, tais como “terras de preto”, “terras de santo”, “mocambos”, “quilombos”, dentre outras.

A luta pelos seus territórios, organizada a partir do Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, traz uma nova moldagem para essa mobilização. Resulta, alguns anos após a sua promulgação, nas primeiras terras quilombolas tituladas no Brasil.

A resistência quilombola traz em si um processo de construção que há muito se dá na história do país, e que se processa de diferentes modos de acordo com os contextos de cada período. A ocupação das terras brasileiras pelo poder colonial abarcou quase quatro séculos da histórica do país. Após a abolição formal da escravidão (Lei Áurea nº 3.353, de 13 de maio de 1888), levou-se cem anos para que fossem reconhecidos os direitos às terras aos descendentes dos antigos quilombos, através do Art. 68 do ADCT, incluído na Constituição Federal de 1988.

Hoje, após mais de três décadas de vigência do Artigo 68, pouco mais de duzentas comunidades tiveram seus territórios reconhecidos. São cerca de 6 mil comunidades quilombolas no Brasil (Conaq, 2021), das quais mais de 3 mil são certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Portanto, um universo muito restrito tem direito ao seu território tradicional assegurado. A fragilidade da efetivação desse direito se expressa no processo lento e árduo de titulação das terras quilombolas.

Esse quadro tem amplificada sua complexidade com a conjuntura atual apresentada na qual há uma fragilização acentuada das políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas, com ênfase para a paralisia e inoperância das políticas fundiárias pelo órgão federal responsável. A desestruturação e o esvaziamento das políticas públicas para as comunidades quilombolas ganha maior impacto no contexto atual vivenciado de pandemia da Covid-19 (pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020).

O movimento de aquilombar-se, de luta pela garantia da sobrevivência física, social e cultural, é histórico. Abarca uma dimensão secular de resistência e luta dos africanos e seus descendentes, muitas vezes em conjunto com indígenas e até brancos, e chega aos dias atuais na batalha pela garantia de direitos fundamentais, como a titulação das terras que tradicionalmente ocupam as comunidades quilombolas.

O objetivo deste artigo é abordar as dimensões político-organizativas estabelecidas entre as comunidades no “movimento quilombola”, em um olhar histórico e panorâmico da articulação em nível nacional e estadual.

Aquilombar-se

A ideia central do movimento de aquilombar-se reside nas várias estratégias e mobilizações impetradas pelos quilombos, mocambos, terras de preto, terras de santo (dentre outras denominações existentes) ao longo da história do país, para manterem-se íntegras física, social e culturalmente. A perspectiva de resistência é intrínseca, porém a resistência traz em si a concepção fundamental de existência. Essa existência histórica fundamenta-se e ressemantiza-se no presente, no existir atual.

Aquilombar-se é, portanto, uma ação contínua de existência autônoma frente aos antagonismos que se caracterizam de diferentes formas ao longo da história dessas comunidades, e que demandam ações de luta ao longo das gerações para que esses sujeitos tenham o direito fundamental a resistirem e existirem com seus usos e costumes. Esse existir tem um movimento fortemente voltado para a coletividade, para os laços que unem os quilombolas entre si e que, num movimento mais amplo e recente, une as comunidades de distintas regiões.

Ivo Fonseca, liderança quilombola da Conaq e da Aconeruq, aborda o movimento de lutas das comunidades quilombolas, numa perspectiva histórica de processo: “O Movimento quilombola pode se associar ao movimento contra a escravidão. Você pode ver que as nossas lutas de hoje não são muito diferentes [daquelas] da época da escravidão”.

Givânia Silva também reflete sobre esse processo mais amplo de resistência das comunidades quilombolas:

“Os desafios de hoje são os desafios de ontem. Por que os de ontem? Porque esses foram o desafio da superação dos navios, da escravidão, do anonimato, do abandono etc. Os de hoje não são esses, mas tem a mesma finalidade que é anular qualquer possibilidade de que preto nesse país seja tratado como o restante da população. Quando a grande imprensa, o latifúndio, setores conservadores da sociedade reagem contra essa política nós entendemos que o que está acontecendo hoje é o mesmo que aconteceu ontem, só que por outros meios e outros mecanismos. O que está posto é a certeza de que cada vez mais precisamos estar unidos. É uma luta árdua e, acima de tudo, é uma luta coletiva”.

Creio que apresentar a dimensão de que o movimento quilombola compõe-se de um processo histórico de luta pela existência, a partir de seus usos e costumes, seja um elemento estrutural da perspectiva do aquilombar-se. Esse movimento marca a oposição aos antagonismos que se fizeram e se fazem presentes nas mais variadas situações vivenciadas pelas comunidades, seja no período escravocrata, seja no período posterior à dita “abolição” da escravidão.

A sociedade brasileira, no pós-abolição, não efetivou um processo concreto de reconhecimento da população negra em sua diversidade como parte constitutiva sua e construiu ao longo dos séculos 19, 20 e 21 um complexo enredo de desigualdade racial. Os segmentos e grupos empobrecidos de descendentes de africanos, cuja boa parte era de escravizados, mesmo após a abolição da escravidão e a Proclamação da República permaneceram em completa e violenta desigualdade. Todavia, não apenas a opressão marca os processos vivenciados por esses grupos. É fundamental lembrar a importância que tiveram os movimentos, resistências e reações por parte da população negra.

No período posterior a 1888, além da grande desigualdade, a população negra de modo geral e as comunidades quilombolas, em especial, são fortemente invisibilizadas no escopo do Estado. O debate e a tônica que trazem para a sociedade brasileira a discussão sobre a questão quilombola, no século 20, são frutos de um longo processo. Os movimentos negros urbanos tiveram grande peso nesse contraponto à invisibilidade. Somado a isso, e caracterizando-se como o grande marco desse processo, está a força e resistência das comunidades quilombolas, que perpassaram a história do Brasil com uma diversidade de formações e abrangendo todas as regiões do país e chegam ao século 21 reivindicando seus direitos fundamentais, com ênfase no direito à terra.

Os movimentos negros urbanos, nesse debate sobre a questão quilombola, são muito relevantes. A discussão sobre os quilombos tem voz na Frente Negra Brasileira, nos anos 1930; surge em movimentos dos anos 1940, 1950, tais como o Teatro Experimental do Negro (Abdias do Nascimento) e ganha fôlego no bojo da institucionalização do movimento negro, nas décadas de 1970 e 1980.

Com o acirramento dos conflitos fundiários, reflexo do intenso levante grileiro das décadas de 1970 e 1980, as comunidades quilombolas se juntaram às organizações do movimento negro urbano, às vinculadas à luta pela reforma agrária e empreenderam forte mobilização pela visibilidade da questão das comunidades negras rurais, terras de preto e mocambos em diversos estados do país.

Essa mobilização se materializou de modo bastante significativo nos encontros realizados pelas comunidades negras para discutir perspectivas legais visando outras configurações fundiárias. Os estados que marcaram as primeiras mobilizações articuladas das comunidades quilombolas foram o Maranhão, o Pará, Bahia, São Paulo, Goiás e o Rio de Janeiro.

A mobilização dos movimentos negros (abarcando os movimentos quilombola, de mulheres, urbano, dentre outros) em conjunto com outros parceiros, colocou em pauta o direito à terra às comunidades quilombolas e, por fim, levou à aprovação do Artigo 68 medida de caráter de reparação aos negros pela dívida histórica da sociedade brasileira para com a população afrobrasileira.

O Artigo 68, do ADCT da CF de 1988, marca um divisor de águas da categoria quilombo no escopo legal do Estado, uma vez que de categoria de transgressão e crime (presente nas legislações coloniais e imperiais brasileiras), passa para categoria que reivindica direitos.

O período posterior ao Artigo 68 tem sido marcado por uma grande inoperância do Estado no que diz respeito à sua implementação e por uma crescente organização e mobilização das comunidades quilombolas, cuja pauta se volta para a efetivação de seus direitos, com destaque para o direito à terra.

Nesse processo crescente de mobilização das comunidades quilombolas, é importante mencionar que para além do fortalecimento de organizações em âmbito local ou estadual, as comunidades passam a estabelecer articulações nacionais.

Em 1995, no I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado durante a Marcha Zumbi dos Palmares, é criada a Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais Negras Quilombolas. No ano seguinte, durante o Encontro de Avaliação do I Encontro Nacional de Comunidades Quilombolas, realizado em Bom Jesus da Lapa (Bahia), é constituída a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, que tem como caráter central se constituir como movimento social, não se configurando como outras formas organizativas tais como organizações não governamentais, sindicatos ou partidos políticos.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) é a integração das organizações locais e estaduais de quilombos. Os processos de algumas das organizações quilombolas estaduais foram descritos acima de modo mais detalhado. Entretanto, a composição da Conaq é mais ampla. De sua composição se destacam associações, federações, coordenações e comissões que têm como característica a luta pelos direitos das comunidades quilombolas. Organizam-se de modo apartidário e autônomo, com ênfase para o fato de que se figuram como instâncias das comunidades, voltadas especificamente aos objetivos delineados nas localidades das quais provém. Cada estado apresenta sua dinâmica e sua forma de estruturar sua rede de ação política.

Destaco a seguir as organizações estaduais quilombolas que integram a Conaq:

  • Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas de São Paulo
  • Coordenação Estadual de Quilombos do Rio Grande do Norte
  • Coordenação Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de Pernambuco
  • Federação Estadual das Comunidades Quilombolas de Sergipe – FECQS
  • Federação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul – FACQ/RS
  • Conselho Estadual das Comunidades e Associações Quilombolas do Estado da Bahia – CEAQ/BA
  • Coordenação Estadual das Comunidades Negras Quilombolas da Paraíba – CENEQ
  • Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’ Golo
  • Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ
  • Comissão Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará – CERQUIRCE
  • Federação Estadual das Comunidades Quilombolas do Paraná – FECOQUI
  • Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí
  • Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas e Remanescentes de Alagoas – Ganga Zumba
  • Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO
  • Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará – MALUNGU
  • Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado do Espírito Santo ‘Zacimba Gaba’
  • Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro – ACQUILERJ

Muitos estados possuem uma organização e mobilização política que antecedem a Conaq e que, inclusive, foram fundamentais para sua constituição. Em outros casos, foi exatamente a constituição da Conaq e as mobilizações nacionais empreendidas que tornou possível a criação de organizações quilombolas nos níveis regionais e estaduais, nas cincos regiões do país.

Além dessas articulações com organizações nacionais, a Conaq conta com coletivos temáticos que articulam projetos e ações específicas para: Mulheres, Juventude, Saúde, Educação, Covid-19, Jurídico e Comunicação.

Considerações Finais

As comunidades quilombolas apresentam um processo crescente de mobilização e organização, cuja pauta é a busca pela efetivação dos seus direitos, com ênfase para o direito à terra. É importante ressaltar o enorme passivo do Estado brasileiro para a efetivação dos direitos quilombolas, materializado pela escassez de recursos, meios técnicos e infraestrutura, além dos graves conflitos presentes em parte dos territórios quilombolas. Contudo, é visível o crescimento dessa rede que reúne comunidades de diferentes realidades, reunidas a partir de uma pauta comum de reivindicação de direitos.

A inoperância do Estado para efetivar a titulação das terras das comunidades quilombolas, a resistência e as barreiras para a efetivação de políticas estruturadas a partir de uma ótica pluriétnica refletem o histórico silenciamento promovido pelo Estado brasileiro com a diversidade. Nessa perspectiva, ao reivindicarem sua existência e suas especificidades, as comunidades lutam contra os antagonismos construídos pelo próprio Estado brasileiro historicamente.

Aquilombar-se relaciona-se fundamentalmente ao movimento quilombola, pensando-o como proveniente da luta pela garantia dos direitos desses grupos. Essa trajetória de luta tem múltiplas facetas, sendo uma delas a institucional, das coordenações, associações e federações, o que se soma às outras formas de resistência das comunidades. O central é que aquilombar-se remete à luta contínua não pelo direito a sobreviver, mas pelo de existir em toda a sua plenitude. Trata-se da luta pela existência física, cultural, histórica e social das comunidades quilombolas.

Bárbara Oliveira Souza é doutora em Antropologia pela UnB, pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (UnB), é professora voluntária da Universidade de Brasília vinculada ao Neab/Ceam/UnB, onde ministra disciplinas sobre a questão racial, povos e comunidades tradicionais e sustentabilidade. Atua como pesquisadora sênior no Projeto Quilombos e Educação, financiado pelo Ceert

Referências

BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.

Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial: MARCHA ZUMBI contra o racismo, pela cidadania e a vida – Brasília: Cultura Gráfica e Editora, 1996.

NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Rio de Janeiro: Fundação Palmares/OR Editor Produtor Editor, 2002. (2ªed. Brasília).

CONAQ - Coordenação Nacional das Comunidades Negras rurais Quilombolas do Brasil e Terra de Direitos. Racismo e Violência Contra os Quilombolas no Brasil. Curitiba, 2018.

SOUZA, Bárbara Oliveira. Aquilombar-se: panorama sobre o Movimento Quilombola Brasileiro. Curitiba: Appris Editora, 2016.

Entrevistas com:

Ivo Fonseca, liderança quilombola da comunidade de Frechal – Maranhão

Givânia Silva, liderança quilombola de Conceição das Crioulas – Pernambuco

Sites:

www.conaq.org.br

www.incra.gov.br

www.palmares.gov.br