Sociedade

O confinamento aumentou a frequência e a gravidade dos episódios de violência doméstica, em todas as suas variantes: psicológicas, sexuais, morais, entre outras

A pandemia impôs desafio ainda maiores para o enfrentamento da violência contra a mulher. Foto: Arquivo EBC

A violência na pandemia

A violência é um fenômeno social, complexo e multifatorial que afeta pessoas, famílias e comunidades. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a violência como um problema de saúde pública.

A violência de gênero contra as mulheres, em especial a violência doméstica é a expressão mais perversa da desigualdade de gênero e da assimetria das relações de poder existentes e é um dos mais graves problemas a serem enfrentados na sociedade. Ocorre diariamente no Brasil e em outros países, apesar de existirem inúmeros mecanismos constitucionais de proteção aos direitos humanos das mulheres.

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência.  (SAFFIOTI, 2004, p. 75).

A violência contra a mulher acontece em casa, em momentos de convivência familiar e não se manifesta apenas nas agressões físicas ou no abuso sexual, mas também pelo abuso psicológico, pela violência moral e patrimonial por “parceiros” e outros familiares. Nenhum homem se transforma em agressor só porque está confinado, mas para os homens que já possuem um padrão violento, esses fatores podem desencadear condutas de agressão ou intensificar uma agressão já existente.

A violência contra as mulheres sempre existiu e ainda é muito forte e naturalizada na sociedade atual e é uma violência aceitável em muitos casos, uma situação altamente complexa. As mulheres e meninas estão sendo ameaçadas, espancadas, estupradas e/ou morrendo dentro de casa, onde deveria ser o local que estariam seguras e protegidas.  As mulheres negras estão entre as que mais sofrem de violência doméstica no Brasil e são as principais vítimas de homicídio e feminicídio.

Segundo o Atlas da Violência de 2021, 66% das mulheres assassinadas no Brasil, são negras. Isto é, a cada 10 mulheres mortas, 6 são negras. Nesses casos, encontra-se tanto as mulheres que foram vitimadas em razão de sua condição de gênero feminino, ou seja, em decorrência de violência doméstica ou familiar ou quando há menosprezo ou discriminação à condição de mulher, como também as vítimas da violência em geral, como roubos seguidos de mortes e outros conflitos. Portanto, a raça é determinante no desfecho da violência contra a mulher no país.

Pesquisadoras negras mostram que os estereótipos construídos ao longo de séculos têm influência na construção das identidades e vulnerabilizam a mulher negra, ao “autorizar” violações contra elas. É o que a socióloga e autora norte-americana feminista Patricia Hills Collins chama de “imagens de controle”: ideias que são aplicadas às mulheres negras e que permitem que outras pessoas as tratem de determinada maneira. Dessa forma, quatro estereótipos racistas se destacam: o da mãe preta, que é a matriarca ou subserviente; o da negra de sexualidade exacerbada que provoca a atenção masculina; o da mulher dependente da assistência social; e o da negra raivosa, produtora da violência, não a receptora. Essas ideias vão, inclusive, na contramão de mitos que normalmente foram construídos em torno da imagem da mulher branca, como o da fragilidade feminina, da exigência de castidade, da divisão sexual do trabalho em que o homem é o provedor e a mulher é a cuidadora. (Az Mina, 2019)

O Relatório Global da OMS, com base em dados de 2000 a 2018, coloca que 01 em cada 03 mulheres em todo o mundo (cerca de 736 milhões de pessoas) sofre violência física ou sexual, principalmente por um “parceiro” íntimo. Essa violência começa cedo: uma em cada quatro mulheres jovens (de 15 a 24 anos) que estiveram em um relacionamento já terá sofrido violência de seus ¨parceiros¨ por volta dos vinte anos (ONU Mulheres, 2020).

Dados atuais mostram que com a Covid-19 e a necessidade do isolamento social, os índices e as ocorrências de violência doméstica contra mulheres e meninas aumentaram consideravelmente no mundo.

A pandemia desencadeou alterações bruscas na vida das famílias e da sociedade em geral. As restrições nos deslocamentos, para prevenir ou diminuir a taxa de transmissão da Covid-19, perturbam a rotina de modo geral, adicionando tensionamento e estresse. As crianças, em geral, estão fora da rotina escolar/creche, com acesso restrito a atividades de grupo e esportes. Homens e mulheres estão em trabalho remoto ou impossibilitados de trabalhar, o que também implica em sobrecarga, desafios na conciliação de rotinas da casa e com cuidados com crianças e outros membros da família. Sendo assim, é possível que as pessoas sintam preocupação recorrente sobre ser infectado, ficar doente, como garantir a subsistência, como encontrar novas opções de cuidados aos idosos e crianças, entre outras. (FIOCRUZ, p. 2, 2020).

O isolamento social impôs às mulheres uma realidade cruel, sobretudo na fase aguda da pandemia. O convívio prolongado com seus “parceiros” dentro de casa representa um risco, especialmente em um contexto em que as preocupações e inseguranças trazidas pela pandemia elevam as tensões e os conflitos familiares e aumento de casos de violência de gênero. Para muitas mulheres, o confinamento aumentou a frequência e a gravidade dos episódios de violência doméstica, em todas as suas variantes como: psicológicas, sexuais, morais, entre outras. Distantes do ciclo social, os riscos para elas são cada vez maiores.

A violência contra as mulheres envolve um conjunto de fatores individuais, políticos, relacionais, sociais e culturais. Alguns elementos abordados pela Fundação Oswaldo Cruz no auge da pandemia, por meio do artigo “Saúde Mental e Atenção Psicossocial: Violência doméstica e familiar na pandemia de Covid-19 (2020)”, relatam o aumento do risco de violência contra a mulher durante a pandemia, tais como: diminuição do contato com sua rede socioafetiva, que por sua vez pode favorecer a perpetração de violências; o homem e/ou a mulher podem ter o sustento da família limitado ou ameaçado, resultando no aumento do estresse e no agravamento da convivência conflituosa e/ou violenta; os agressores podem se utilizar das restrições recomendadas para controle da pandemia como meio para exercer poder e comando sobre as parceiras, reduzindo seu acesso aos serviços e ao apoio psicossocial.

Em comparação com o ano de 2019, o aumento no percentual de agressões ocorridas dentro de casa saltou de 42% para 48,8%, enquanto a violência praticada nas ruas caiu de 29% para 19%. Esses números não refletem apenas a violência praticada pelo companheiro contra a mulher, mas também todo e qualquer tipo de agressão que envolve o seio familiar, na qual os agentes podem ser o pai, a mãe, avós, filhos e enteados.

Milhares de mulheres que já experimentavam tão terrível situação em períodos anteriores, viram essa realidade agravar-se em razão do novo contexto gerado pelo regime de isolamento social, que embora eficaz do ponto de vista sanitário, impôs a elas um tipo de convívio muito mais intenso e duradouro junto a seu agressor, em geral seu parceiro[...]. O aumento de casos de violência doméstica passou então a ser sentido em grande parte dos países que decretaram quarentena, conforme informado pela ONU Mulheres nos primeiros meses de isolamento social. [...] Como a maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico exigem a presença da vítima para a instauração de um inquérito, as denúncias começaram a cair na quarentena em função das medidas que exigem o distanciamento social e a maior permanência em casa. Além disso, a presença mais intensa do agressor nos lares constrange a mulher a realizar uma ligação telefônica ou mesmo de dirigir-se às autoridades competentes para comunicar o ocorrido. (Anuário de Segurança Pública, p.38, 2020).

Tal contexto explica que a diminuição do registro de algumas ocorrências não representa a redução de casos de violência contra a mulher e sim as dificuldades e obstáculos que as mulheres encontraram na pandemia para denunciar, sem contar a instabilidade pelos serviços de proteção, com diminuição do número de servidores(as) e horários de atendimento.

Esses fatores foram confirmados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando realizou monitoramento dos registros de ocorrências de feminicídios, homicídios de mulheres, lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável e concessões de medidas protetivas de urgência em 12 Ufs  brasileiras entre os meses de março, abril e maio/ 2020, constatando que durante esse período, houve queda no registro da maior parte desses crimes, com exceção da violência letal contra as mulheres, que apresentou crescimento. Além disso, as chamadas do 190 aumentaram neste período no Brasil, contrariando a ideia de que esse tipo de violência havia diminuído.  (Anuário de Segurança Pública, p.39, 2020).

A pandemia impôs desafio ainda maiores para o enfrentamento da violência contra a mulher, que precisa ser priorizado como uma política pública forte, consistente e intersetorial, não limitada apenas aos setores da segurança pública, mas igualmente nos campos da saúde, educação, cultura e assistência social. O fortalecimento das políticas de prevenção e enfrentamento à violência de gênero passa então pelo fortalecimento das redes de proteção à mulher, por uma definição de metas, diretrizes, recursos financeiros e humanos e controle social para a garantia da participação popular na formulação das ações governamentais, desencadeando uma atuação conjunta no enfrentamento da questão, conjuntura essa desmontada pelo atual governo federal.

É urgente, portanto, inaugurar novas formas de combater esse problema que deve interessar a toda sociedade e não só as mulheres. A “normalidade” como conhecíamos talvez nunca mais retorne, e caminhamos para um futuro que ainda é uma incógnita. Mas há uma certeza: a de que os graves problemas sociais que nos afligem só serão solucionados de duas formas: a primeira é com o comprometimento coletivo com a solidariedade, com a empatia, e união das diferenças em nome daquilo que nos une.  Acolhida, partilha, sensibilidade, colocar-se no lugar do outro são alguns dos valores que ganham centralidade neste momento. Ao mesmo tempo, é fundamental o desenvolvimento de ações institucionais por parte de governos que compreendam a vulnerabilidade social e econômica das meninas e mulheres, considerando as suas diferentes dimensões, étnicas, de raça e classe, que convivem diariamente com situações de perigo e violência e tem suas vidas ameaçadas por sistemas econômicos capitalistas, patriarcais, racistas e misóginos.

Eloisa Castro Berro é mestre em Serviço Social pela Unesp/UCDB. Coordenadora responsável pela implantação da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande/MS. 2015/16 e ativista do Movimento Popular de Mulheres

Manuela Nicodemos é mestre em Sociologia pela UFGD e ativista da Marcha Mundial das Mulheres

Referências

Gênero e Patriarcado: violência contra mulheres. A mulher brasileira nos espaços públicos e privados. Heleieth Saffioti, 2004.

Site: azmina.com.br. Reportagem: Entre machismo e racismo – mulheres negras são as maiores vítimas de violência, 2019.

Site: brasil.un.org. Reportagem: Uma em cada 3 mulheres no mundo sofre violência, 2021.

Cartilha “Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia Covid 19: violência doméstica e familiar na Covid 19”, Fiocruz, 2020.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

Em questão: Evidências para as políticas públicas. IPEA, 2021.