Sociedade

Devemos manter nosso “bloco na rua” na defesa das cotas, que têm proporcionado a um grande contingente de jovens, além da inserção nas universidades públicas, melhoria na qualidade de vida

As trajetórias dos estudantes cotistas apresentam boa referência para pensar as políticas educacionais. Foto: Marcello Casal Jr./Abr

Este texto contém reflexões sobre o racismo na sociedade brasileira e as fundamentais medidas políticas por parte do Estado, as quais visam a democracia e a justiça social e racial.

A existência do apartheid à brasileira

A discriminação e a exclusão na sociedade brasileira perpetuam-se há séculos. Após 133 anos da abolição da escravidão, o racismo ainda está vivíssimo, mesmo com incessantes vozes chamando por justiça racial, social, econômica e política. É importante, assim, um forte enfrentamento às falsas crenças.

Marilena Chaui (2012, p. 155) explicita a existência do mito da “não violência brasileira”, pois “[...] nossa autoimagem é a de um povo ordeiro e pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou sociais”. O que Chaui denomina como “mito da não violência” é similar ao persistente “mito da democracia racial”, o qual parte da ideia de que o Brasil é um paraíso racial com base na harmonia.

Por meio desses mitos e dos privilégios atribuídos à população branca, mantêm-se as divisões e as exclusões que definem lugares sociais, como enfatizam Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982). Isso configura o apartheid à brasileira1,/sup>, pois, embora não seja estabelecido por leis separatistas, a vida no país é sustentada pelo racismo.

Nilma Lino Gomes (2003) exalta a sistemática luta antirracismo, partindo do Movimento Negro, das organizações de mulheres negras e dos setores parceiros. A busca da reversão da submissão imposta à população negra deve possibilitar “[...] a ascensão social, construindo oportunidades iguais para todos, de forma que negros e brancos tenham que conviver com dignidade em diferentes setores e instituições da sociedade e participem verdadeiramente de um processo democrático” (GOMES, 2003, p. 220).

Perspectivas das ações afirmativas

A Constituição Federal de 1988 indica que os direitos devem ser de igualdade para todas as pessoas – independentemente de raça, cor, credo, sexo, orientação sexual. Já a educação é apresentada como bem comum público, cabendo ao Estado assegurar acesso universal, permanência e qualidade, em todos os níveis, desde a creche até a pós-graduação (BRASIL, 1988).

Como forma de impulsionar a ação dos estados e dos governos, a Declaração de Durban, produto da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, em Durban, África do Sul, enfatiza que, na área educacional, devem ser promovidos acesso e permanência, com leis que visem não apenas incluir, mas presar pelo desenvolvimento de políticas afirmativas (BRASIL, 2001).

Mesmo com a ênfase dada para a inclusão social na Constituição Federal e na Declaração de Durban, a realidade econômica, social e política está muito longe de alcançar as metas e as dimensões indicadas (ver RIBEIRO, 2014). Por tudo isso, tenho total concordância com a existência das ações afirmativas no Brasil, porém é importante a associação com as políticas universais. A redução da desigualdade advém das políticas universais, mas estas ainda contêm mecanismo vivo do racismo; daí a importância das ações afirmativas (ver THEODORO, 2008).

Cotas raciais como caminho para a inclusão

As cotas raciais no Ensino Superior são uma das modalidades de ações afirmativas. A promulgação da Lei de Cotas, Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 20122, proporcionou que “[...] todas as universidades federais do Brasil adotassem a política de ação afirmativa que reserva vagas para pessoas negras (pretas e pardas) e indígenas em seus cursos de graduação” (FONAPRACE, 2021, p. 12).

Mesmo diante da positividade das cotas raciais, a sua defesa tem de ser firme e contínua, pois os setores progressistas e as/os estudantes cotistas ganharam uma “batalha”, mas a “guerra” ainda não terminou. Os posicionamentos contrários são fortes e pulsantes.

Em entrevista que concedi à revista Caros Amigos, em 20063, foi formulada a instigante pergunta: “Não existe receio de que haja agudização do racismo por parte de brancos ressentidos por terem nota, mas não terem vaga por causa das cotas?”. Respondi ironicamente que é “[...] melhor ter brancos ressentidos, mas negros dentro das universidades, do que ter branco feliz e negro fora da universidade” (RIBEIRO, 2006, p. 33). Na minha resposta aos jornalistas, não houve nenhuma intenção de revanchismo racista, pois eu quis apenas expressar que não tinha preocupação com a agudização do racismo, pois isso já acontece na sociedade. Além disso, se houvesse estímulo a conflitos raciais, isso deveria ser tratado pelas instituições e pela sociedade em uma perspectiva antirracista.

Outro questionamento comum é: “A adoção de cotas/ações afirmativas no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio?”.  As cotas raciais devem ser compreendidas como um direito, de acordo com os preceitos constitucionais, pois visam corrigir uma real discriminação em busca de uma igualdade de fato (ver MOEHLECKE, 2002).

Sales Augusto dos Santos et al. (2008) questiona as seguintes indagações: Seriam as cotas/ações afirmativas um perigo para a sociedade e para as políticas públicas? As cotas para negros nos vestibulares das universidades públicas vão racializar a sociedade brasileira? Santos et al. (2008) qualificam as cotas como catastróficas, pois, considerando que a racialização e a divisão racial são uma realidade, espera-se que as ações afirmativas contribuam com a democratização das universidades.

Para Dyane Brito Reis (2020), a política de cotas possibilitou a inclusão da população negra, indígena e pobre, considerando que a luta por direitos é árdua, “[...] construída com muito esforço e que deve servir para que parcela da comunidade acadêmica repense o seu conceito de mérito” (REIS, 2020, p. 40).

Indicação de próximos passos

Devemos manter nosso “bloco na rua” na defesa intransigente de que as cotas têm proporcionado a um grande contingente de jovens, além da inserção nas universidades públicas, melhorias na qualidade de vida. As cotas raciais devem pautar-se por uma firme inter-relação com outras áreas das políticas públicas. A intensificação da permanência e da mobilidade nas universidades públicas permite a minimização das disparidades sociorraciais, no ambiente acadêmico e na sociedade.

As trajetórias dos estudantes cotistas apresentam boa referência para que as políticas educacionais possam ser repensadas e rearticuladas, visando atingir patamares mais altos de justiça sociorracial e democrática.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata. Durban, 31 de agosto a 8 de setembro de 2001. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/declaracao_durban.pdf. Acesso em: 14 nov. 2021.

BRASIL. Lei Nº 12.711 de 29 agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [2012]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 14 nov. 2021.

CHAUI, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, Goiânia, v. 15, n. 2, p.149-161, jul./dez. 2012.

FONAPRACE. Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis. Manifesto pela Prorrogação da Lei de Cotas nas Instituições Federais de Ensino Superior e Técnico Brasileiras. 2020. Disponível em: http://www.ufopa.edu.br/media/file/site/proges/documentos/2020/2538c8887d612e1907e1a5c75fcf123c.pdf. Acesso em: 14 nov. 2021.

GOMES, Nilma Lino. Ações afirmativas: dois projetos voltados para a juventude negra. In: GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz; SILVÉRIO, Valter Roberto. (org.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p. 217-243.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 197-217, nov. 2002.

REIS, Dyane Brito. Trajetórias Negras importam: histórias de nordestinas/os egressas de políticas de cotas raciais no Ensino Superior público brasileiro (2003- 2018). Humanidades & Inovação, Palmas, v. 7, n. 25, p. 28-41, 2020.

RIBEIRO, Matilde. Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil – 1986/2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.

RIBEIRO, Matilde. É melhor ter brancos ressentidos do que não ter negros na universidade. [Entrevista cedida a] Marina Amaral et al. Caros Amigos, São Paulo, ano X, n. 116, p. 30-37, 2006.

SANTOS, Sales Augusto et al. Ações afirmativas: polêmicas e possibilidades sobre igualdade racial e papel do Estado. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 913-928, set./dez. 2008.

THEODORO, Mário. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: THEODORO, Mário et al. (org.). As políticas públicas e desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. p. 15-43.

Matilde Ribeiro é doutora em Serviço Social e escritora. Recebeu, em 2021, pela Fundação Universidade Federal do ABC (UFABC), o título de Doutora Honoris Causa. Professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) no Curso de Pedagogia em Redenção, Ceará.