Internacional

O socialismo com características chinesas mescla uma economia de mercado com um sistema de preços e planejamento indicativo com o monopólio político do PCCh

A presidente Dilma Rousseff e o presidente da China, Xi Jinping em encontro após 6ª Cúpula dos Brics (2014). Foto: Wilson dias/ABr

Desde a crise financeira de 2008 estavam claras as fricções cada vez maiores entre EUA e China, no quadro de um relativo enfraquecimento da globalização. Com gradações diferentes no governo Obama, de forma declarada e aberta no governo Trump e, tudo indica, de forma até agora apenas mais “diplomática” no governo Biden, as fricções e conflitos se estabeleceram e se ampliaram, integrando o pensamento padrão do “deep state”.

Durante a pandemia de Covid-19, a China vem mostrando um manejo sofisticado do chamado soft power e, na 73ª Assembleia Mundial da OMS, propôs considerar a vacina a ser descoberta como bem público mundial, defendendo uma Política de Desenvolvimento Compartilhado entre todos os países e fornecendo vacinas e equipamentos de proteção individual e respiradores.

A percepção da incompetência dos EUA, que têm os maiores níveis de contágio e mortes pela Covid-19, fortalece a compreensão de um desempenho muito melhor da China no combate à pandemia, controlando-a e impedindo o aumento do contágio e das mortes. O governo dos EUA se mostrou incapaz de liderar nacional e internacionalmente uma reação eficiente ao Covid-19, diferentemente da China, com sua posição muito mais assertiva e de apoio à cooperação internacional, às vacinas e à OMS.

A recuperação econômica chinesa é um enorme diferencial face aos EUA. Em 2020, ano do advento da Covid-19, o superávit comercial da China cresceu 25% em relação ao ano de 2019, e suas reservas externas tiveram aumento expressivo. Em 2020, o PIB chinês cresceu 2,3%, o que é um enorme contraste diante das quedas de 4% a 10% do PIB nos EUA e nas economias da União Europeia.

O Covid-19, por si só, não muda rumos e tendências, mas certamente radicaliza as mais importantes propensões e está evidenciando o forte comprometimento da hegemonia norte-americana entre as Nações, em contraste com os resultados chineses. Tem razão quem diz que, assim como a beleza, o reconhecimento da hegemonia também está nos olhos de quem vê. E o mundo viu, e está vendo.

A fase da oportunidade estratégica

A China obteve uma performance espetacular a partir de 1978, quando Deng Xiaoping assumiu a liderança do Partido Comunista Chinês (PCCh), do governo e da Comissão Militar Central, e adotou a política de “Reforma e Abertura”. Essa é a fase da oportunidade estratégica, que se estendeu por cerca de três décadas, pois continuou sendo abraçada pelos seus sucessores – Jiang Zemin (Zhu Rongji), Hu JinTao (Wen Jiabao) – e foi interrompida após a crise financeira de 2008-2009, atingindo parte do início do período Xi Jinping. A política de “Reforma e Abertura” teve por objetivo acelerar as chamadas quatro modernizações – na agricultura, na indústria, na defesa e na área de ciência e tecnologia – mantendo a inquestionável primazia do Partido Comunista Chinês. De fato, de 1979 a 2013, a economia chinesa cresceu a uma taxa média de 9,8%, chegou a estar acima de 10% por dois subperíodos (1991-2001 e 2001-2013) e seu crescimento praticamente não foi afetado nem pela crise financeira asiática de 1997 nem pela crise financeira global de 2008. Cresceu, em 2009, na sequência da injeção dos recursos de um vultoso pacote de estímulos governamentais e, em 2010, chegou a 10,4%, enquanto o mundo desenvolvido amargava taxas de crescimento negativas. Nesses 30 anos, o governo chinês desenvolveu um forte setor privado, inicialmente nas chamadas ZEE (Zonas Especiais de Exportações) no sul da China, na fronteira com Hong Kong, e posteriormente estendido por todo o país. Esse setor privado foi combinado com um setor público ativo nas áreas consideradas estratégicas, o que significou um salto na produção de bens intermediários como aço e petróleo, além dos setores armamentício, espacial e aeronáutico. Ao mesmo tempo, promoveu reformas na agricultura, permitindo e ampliando a produção da agricultura familiar, que foi articulada às cooperativas e às fazendas estatais, assegurando um fantástico aumento da produção de alimentos.

Importância da educação e da C&T&I para o desenvolvimento

A civilização chinesa tem como tradição dar importância central ao conhecimento. Por isso, desde a revolução de 1949, com Mao, mas sobretudo a partir da "Reforma e Abertura”, a educação e a ciência passam a ter prioridade, uma vez que o conhecimento que gera ciência, tecnologia e inovação é considerado o mais importante e estratégico instrumento para atender ao objetivo social, que era chegar a 2020 com uma sociedade moderadamente próspera (Xiaokang) e ao objetivo de atingir, até 2030, o patamar de uma sociedade socialista moderna. O fato é que, em 2020, a China cumpriu um dos seus objetivos principais e retirou as últimas 100 milhões de pessoas da pobreza extrema.

Na verdade, houve um esforço sistemático de encurtar a caminhada e, por isso, a China enviou ao longo dos anos milhões de estudantes para se formar nas melhores universidades do mundo e reestruturou e modernizou suas instituições na área de educação, ciência e tecnologia, com enormes investimentos governamentais.

É expressiva a liderança americana no desenvolvimento de ciência básica, a partir tanto dos laboratórios ligados às agências do departamento de Estado, assim como aquela gerada nas grandes universidades privadas, por meio de pesquisas científicas na fronteira do conhecimento. Mas o investimento norte-americano nessas áreas está caindo para quase a metade do realizado durante o governo Reagan. Nos EUA, apenas 5% dos estudantes universitários cursam engenharia, em contraste com um terço na China. Aliás, a China está educando uma nova geração de universitários numa escala nunca vista.

Na área da educação, a China está tendo um excelente desempenho e protagonismo, o que, portanto, permite-lhe aumentar a capacidade de sustentar o desenvolvimento em ciência, tecnologia e inovação. Já passaram os EUA nas áreas de engenharia, ciências da computação e matemáticas, essenciais para o desenvolvimento científico, tecnológico e para inovação. Atualmente, a China gradua mais cientistas e engenheiros que os EUA, União Europeia, Japão, Taiwan e Coréia do Sul combinados, e seis vezes mais que os EUA sozinho. Durante os últimos 10 anos, a qualidade da educação científica cresceu na China e atingiu padrões internacionais. As universidades chinesas construíram faculdades de engenharia de alto padrão científico, baseando-se nos mesmos níveis de exigência das melhores universidades norte-americanas e europeias. Além do mais, o governo chinês assegura incentivos muito atraentes para todos os estudantes e pesquisadores que retornam ao país. Oito universidades chinesas ranqueiam entre as 50 melhores escolas de engenharia do mundo. A China também tem duas vezes mais doutorados em STEM (Science, TecnologyEngeneering, Mathematics ou Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemáticas).

O próprio The Wall Street Journal reconhece que a China é o principal rival dos EUA em computação quântica. A China gasta US$ 2,5 bilhões por ano em pesquisa – mais de 10 vezes o que os EUA gastam – e tem um estratégico Centro Quântico na província de Hefei. Por sua vez, a Huawei, líder industrial no mundo quanto à rede de banda larga móvel, gasta mais em P&D do que as principais rivais Nokia e Ericksson somadas. Pela primeira vez, a China se coloca junto aos EUA na vanguarda da maior transformação tecnológica do século 21, a revolução na inteligência artificial. A previsão é que os EUA não serão mais o líder, ou pelo menos, o único líder, na aplicação global da IA.

A China apresenta, atualmente, a maior população de usuários de internet do mundo, quase três vezes maior que a dos Estados Unidos, com cerca de 800 milhões de pessoas. Nos últimos anos, a economia chinesa também produziu um terço do total dos unicórnios globais, em grande parte devido ao grande complexo de financiamento estatal e abertura controlada ao investimento estrangeiro.

Além disso, a economia digital chinesa representa 40% das transações globais feitas pela internet, participação que há uma década era menos de 1%. Com toda essa transformação em direção à produção de tecnologias de ponta, a China se destaca entre as três maiores economias que mais investem em Big Data, Inteligência Artificial (IA), computação quântica e companhias de Fintech.

A corrida para o desenvolvimento da tecnologia 5G está atualmente sendo liderada pela Huawei, que além de permitir uma internet wireless mais rápida, de carregamento quase instantâneo, representa o avanço tecnológico mais decisivo em diversas áreas da produção industrial, dos serviços e da vida humana, conectando na mesma rede desde robots, carros autônomos, cirurgias e até o controle de sistemas domésticos de iluminação e de ventilação. Sobretudo, o sistema 5G é crucial para IA, a internet das coisas, para a armazenagem em nuvem, e para a comunicação. Introduz a 4ª revolução industrial e tecnológica, cuja condição imprescindível é a educação de alta qualidade.

Em resumo, EUA e China disputam a liderança nessa revolução e em várias áreas há inequívocos avanços da China, como em IA, telecomunicação, criptografia, controle de doenças, como tem ocorrido no enfrentamento da Covid-19. Em outros campos chaves, como computação quântica que, tudo indica será o santo graal da tecnologia do século 21, não fica claro quem está vencendo, exceto que, como vimos, a China está gastando mais que os EUA, por uma grande margem.

É por isso que os EUA tentam ganhar a disputa com a China por meio do bloqueio e, nesse aspecto, impedir a adoção da rede 5G da Huawei tem sido um dos pontos centrais.

Tecnologia

A China tem tido excelente desempenho e protagonismo na área de desenvolvimento científico, tecnológico e inovação. E isto por algumas razões:

Primeiro, a economia chinesa empresarial privada é hipercompetitiva. Ao contrário do que muitos supõem, a área de IA na China é uma atividade na qual impera uma concorrência selvagem e uma desapiedada imitação, a mesma que produziu o desenvolvimento em outros países – EUA/RU, Coréia/Japão – e que já permitiu às empresas chinesas derrotar importantes rivais em diversos países. O modelo chinês de incessante “tentativa e erro” é bem adequado para disseminar os frutos da IA através da economia do país. Por isso, a China pode introduzir, de forma mais rápida, veículos mais autônomos do que o método e a abordagem restritiva dos concorrentes norte-americanos, até por ter disponível uma maior quantidade de dados, a principal matéria-prima para os algoritmos.

Segundo, a urbanização em centros extremamente densos criou uma fantástica demanda por delivery e toda espécie de serviços. Essas empresas têm de integrar rapidamente os mundos online e off-line como resposta para sobreviver.

Terceiro, o atraso da China permitiu às empresas saltar verdadeiramente serviços e práticas existentes e difundidas em outros países. Um caso exemplar é o cartão de crédito. A China não possuía um sistema de pagamentos com serviços financeiros disseminados por cartão de crédito, pois seu grau de financeirização era bem restrito. O desafio de generalizar relações financeiras fê-la capaz de saltar a fase do cartão de crédito, indo direto para sistemas digitais de pagamentos mais avançados como celulares, enquanto as empresas ocidentais ainda estão usando tecnologias hoje praticamente anacrônicas.

Quarto, a China tem escala. Tem mais usuários de internet do que os EUA e a Europa juntos. Se dados são, na verdade, o combustível da revolução na IA, a matéria-prima dos algoritmos, a China tem mais acesso a dados do que qualquer outro país.

Quinto, a China tem um governo e um partido que dão suporte aberto e claro a suas empresas, cientistas e startups. Planeja por meio dos planos quinquenais, tem visão de longo prazo, estabelece prioridades e fixa metas claras, e trabalha para realizá-las. Busca compensar o número menor de cientistas e tecnólogos estimulando com crédito, estrutura organizacional e com educação massiva e de alta qualidade, na China e no exterior, o espírito de pesquisa científica nas universidades, laboratórios e centros de pesquisa, a aplicação tecnológica e os empreendedores para uma inovação massiva. O governo chinês tem objetivos ambiciosos e assume riscos para atingi-los. Repito, planeja e desenvolve o mercado. E se dispõe a criar rapidamente novas infraestruturas complementares, onde e quando for necessário, além de disseminar, como já mencionado, crédito e apoio institucional.

A disputa EUA X China: Huawei

A Huawei está na vanguarda do desenvolvimento da rede 5G, essencial tanto para os desenvolvimentos da 4ª revolução tecnológica como para as plataformas existentes se expandirem. Por isso, tem sido vítima da ofensiva dos EUA. Do ponto de vista da tecnologia, a rede 5G oferece velocidade de banda larga muito mais rápida – até 100 gigabits por segundo em algumas frequências. O aumento de velocidade será o primeiro recurso a ser implementado, uma vez que a tecnologia necessária para isso pode basicamente ser incorporada à arquitetura de rede 4G/LTE existente. Mas, diferentemente da tecnologia 4G/LTE, desenvolvida principalmente para smartphones e navegação celular tradicional, o 5G foi projetado, sobretudo, para uma expansão dramática de aplicativos com uso intenso de dados que vão muito além dos smartphones. Dois recursos são muito exigentes: o primeiro é a comunicação ultra confiável e de baixa latência, necessária para usos críticos (como carros sem motorista), onde os atrasos na conectividade não podem ser tolerados. A outra é a capacidade de lidar com a próxima explosão de "comunicações máquina a máquina", com dispositivos interconectados transferindo oceanos de dados cada vez mais intensos e profundos entre eles, como parte do que é conhecido como "internet das coisas". Isso afeta o cerne da produção, o chão de fábrica, com máquinas/robôs conversando com máquinas/robôs.

Esses recursos exigirão uma infraestrutura substancialmente mais nova e, portanto, só serão amplamente explorados a partir da metade da década de 2020. Mas eles terão um grande impacto para os países que liderarem a implantação. Para a China, a vantagem será, sem dúvida, extraordinária. É por isso que a China desenvolveu a rede 5G, uma vez que tal rede é central para o que é denominado 4ª revolução industrial, o que lhe permite adotar uma concepção robusta de crescimento de longo prazo puxado pela educação, ciência, tecnologia e inovação.

Na verdade, nos últimos anos a China produziu o melhor equipamento 5G, alguns dos mais rápidos computadores, mísseis estratégicos hipervelozes, chips de computadores que podem rivalizar com o que os EUA podem desenhar e uma não “hackeável” tecnologia de cibersegurança, com criptografia quântica. Uma espaçonave robótica fez a primeira aterrissagem soft no lado escuro da lua em 2019. Redes bem ajustadas para “cidades inteligentes”, adoção generalizada de automação industrial e impressão 3D, inteligência artificial, realidade aumentada e rodovias cheias de carros sem motorista, bem como operações militares maciças e fortemente integradas envolvendo enxames de caças não tripulados, submarinos e aviões de vigilância, em paralelo com uma ofensiva cibernética igualmente intensa. É isso o que a tecnologia 5G pode ofertar.

Planejadores de defesa estão cautelosamente otimistas sobre as oportunidades que o 5G apresentará. O Pentágono, por exemplo, acredita que seus aviões de última geração só atingirão todo o seu potencial até que a capacidade de transferência de 5G permita que funcionem como "monstros de dados".

Muitíssimo relevante é que a China está ganhando o que provavelmente será lembrado como a batalha decisiva pela hegemonia com os EUA, a respeito da Covid-19, empregando uma combinação de organização superior e tecnologia. China, Taiwan e Coréia do Sul demonstraram a efetividade das tecnologias da 4ª revolução industrial usando IA e Big Data no controle da pandemia.

Enfim, a combinação de machine learning e 5G vai permitir que robôs falem uns com os outros, além da elaboração de processos de produção sem a ajuda de engenheiros humanos. No âmbito dos robôs, 5G muda tudo. Tipicamente, a rede 5G aumenta a velocidade de download, o que é fato, mas essa não é a maior vantagem. Para processos industriais, veículos autônomos e outros aplicativos, a latência – o tempo que leva para um dispositivo receber e responder a um sinal dado por outro dispositivo – é o mais importante. No chão de fábrica, o robô “A” dá sua instrução e passa o bit ao robô “B”. Se houver baixa latência, o sistema dentro de cada robô – e pode ser robô de diferentes manufaturas – coloca-os em um mesmo ambiente, dando-lhes as regras e permitindo que se conectem em tempo real – milissegundos. Os robôs organizam a si mesmos muito melhor. A conectividade permite que nos movimentemos de questões muito básicas para as mais sofisticadas. Esta conectividade requer uma plataforma para permitir a aplicação da IA. A rede 5G é essa plataforma.

No lado da indústria estamos entrando, portanto, na 4ª revolução industrial. Para ela acontecer, teremos de ir além da automação. Quando se trata de automação, é necessário que se informe como reagir a cada situação que pode ser encontrada. Dada a crescente complexidade que está sendo desenvolvida na indústria, sistemas que não apenas reagem como programado, mas que sejam capazes de lidar com situações que não estavam planejadas, serão cruciais. Esses sistemas são aquilo que se chama de autônomos. Acredita-se que o fundamento tecnológico para que se chegue aos sistemas autônomos é a inteligência artificial. E esses sistemas irão exigir baixíssima latência e, portanto, a disponibilidade de rede 5G.

É esta a possibilidade de uma grande transformação que revolucionará a sociedade e a economia e, por isso, é fundamental avaliar o impacto sobre o mercado de trabalho.

Mercado de trabalho

A introdução de todas as novas tecnologias provoca e provocará fortes alterações nos mercados de trabalho e pelo que estamos vivendo na vida democrática dos países.

Alguns otimistas creem que a tecnologia pode acarretar algum desemprego de curto prazo, mas assim como milhões de camponeses se tornaram trabalhadores fabris, agora também isso pode ocorrer. No longo prazo, segundo eles, o progresso tecnológico nunca realmente leva a uma redução real em trabalhos ou aumento do desemprego.

Nenhuma invenção é criada para ser igual. Algumas mudam como se faz uma tarefa (máquina de escrever); outras eliminam um tipo de trabalho (calculadoras), e algumas produzem uma disrupção numa indústria inteira (máquina de descaroçar o algodão). E há mudanças tecnológicas em uma escala inteiramente diferente que alteram dezenas de indústrias com capacidade para redefinir o processo econômico e até a organização social. Ou GPT (tecnologias de alcance geral), que são aquelas que importam realmente, pois “interrompem ou aceleram o progresso econômico”.

As revoluções tecnológicas anteriores tiveram uma característica comum: “desqualificaram” a formação profissional necessária para determinada tarefa. O que não acontece com IA/TICs.

Nos EUA houve um crescimento sistemático e forte da produtividade, mas uma estagnação da renda média e do emprego. É o chamado “grande descasamento”: cresce a produtividade e os salários e os empregos ficam estacionados ou caem. Isso levou a concentração dos crescentes ganhos derivados das IA/TICs no 1% do topo da estratificação. O governo chinês está se movimentando no sentido de uma forte regulamentação nesta área, como veremos mais a frente.

Esta área dobrou sua participação na renda nacional entre 1980 e 2020. Uma das razões apontadas sobre a diferença das IA/TICs para as três outras é o viés de qualificação, o viés que privilegia trabalhadores altamente qualificados. Já as três outras GTP (tecnologias de alcance geral) aumentaram a produtividade desqualificando os trabalhos para a produção de bens e serviços.

Além disso, ao quebrar as barreiras para a disseminação da informação, as IA/TICs impactam os trabalhadores com maior conhecimento e cortam forte o emprego para milhões no meio da pirâmide de qualificação. A desqualificação significa mais a criação de imenso contingente cuja alternativa é o trabalho precário das plataformas tecnológicas.

Uma certeza está clara: não há qualquer garantia que as IA/TICs além de aumentar a produtividade acarretarão melhores oportunidades de trabalho e salários mais elevados. Ao contrário, tudo indica que a riqueza se concentrará cada vez mais e os empregos se reduzirão e os salários idem. As IA/TICs alteram o trabalho cognitivo e o manual, atividades físicas e intelectuais.

A 4ª revolução tecnológica é um fenômeno produzido pelo homem e é no reino da política que deve ser confrontado. O papel do Estado será decisivo para assegurar que a tecnologia se transforme em um forte impulso de desenvolvimento das forças produtivas em favor do desenvolvimento com justiça e equidade.

Crescimento da China

A China se posicionou também para receber investimentos externos como forma de aumentar seu processo de acumulação e, para fazê-lo, manteve seus objetivos e não alienou o controle interno sobre o setor industrial, bancário e financeiro. Atribuiu ainda uma expressiva descentralização de poder para suas províncias.

Os sucessivos governos prosseguiram nesse rumo e aperfeiçoaram tanto os mecanismos macroeconômicos de gestão e intervenção no mercado como também modernizaram a atuação das empresas estatais.

Em 2010, a China substituiu o Japão como a segunda maior economia do mundo. Em 2014, a economia chinesa atingiu uma nova marca, tornando-se a maior economia do mundo pelo critério de paridade de poder de compra do PIB, ultrapassando ligeiramente os EUA, o que foi confirmado pelo FMI. Na verdade, o PIB nominal chinês era de US$ 10,4 trilhões, o que o colocava em torno de 60% do PIB nominal norte-americano. Mantendo a taxa atual de crescimento e o bom desempenho relativo, com crescimento de 2,3% este ano, quando os grandes países desenvolvidos caíram, a China ultrapassará a economia dos EUA, antes de 2030. A China vem mantendo sua condição de maior exportadora e também se distingue por ser detentora do maior montante de reservas, sendo a única grande economia com elevado superávit de capital que não está sobrecarregada de enormes dívidas externas.

Em anos recentes, o crescimento chinês começou a desacelerar e reduziu-se para o patamar de 6% a 7%, o que se atribui ao esgotamento do modelo puxado por exportações e elevados investimentos em infraestrutura, incluindo-se aí aqueles realizados no Tibet e nas províncias distantes e mais despovoadas, como Xianjing. A queda da produtividade mostra que os critérios chineses não são apenas os de desempenho econômico, pura e simplesmente. Nessas províncias distantes e despovoadas, foram implantados ambiciosos projetos de infraestrutura, de baixo retorno econômico, como as rodovias com quatro pistas em locais de tráfico esparso, a ferrovia que atravessa o Himalaia até o Tibet e sistemas de comunicação que cruzam desertos e montanhas para servir a comunidades isoladas. O impacto líquido desses investimentos na redução nas taxas de crescimento do PIB chega possivelmente a um ponto percentual. Mas, sua importância na redução da desigualdade, na estabilidade social e no desenvolvimento regional equilibrado são enormes e inegociáveis.

Houve também um esforço centrado no crescimento do mercado de consumo interno, crescimento ainda insuficiente diante do potencial de mais de um bilhão de consumidores. Note-se que, no período pós-crise de 2009, a economia internacional apresentou crescimento muito modesto e que o chamado crescimento mais baixo da China, de 6% a 7%, só é baixo em comparação ao seu próprio crescimento nas últimas décadas. Em relação ao resto do mundo – com uma média de 3,1% – é o dobro. Já dissemos que, em 2020, a China foi uma das poucas grandes economias a crescer. Em todo caso, a estratégia chinesa prevê que o aumento na produtividade será sustentado pela sistemática e constante inovação tecnológica e a redução das desigualdades sociais, como veremos adiante.

Com efeito, as estratégias chinesas, derivadas dos planos quinquenais e das decisões do Comitê Permanente do Politburo, estão sendo aceleradas por Xi Jing Ping diante da crise do Covid-19 e dos conflitos com os EUA. Daí a importância do 14º Plano quinquenal, que foi aprovado agora em março, nas chamadas duas sessões que mais adiante explicaremos. Essa aceleração ocorre, por exemplo, na questão da produção dos semicondutores, dedicada a responder ao descasamento da economia chinesa com a economia norte-americana proposto e aplicado pelo governo Trump e que tudo indica será no todo ou em parte mantido pelo governo Biden, mesmo que de forma mais suavizada.

Made in China 2025

O que torna a China, na visão dos EUA, uma ameaça tecnológica, são os massivos investimentos chineses em Inteligência Artificial e na infraestrutura de comunicação que lhe dá suporte, como a inovadora rede 5G, assim como o avanço de indústrias estratégicas como o que está sendo almejado no Plano Made In China 2025 e à atuação do Estado Chinês, provendo financiamento e toda sorte de incentivos, em uma perspectiva de planejamento indicativo de longo prazo. O Plano Made in China 2025 é uma iniciativa para modernizar e atualizar a indústria chinesa com repercussões para a indústria internacional, devido às Cadeias Globais de Valor, nas quais a China é um hubimportante. A iniciativa de 2015 tem como uma de suas referências e direta inspiração o plano alemão “Indústria 4.0”, o qual foi primeiramente elaborado em 2011 e adotado em 2013. A China mostrou que iria dar início a um enorme esforço para fortalecer e ampliar a produção interna em áreas chaves.

O plano identifica a meta de elevar o conteúdo nacional dos componentes e materiais relacionados em 40% até 2020, chegando a 70%, em 2025. O Estado chinês tem papel significativo usando instrumentos fiscais e financeiros e dando suporte à criação de centros manufatureiros de inovação. O plano destaca dez setores prioritários:

1) Novas tecnologias avançadas de informação - IA;  2) Máquinas e equipamentos de automação, informatizados e robotizados; 3) Equipamentos aeronáuticos e aeroespaciais; 4) Equipamentos marítimos e de navegação high-tech; 5) Equipamentos modernos de transporte ferroviário; 6) Veículos de energia alternativa e nova; 7) Equipamentos elétricos e de centrais elétricas; 8) Equipamentos agrícolas; 9) Novos materiais; 10) Biofarma e produtos médicos avançados. É absolutamente imprescindível que a China consiga implementar esse plano até 2025 porque o período da chamada “oportunidade estratégica”, como o chamou Deng, se esgotou.

Durante todo o período da oportunidade estratégica, a China não era vista nem como competidora, tampouco como adversária. Esse período chegou ao fim com a crise financeira de 2008, originada nos EUA. Até então todos os prognósticos feitos pelo establishment nos EUA era que a crise financeira teria DNA chinês, o que se mostrou estarrecedoramente incorreto. E o avanço tecnológico da China reforça a convicção do “deep state” de que a China tem de ser contida.

Agora, de forma mais diplomática, o governo Biden vai procurar dar continuidade a uma política de contenção vis-à-vis com a China. Manterá parte da chamada guerra comercial e do bloqueio tecnológico, dando continuidade à estratégia central de atingir empresas chinesas como a Huawei, devido a rede 5G ou a SMIC, maior fábrica de semicondutores chinesa.

Isso ainda pode vir a ser negociado, diante dos riscos que a economia norte-americana também corre com um descasamento radical face às cadeias produtivas de valor, como por exemplo, no caso dos efeitos adversos sobre a cadeia produtiva da indústria de semicondutores norte-americana. Contudo, algumas questões geopolíticas manterão a tensão, seja pelo atrito militar devido às operações no Mar do Sul da China, seja por incursões norte-americanas quanto a Hong Kong e Taiwan, ou por interferências norte-americanas indevidas nas questões internas nas províncias chinesas, como o Tibet e Xinkiang.

A China e a ordem internacional

Na verdade, no plano da política externa, a China inicialmente construiu um questionamento sobre a ordem internacional – denunciada como “injusta e ultrapassada” – porque os países em desenvolvimento com mais de 50% do PIB mundial estavam sub-representados nos principais órgãos de governança global, como o FMI e o Banco Mundial. Daí o surgimento do G-20, que passou a incorporar países emergentes e em desenvolvimento como, no caso da América Latina, a Argentina, o Brasil e o México. Isto, no entanto, não queria dizer que a China pretendia, pelo menos no curto prazo, substituir os EUA na ordem existente, por si mesma. O objetivo chinês sempre foi mudar a realidade em direção a um quadro multilateral, promovendo reformas no atual sistema internacional, tornando-o mais equilibrado, multipolar e em sintonia com a nova correlação de forças econômicas. Na verdade, a China respeita muito mais do que os EUA os órgãos internacionais como a OMC, a OMS, e também os acordos internacionais como o Acordo do Clima de Paris. A inconformidade com essas instituições é decorrência da visão postulada pelo Make America First Again de Trump, e a ironia é que os EUA as criaram e era a quem tais instituições supostamente deviam servir. Acredita-se que os EUA com Biden se posicionarão melhor face a essas instituições, mas as cicatrizes são muitas. É um forte sintoma de decadência, que a ordem internacional criada pela “pax americana” no pós-Segunda Guerra Mundial e aprofundada pelo pós Guerra Fria, momento unipolar da predominância dos EUA, tenha sido combatida e rejeitada.

No que se refere à América Latina, a China participou com o Brasil da criação dos Brics e respeitou a Unasur e a Celac, organização com a qual assinou um importante acordo. Está ficando claro que os EUA capturaram o B e o I dos Brics, com a eleição de Bolsonaro, no Brasil, e de Narendra Modi, na Índia.

Os EUA e o neoliberalismo

Ao se avaliar os desafios que a China enfrenta e enfrentará, é fundamental perceber as forças que explicam a situação dos EUA nesse momento histórico. Duas grandes mudanças atuaram na conformação geopolítica nas últimas décadas e criaram o arcabouço para as relações entre as nações. De um lado, a implantação e expansão do neoliberalismo no Reino Unido e nos EUA, com os governos de Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989) e, de outro, o fim da Guerra Fria, com a queda do muro de Berlim, em 1989, e a derrocada da URSS, em 1991. Essas “tendências-forças” agiram para definir o quadro no qual as mudanças recentes se aceleraram a partir da crise de 2009 e nos conduziram ao presente momento, com a crise da Covid-19.

A adoção do neoliberalismo alterou a própria dinâmica do sistema capitalista a partir da financeirização da economia. Engendrou a busca do estado mínimo, a redução dos investimentos em inovação, a adoção de um sistema tributário regressivo e a mais radical desregulamentação do mercado de trabalho e da atividade bancária e financeira, o que produziu uma fantástica concentração de renda e riqueza no topo da pirâmide social. Com isso, o crescimento econômico foi reduzido, estagnou-se e ficou sujeito a crises financeiras especulativas.

O crédito e as finanças se transformaram de impulsionadores da economia produtiva em um “vento contrário” a ela, um verdadeiro entrave, e o centro de uma desenfreada especulação em direção à qual toda riqueza é sugada e concentrada. O pior sintoma dessa espécie de patologia foi o extraordinário crescimento da desigualdade, produto de uma fantástica concentração de renda e riqueza, da imposição do trabalho precário e de salários estagnados. Se reformas previdenciárias e trabalhistas reduzem custos para as empresas, então a estratégia do mercado é a redução drástica dos direitos dos trabalhadores e de suas aposentadorias, criando o “precariado”, essa massa imensa de desprotegidos, hoje as vítimas preferenciais da Covid-19. A precarização do trabalho passa a ser a regra dentro dos próprios países ricos e lá como aqui também os salários são aviltados ou ficam estagnados. Criou-se, portanto, uma grande fragilidade econômica com consequências políticas, a principal delas sendo a eleição de líderes da extrema direita e as barreiras ao acesso da maioria da população ao básico para uma vida digna, como moradia, educação e aposentadoria, mesmo nos países desenvolvidos.

A lógica da financeirização e do mercado que a encarna impõe a rentabilidade imediata, o ganho rápido – trimestral – como sendo o único e sagrado objetivo da economia e das empresas e, assim, o curto prazo passa a ser o horizonte econômico relevante. Por isso, as empresas não investem visando ao longo prazo, o que cria uma barreira para a inovação e a pesquisa científica e tecnológica. As grandes empresas “tech” norte-americanas preferem apostar no desenvolvimento de softwares que garantem um retorno rápido e bons ganhos financeiros trimestrais, a passar pelo risco de descobrir novos processos e produtos. O que explica o papel vergonhoso dos EUA ao buscar barrar e impedir que outros países adotem a tecnologia da rede 5G chinesa, sem condições de oferecer qualquer alternativa em troca.

Recentemente, Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e ex-assessor do governo Clinton, reconheceu que 40 anos de neoliberalismo levaram à incapacidade dos países ocidentais de enfrentarem a pandemia do Covid-19, pois impuseram um absoluto enfraquecimento do Estado e das políticas públicas de saúde. Isso porque, nos orçamentos, os impostos devem ser reduzidos, sem nada de gastos sociais, pois o volume máximo dos recursos deve se concentrar no chamado “mercado”. O mercado de trabalho tem de ser desregulado e os trabalhadores colocados, sem direitos, inteiramente desprotegidos diante do capital. Com o papel do Estado diminuído, não há visão de futuro. As empresas passam a ganhar mais, simplesmente movimentando dinheiro. O endividamento é para expandir a atividade financeira e garantir as atividades especulativas de curto prazo. O fundamentalismo de mercado é dogma, é depositário da razão, não comete erros e está sempre certo, apesar das crises como a de 2008, das bolhas e da imensa destruição de riqueza. Na verdade, a ideia e os valores do mercado financeiro sobre o que é bom para a economia transformam-se no saber convencional das elites políticas e dos negócios, sacralizados pela mídia, que difunde o dogma sobre o que é bom para as nações e a sociedade. A dominação desse pensamento de curto prazo e de uma cultura que busca o crescimento dos lucros sempre rapidamente, conduz à estagnação econômica, à perda de dinamismo econômico e a uma brutal desigualdade. Sobretudo, é uma barreira ao investimento de longo prazo, ao planejamento e à necessidade de assumir os riscos para inovar com base em ciência e no desenvolvimento tecnológico.

A tríade do neoliberalismo – financeirização, ampliação da desigualdade e corrosão da democracia – está presente em cada país e região do mundo.

Os EUA, que ainda continuam sendo o país mais rico economicamente, com maior poder militar e  ainda poder científico e tecnológico, se apresentam, no entanto, para o conflito com a China vestidos com a roupa da estagnação econômica, graças a uma radical financeirização, com as cores de uma fantástica desigualdade e com o signo do baixo investimento em educação, ciência, tecnologia e inovação.

Em síntese, é importante repetir que a prioridade absoluta ao mercado financeiro e o horizonte de curto prazo impostos pela “financeirização” reduzem o investimento privado na produção de tecnologia e inovação, pois as empresas passaram a ganhar mais simplesmente movimentando o dinheiro. Ao mesmo tempo, a estratégia de Estado mínimo coíbe a política industrial e mesmo o planejamento indicativo de longo prazo, deixando nas mãos do mercado todo o caminho a ser trilhado. É isso que explica a perda de empuxe da economia norte-americana diante do drive chinês.

Sem estratégia, EUA enfrentarão China e Rússia

Os EUA não possuem hoje uma estratégia de longo prazo para enfrentar a China. No final da Segunda Guerra, os EUA, com 4% da população, detinham perto de 50% do PIB global. Vejamos a força do crescimento chinês. Em 1950, em termos de paridade do poder de compra, os EUA tinham 27,3% do PIB mundial, enquanto a China tinha somente 4,5%. No fim da Guerra Fria, em 1990, um momento triunfante, os EUA tinham 20,6% e a China apenas 3,86%. Já em 2018, os EUA tinham 15%, participação menor do que a da China, que já tinha chegado a 18,6%, em termos de paridade de poder de compra.  Ao longo da Guerra Fria, o PIB da URSS nunca chegou, em tamanho, próximo ao dos EUA, atingindo, no seu auge econômico, em torno de 40% àquele detido pelos americanos. Tudo indica que antes de 2030 a China passará os EUA.

É tolice querer aplicar à China o mesmo tipo de estratégia de confronto que os EUA aplicaram à URSS, tampouco quanto a questões militares.

Em uma tentativa de elaborar uma ação de curto prazo, os EUA estão ressuscitando a QUAD.  Assim, os EUA, Austrália, Índia e Japão concluíram a primeira cúpula do “Diálogo de Segurança Quadrilateral”, mais conhecido como “QUAD”. Essa cúpula abre o caminho para uma espécie de “OTAN asiática” e constitui uma evidente movimentação geopolítica do governo Biden no sentido da contenção da China.

Nas duas últimas décadas, o agrupamento QUAD teve uma trajetória incerta. A Austrália e a Índia – historicamente “não alinhada” – haviam optado por sair do grupo no final dos anos 2000, preferindo, em vez disso, aprofundar os laços econômicos com uma China em ascensão. O QUAD, no entanto, experimentou um renascimento sob o governo Trump, que buscou ativamente uma aliança “antiChina”. Agora, a administração Biden está retomando do ponto onde Trump parou e continuará enfrentando a principal contradição da geopolítica naquela região do pacífico, ou seja, entre a imensa força gravitacional econômica da China versus a atração pelo “atlantismo norte-americano” dos novos líderes desses países – Shiga, Mori e Morrison – todos conservadores de direita. O agendamento urgente das reuniões do Quad pela administração Biden demonstra a prioridade atribuída à cooperação estreita com os aliados e parceiros no Indo-Pacífico para a contenção da China. Nesta questão, a força do “deep state” está evidente na declaração do ex-secretário de Defesa dos EUA na era Trump, que não apenas elogiou o governo Biden por continuar a agir como o ex-presidente Donald Trump para revigorar o grupo QUAD, mas acrescentou que essa é sua tarefa mais importante na Ásia. O QUAD, como um freio às ambições da China, é a lógica geopolítica básica da atual administração dos EUA.

Na questão econômica e das vacinas, um tanto tardiamente, está proposta pelos quatro países o financiamento envolvendo a Corporação Financeira Internacional de Desenvolvimento dos EUA e suas contrapartes no Japão, Austrália e Índia, juntamente com a OMS, para aumentar a distribuição de vacinas em especial para países em desenvolvimento no Sudeste Asiático, um importante teatro da competição geopolítica com a China, para 2022. Trata-se de uma iniciativa tardia para neutralizar o que os EUA consideram a “diplomacia de vacinas” chinesa, muito ativa e bem-sucedida – não só com as vacinas, mas com máscaras e EPI – desde o início da pandemia.

O QUAD se propõe ainda, como não poderia deixar de ser, à contenção militar, com a regularização dos exercícios navais conjuntos no Oceano Índico e no Mar do Sul da China. A parte mais diplomática – mas que cria atritos, por exemplo com a Austrália, adepta do uso do carvão – é uma coordenação no combate às mudanças climáticas.

A China reagiu, caracterizando o QUAD como uma “mini-OTAN” e uma forma disruptiva de “multilateralismo seletivo”. Disse esperar que os países relevantes sigam os princípios de abertura, inclusão e resultados “ganha-ganha”, evitem formar grupos fechados e exclusivos e ajam de uma forma que conduza à paz regional, estabilidade e prosperidade.

Gastos militares

O fato é que, sem dúvida, a questão militar ao longo do tempo tem sido um dos elementos centrais da contenção geopolítica.

Lembremos que as pesadas despesas militares assumidas pelos EUA durante a guerra fria forçaram a URSS, um país com uma economia menor, a gastar em uma corrida armamentista para se igualar à força concorrente. Isso ajudou a levar a URSS à falência, numa profunda crise de sua economia no final dos anos 1980, início dos 1990.

A China aprendeu a lição diante desse colapso estrondoso da URSS. Após a ruptura da União Soviética, em 1991, e a vitória norte-americana na Guerra do Golfo, iniciou e aprofundou a modernização do Exército de Libertação Popular. Elevou seus gastos militares, mas num ritmo de forma a não prejudicar seu foco prioritário no desenvolvimento econômico. Os EUA continuaram ampliando pesada e sistematicamente seu orçamento militar. Gastam quantias astronômicas em guerras "preemptivas", bases militares, guerras híbridas etc., em vez de melhorar o acesso de sua população a serviços sociais, em especial na área de educação e saúde, e na modernização de sua infraestrutura e investimento em C&T.

É, sem dúvida, impensável uma guerra total entre EUA e China, pois ambos seriam dizimados. Para qualquer estrategista razoável está claro que o resultado de um conflito geopolítico entre as duas potências não será decidido militarmente. Portanto, não é por razões de ordem militar que os EUA vêm aumentando exponencialmente as despesas nesta área, já que possuem armamento suficiente para destruir toda a China várias vezes. O orçamento do Pentágono cresceu sistematicamente pelos 19 últimos anos. Por exemplo, a despesa total com defesa passou de US$ 412 bilhões, em 2001, para US$ 718 bilhões, em 2020, ou seja, um aumento de 74%, o que é maior do que em qualquer outro período desde a guerra da Coréia. Na última década, quando não possuía adversários significativos, o gasto com defesa dos EUA passou de aproximadamente um terço do gasto com defesa mundial, para 50%. Em outras palavras, gasta-se mais nos EUA com defesa do que nos demais países do mundo juntos. É virtualmente impossível para os EUA reduzir seus gastos de defesa porque tais gastos não são objeto de decisões embasadas numa estratégia compreensiva e racional que avalia quais sistemas de armamentos são necessários dado o atual meio ambiente geopolítico. Na verdade, os sistemas de armamentos são adquiridos como resultado de um complexo sistema de lobbyingpor empresas contratadas as quais localizam espertamente suas plantas fabris em todos os distritos chaves dos congressistas nos EUA. Assim, senadores e deputados que querem preservar empregos em seus distritos eleitorais decidem de forma oportuna quais os sistemas de armamentos serão produzidos para as forças armadas dos EUA, e sempre aumentam os gastos.

Em contraste, a China parece focar em estratégias passíveis de serem adotadas por uma potência militar engajada em guerra assimétrica. A China gasta seu orçamento em sofisticados misseis terrestres que podem tornar os grupos de porta-aviões inteiramente inoperantes. Um grupo de porta-aviões de combate pode custar US$ 13 bilhões e, para operar, US$ 6 milhões e 500 mil por dia.  O míssil balístico chinês DF-26, que alegam poder afundar um porta-avião, custa poucas centenas de milhares de dólares. Novas tecnologias estão ajudando a China a defender-se dos porta-aviões, os quais segundo o professor Timothy Colton, de Havard, estão se tornando alvos fáceis quando enfrentam mísseis hipersônicos, os quais são manobráveis e voam a tremendas velocidades, em altitudes variáveis. Aliás, a Rússia está na vanguarda da produção desses sistemas de armamentos hipersônicos.

Cabe sublinhar que, em termos geopolíticos, a mais importante novidade é a sólida aliança que vem sendo construída entre a China e a Rússia, abrangendo forte acordo militar, espacial e econômico. Do ponto de vista das relações de força internacionais, essa é daqui para frente, a barreira que desequilibra a pretensa predominância militar norte-americana. A ironia é que os EUA desempenharam um papel chave para que ocorresse um estreitamento dos laços entre China e Rússia, ao produzir uma grande crise com a Rússia, na Ucrânia, com as pressões indevidas da OTAN. E assim contribuiu para selar, em definitivo, o acordo Rússia-China, pacto estratégico entre a China, o país que será o mais rico do mundo, e a Rússia, o mais bem armado do mundo. Tudo isso torna esse momento histórico radicalmente diferente daquele vivido durante a guerra fria EUA-URSS.

O dólar como arma e os bloqueios

A mais poderosa arma usada pelos EUA para manter seus aliados e adversários na linha, em conformidade com seus interesses, além da força militar, são os bloqueios econômicos. Uma vez que o dólar norte-americano se tornou virtualmente indispensável para o comércio e as transações financeiras globais, vem sendo usado como arma para forçar a adoção de ações de retaliação a países e empresas. Na América Latina, Cuba e Venezuela sofrem com essas imposições.

O dólar, como um bem público, serve à economia global, uma vez que bancos, empresas estrangeiras, países e instituições não podem deixar de usá-lo. Pois bem, o dólar tem se transformado em arma de chantagem com a qual os EUA abusam e passam à aplicação extraterritorial de suas leis domésticas, impondo pesadas multas e sanções a bancos e empresas estrangeiras por violarem sua legislação sobre o comércio com o Irã, a Venezuela, Cuba, Rússia e outros países alvos de bloqueios.

As sanções norte-americanas, quando tinham o suporte e o endosso de instituições multilaterais, como o Conselho de Segurança da ONU, eram vinculantes para os estados membros. A administração Trump, e tudo indica que isto será mantido pelo governo Biden, vem trocando sanções multilaterais sancionadas pela ONU por sanções unilaterais, transformando o dólar em arma, usando-o para pressões com fins próprios. Até agora não há alternativa prática ao dólar, mas não é provável que isto continue assim. É o calcanhar de Aquiles da economia dos EUA, que a China pode ser tentada a atingir.

Na verdade, o problema central desse conflito com o dólar, chama-se SWIFT, uma sigla que em inglês significa Society for a World Wide Interbank Financial Telecommunication (Sociedade Interbancária Financeira em Rede Mundial de Telecomunicações), cuja sede fica na Bélgica. Essa é uma instituição fundada em 1973 por 293 bancos de 15 países, muito antes da existência da internet, que começou a atuar em 1977. Seu grande objetivo é a transferência de dinheiro (em dólar, claro) entre países, entre bancos e entre empresas. Por esse sistema passam trilhões de dólares de praticamente todo o comércio exterior realizado no mundo. Hoje, a SWIFT já tem 209 países participantes, com mais de 10 mil instituições usuárias. Nada se faz sem esse mecanismo. Assim, países como Rússia, China, Irã e Venezuela – para ficarmos nos principais sancionados pelos EUA – praticamente não têm como realizar operações interbancárias sem usar esse mecanismo que só aceita transferência em moeda estadunidense.

A China iniciou testes de um novo modelo de transferências interbancárias em 2015. Foram 19 bancos chineses e de outros países. Participaram 176 instituições e pessoas de 47 países em todos os seis continentes. Essa instituição chama-se Cross-Borders Inter-Bank Payments Systems (Sistema de Pagamentos Interbancários Fronteiriços). Ainda que tenha convênio com o SWIFT, é sempre uma nova alternativa que se apresenta.

De forma ainda muito tímida, a Europa iniciou os testes a partir de janeiro de 2019, de uma rede alternativa ao SWIFT, chamada de INSTEX (Instrument in Support of Trade Exchanges ou Instrumento de Apoio às Trocas Comerciais). Ele funciona para transações que não são feitas em dólar e que não usam o sistema controlado pelos EUA. Ele vem sendo usado na Europa basicamente para os acordos comerciais com o Irã, em especial para a compra de seu petróleo.

O dólar norte-americano representa atualmente 60% das reservas globais de moeda estrangeira, bem acima dos 4% do yuan, de acordo com o Fundo Monetário Internacional. A participação do dólar americano como moeda de pagamento global, por exemplo, ficou em 38%, em janeiro 2021, em comparação com os 2% do yuan, conforme dados da SWIFT. O rápido desenvolvimento da moeda digital soberana chinesa, o chamado yuan digital, pode vir a contrabalançar, mesmo que de forma parcial, o predomínio do dólar. Na verdade, o yuan digital é uma das mais avançadas iniciativas de um Banco Central, em moeda digital, no mundo. O Banco Popular da China já vem realizando experimentos e efetuando testes, há mais de cinco anos. Tudo indica que o yuan digital – oficialmente conhecido como Pagamento Eletrônico de Moeda Digital – poderá ter implicações internacionais importantes na formação do futuro sistema monetário, mesmo que a nova moeda não seja amplamente adotada para as compras diárias nos Estados Unidos e em outros países ocidentais. O fato é que poderá ser usada no âmbito das parcerias comerciais e de investimento internacionais chinesas e não apenas no seu mercado interno.

Criar um dólar digital seria um movimento defensivo contra o yuan digital. Os EUA estão demorando muito para tomar essa decisão. No entanto, o domínio global do dólar americano pode ser um dos principais motivos pelos quais os EUA relutam em adotar uma nova forma de dinheiro do banco central.

Em contraste, a disposição da China de desenvolver um yuan digital poderia aumentar a eficiência dos pagamentos internacionais denominados em yuan e criar novos caminhos para a China contornar o sistema monetário global em dólares dos EUA. Certamente aumentaria a competição monetária internacional.

No relatório de trabalho do governo de 2021, o primeiro-ministro Li Keqiang estabeleceu o objetivo de construir uma China digital, ao acelerar o ritmo de desenvolvimento de uma sociedade digital e elevar o nível para um governo digital. Hoje, há na China experimentos com pagamentos digitais de consumidores no comércio e nos serviços, mas já se difunde o pagamento chamado B2B ou empresa a empresa.

Uma pesquisa recente do Bank of International Settlements (BIS), a associação dos principais bancos centrais nacionais, mostrou que diversos bancos centrais também planejam emitir moedas digitais nos próximos três anos e que os legisladores dos EUA parecem estar intensificando seu foco em um dólar digital, após inicialmente mostrarem falta de entusiasmo pelo conceito.

O preconceito que dá base à visão geopolítica

Até agora, duas suposições basearam a atitude preconceituosa dos EUA em relação à China.

A primeira era que a China jamais seria uma ameaça à predominância econômica dos EUA, no plano mundial. Um país agrário, quase feudal, cuja economia, em 1980, era somente 5% da economia norte-americana, era considerado algo inconcebível que a alcançasse. Se isso era inconcebível olhando de 1980, como conceber tal opinião ao longo dos anos, de um país provido de todos os recursos de inteligência e análise possíveis, aí incluídos os órgãos internacionais criados pelos EUA, Banco Mundial e FMI. A única explicação plausível é uma elevada miopia ideológica.

A segunda suposição, que reforça a primeira, era que o crescimento chinês seria insustentável, uma vez que o sistema político baseado no Partido Comunista Chinês seria um empecilho impossível de ser superado. A China, a menos que adotasse o sistema político ocidental, seria inviável como economia desenvolvida e capaz de gerar ciência, tecnologia e inovação. Ao não ser adepta do livre mercado e da democracia liberal, qualquer país, e a China em especial, estaria inteiramente desprovida das condições imprescindíveis ao desenvolvimento. Aí temos um desconhecimento do papel central e da importância para o modelo de crescimento chinês do PCCh, que de maneira alguma poderia ser confundido com o burocrático e, no final, esclerosado PC da URSS. É importante ter em mente que durante todas as contradições políticas e conflitos internos do PCCh, seja nos períodos pré ou pós Mao e, na Reforma e Abertura, o que mais indignava e produzia repúdio às lideranças chinesas de Deng Xiaoping a Xi Jinping era serem tomados por Krushevs ou Gorbachovs chineses, porque atribuíam a esses dois alguns erros gravíssimos que contribuíram para a destruição da URSS. Sobretudo a Gorbachov, por ter feito a reforma política antes da reforma econômica, que produziria crescimento e prosperidade para o povo.

O momento que fez infletir parte dessa avaliação foi a crise financeira de 2008. Essa crise não ocorreu na China, como predizia a elite norte-americana, mas nos EUA. Agora, a convicção das elites do "deep state" é a de que, a menos que façam algo para sustar e impedir o crescimento da China, o papel hegemônico dos EUA no mundo irremediavelmente estaria comprometido.

Uma das maiores diferenças reside na monumental dificuldade de segregação da China sob uma cortina de ferro, pois ao contrário da Guerra Fria, na qual EUA e Rússia eram inteiramente separadas, agora há uma interligação estreita entre a China, não apenas com os EUA, mas com todos os países do mundo, e entre a Ásia e a Europa. A única semelhança com a Guerra Fria está enraizada nos métodos do "deep state". Como antes, não basta apenas se separar da China. Gostariam, na verdade também como queriam diante da URSS, extraí-la e extirpá-la da economia mundial. O que, definitivamente, com a China não é possível.

O PCCh e o socialismo com características chinesas

Voltemos ao PCCh e o socialismo com características chinesas. O socialismo com características chinesas mescla uma economia de mercado com um sistema de preços e planejamento indicativo com o monopólio político do PCCh. A terra, a moeda e o capital são propriedades do Estado, e por ele controlados. Este modelo vem sendo um elemento de coesão política, cultural e econômica, e deve ficar claro que a instituição Partido Comunista Chinês constitui um elemento essencial e central de todo o desenvolvimento da China desde 1949. Sem o PCCh, seria impossível a China chegar aonde chegou. Trata-se de um partido com mais de 90 milhões de militantes com alta qualidade educacional e que se pauta por critérios meritocráticos.

No socialismo com características chinesas combina-se um consistente planejamento indicativo com mecanismos de mercado, no qual um sistema de preços sinaliza questões como: a) o que produzir; b) quanto produzir; c) como produzir; d) para quem produzir. E faz parte do entendimento de que um sistema centralizado de planejamento do tipo soviético, substituto dos preços, se mostrou ineficaz para resolver essas questões com eficiência. Daí o esforço de construção, por Deng Xiaoping, de um socialismo com características chinesas. Neste modelo, a centralização combina-se também com uma grande autonomia das províncias que ocupam um forte papel institucional.

O PCCh abandonou também a ideia que representava apenas os interesses dos trabalhadores, incluindo em sua representação os empresários de todos os portes. Em 2002, o sucessor de Deng, Jiang Zemin, propôs a teoria das três representações, segundo a qual o PCCh representa em simultâneo: 1) as forças produtivas sociais avançadas que respondem pela produção, e aí foram incluídos também os capitalistas; 2) a cultura avançada da China, que reponde pelo desenvolvimento e pelo imenso acúmulo civilizatório e cultural chinês; 3) os interesses sociais da maioria do povo, que respondem pelo consenso político.

Esse modelo é uma alternativa ao Consenso de Washington, nos moldes asiáticos, e foi a força política que permitiu o espetacular desenvolvimento chinês. Na verdade, depois de 2008, a China tornou-se a principal fonte do crescimento mundial. Hoje, a China sozinha responde por cerca de 25% do crescimento da economia global. Em pouco mais de 30 anos, se transformou na segunda maior potência econômica do mundo e retirou da pobreza cerca de 800 milhões de pessoas. Introduziu um sistema de preços que passaria a conviver com os controles macroeconômicos e o planejamento indicativo. Hoje, os planos quinquenais são indicativos e são estratégicos à medida que definem diretrizes para o desenvolvimento, bem como a visão de longo prazo.

As duas sessões, o 14º Plano Quinquenal, e a visão 2035

Na China, está em curso o período de lianghui, ou seja, das “duas sessões”, que são as reuniões que anualmente congregam as principais lideranças de Pequim.

Neste momento, ocorre o encontro do principal órgão consultivo político, a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês e a entrega tradicional de um relatório de trabalho do primeiro-ministro ao alto legislativo, o Congresso Nacional do Povo (NPC).

Trata-se sobretudo do 14° Plano Quinquenal da China (2021- 2025), o que ocorrerá até o próximo 15 de março, quando o Congresso o aprovará. O 14º Plano Quinquenal inclui o "Made in China 2025" e tem novas determinações, como a estratégia de desenvolvimento baseada na “dual circulation”, ou melhor, na dupla dinâmica de desenvolvimento. Além disso, serão definidas as linhas do planejamento de longo alcance, que contemplará a Visão 2035 com base na meta de concluir a construção de uma sociedade socialista moderna.

Para o primeiro ano do Plano, 2021, o premier Li Keqiang, entregando o relatório de trabalho do governo, enfatizou que a meta para o crescimento do PIB é acima de 6%. O FMI projetara o crescimento para 8,1%. A projeção de 6% inclui também a criação de pelo menos 11 milhões de novos empregos urbanos.

Ainda para este ano, na política externa, a China buscará uma política de "cooperação e de paz” e “promoverá a construção de um novo tipo de relações internacionais”. Está claro que Pequim pretende trabalhar com Washington negociando seus interesses, como parece que pode acontecer com a reunião de alto nível China-EUA, em Anchorage, no final de março.

As alianças e a contenção da China

Os EUA não venceram sozinhos a Guerra Fria. Para vencê-la, foram estabelecidas alianças sólidas com seus parceiros ocidentais, por meio do Plano Marshal, da constituição da OTAN e também estabelecendo alianças com países em desenvolvimento, como Egito, Indonésia, Paquistão e a própria China. A economia norte-americana foi mantida aberta e acessível aos aliados e desenvolvida uma política de parceria com investimentos.

A administração Trump escolheu como marca política Make America First Again, impôs aumentos tarifários a seus aliados UE, Japão, Índia e Brasil; aumentou unilateralmente a cobrança por sua presença militar no território europeu, como ocorreu recentemente com a Alemanha. Alguns dos exemplos mais fortes de sua ação, que favoreceu a China, foi a saída dos EUA do Acordo de Associação na Parceria Transpacífico (TPP), elaborado pelo governo Obama como peça fundamental da política de contenção da China. Esse acordo, um tanto inócuo devido as relações já existentes entre as economias asiáticas, buscava ampliar a influência econômico-tecnológica dos EUA a partir do livre-comércio entre 12 países: da Ásia (Japão, Brunei, Malásia, Singapura e Vietnã), Oceania (Austrália e Nova Zelândia), América do Norte (Canadá, e México) e América do Sul (Peru e Chile). A China, ao contrário, além de ter fortes relações na cadeia de valor global Ásia, estabeleceu uma nova ação estratégica, ao encaminhar em novembro de 2020 uma parceria com a RCEP (15 países asiáticos) e com a CAI (União Européia), das quais falaremos mais adiante. Ao mesmo tempo, a Belt & Road Iniciative, ou Nova Rota da Seda, o mais abrangente projeto de infraestrutura e exportação de capitais e de inovação digital, vem ocorrendo e tem como participantes até agora um total de 86 países. Prevê vultosos investimentos em infraestrutura, logística e energia, entre outros. Como veremos adiante, na União Europeia, o país líder, a Alemanha, está se tornando cada vez mais refratário a sofrer as pressões abusivas dos EUA e tem grande interesse no acesso ao mercado chinês e ao hub asiático de cadeias globais de valor, que hoje passa pela China. Aliás, a Alemanha vem negociando diretamente com a China e a economia europeia é hoje mais dependente da China do que dos EUA.

Barrando o decoupling: acordos Ásia e Europa

No entanto, o principal interesse chinês no plano externo é o fortalecimento do comércio, do investimento e das relações financeiras com a ASEAN – União Europeia, Japão, Coreia do Sul e o Sul Global. Alguns tratados estabelecidos no final de 2020 pelo governo chinês, antes da posse da administração Biden, além daqueles objetivos já expressos, tem o objetivo geopolítico de neutralizar a estratégia norte-americana do chamado “decoupling”, ou descasamento das economias com a ruptura das cadeias globais de valor e o bloqueio do acesso chinês à tecnologia, como por exemplo, aos estratégicos semicondutores de 7 a 3 nm. Outro objetivo é, sem dúvida, dar sustentação à estratégia fundamental de “dual circulation”, como mostraremos mais adiante.

Na questão do decoupling, um importante acordo de livre comércio – a Parceria Econômica Regional (RCEP) – foi feito pela China, em novembro de 2020, e envolve 10 países do SE asiático (ASEAN Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietnam e dois observadores, Timor-Leste e Papuia-Nova Guiné), bem como pela Coréia do Sul,  Japão, Austrália e Nova Zelândia.  O pacto é visto como uma extensão da influência da China na região e exclui os EUA. A Índia era parte da negociação, mas retirou-se devido a preocupação de que as tarifas de seus produtores locais seriam fortemente atingidas. Pode regressar.

Os membros do RCEP representam um terço da população mundial e 29% do produto bruto global. O novo bloco de livre comércio será maior que o bloco EUA-México-Canadá mais a União Europeia.

O maior impacto do RCEP será eliminar um elenco de tarifas no prazo de 20 anos. Inclui ainda provisões sobre propriedade intelectual, telecomunicações, serviços financeiros, e-commerce e serviços profissionais. Mas é possível que as novas “regras de origem” – que oficialmente definem de onde um produto provém – terão o maior impacto.

Sob o RCEP, as partes de qualquer Estado membro serão tratadas de maneira igual, o que pode dar às empresas incentivo para buscar parceiros e fornecedores dentro do pacto.

A estimativa é que o acordo pode aumentar a renda nacional global em US$ 186 bilhões anuais até 2030, e acrescentar 0.2% ao PIB de cada economia dos países membros. Este bloco é o maior parceiro comercial da China e a agência chinesa Xinhua relatou que o comércio bilateral passou de US$ 292,8 bilhões, em 2010 para US$ 641,5 bilhões em 2019, quase 3 vezes mais. Por isso, alguns analistas acreditam que o acordo provavelmente beneficiará mais a China, o Japão e a Coréia do Sul do que os demais. O governo chinês descreveu o acordo como “uma vitória do multilateralismo e do livre comércio”. (Austrália e China são grandes parceiros comerciais, mas tem divergido em um número importante de assuntos).

Em outra iniciativa contra o decoupling, a China assinou em dezembro de 2020 com as autoridades da UE – chanceler alemã Angela Merkel, o Presidente francês Emmanuel Macron e autoridades do Conselho Europeu – o Comprehensive Agreement on Investment – CAI ou, acordo compreensivo de investimento, antes que o governo Biden tomasse posse. Isso apesar dos candentes apelos norte americanos para que os europeus aguardassem e mantivessem distância da China. A motivação chave de franceses e alemães para assinar é a crescente dependência econômica da Europa do mercado chinês. Este ano o volume exportado pela China para a UE superou o montante exportado pelos EUA. A China tornou-se o maior parceiro comercial da Alemanha pelo volume combinado de importações e exportações, em 2018.

O tratado dá as empresas europeias em vários setores o direito de operar na China sem parceiros econômicos locais ou transferências tecnológicas obrigatórias. O acordo muito provavelmente desencadeará um boom de investimento europeu na China. Ao mesmo tempo, o governo Merkel enviou ao Bundestag autorização para a Huawei tomar parte da construção da nova rede 5G, ignorando as demandas norte-americanas para excluir a gigante chinesa. O fato é que setores da economia alemã estão fortemente integrados à economia chinesa. As ambições da indústria automobilística alemã, por exemplo no campo dos carros elétricos, dependem tanto dos consumidores chineses – que compram um terço dos carros alemães – mas também da tecnologia chinesa de baterias. Por sua vez, as empresas farmacêuticas estabeleceram joint ventures com firmas chinesas para usar IA para pesquisar novas drogas. Finalmente, a China é a maior compradora da forte indústria alemã de máquinas e equipamentos.

Todos esses fatos criam fortes barreiras para a estratégia americana de descasamento tecnológico e isolamento da China. Mas essa estratégia, mesmo assim, tem efeitos sobre áreas fundamentais da economia chinesa, como é o caso dos semicondutores.

Dual circulation ou dupla dinâmica de desenvolvimento

Importa destacar o que muda com o 14° Plano Quinquenal (2021-2025) para a China. Desde o quinto plenário da 19ª Conferência do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh), em outubro passado, ficara claro que o foco principal do 14º plano quinquenal seria a política de “dupla circulação”, cuja melhor definição, traduzida do mandarim, é “dupla dinâmica de desenvolvimento”, com o objetivo de garantir a construção de um país socialista moderno.

Isso significa um esforço concentrado para consolidar e expandir o mercado interno, com base no Made in China 2025, enquanto tem continuidade o impulso ao comércio e aos investimentos estrangeiros – como da miríade de projetos da Belt e Road Initiative – BRI. Conceitualmente, isso equivale a um equilíbrio bastante sofisticado.

O que está sendo agora apresentado neste 14º plano é um novo estágio de desenvolvimento chinês. O primeiro, com Mao, compreendeu a fase pós-revolucionária, encerrada com muitos problemas após a estatização e o fracasso da política do “Grande Salto para a Frente” e a revolução cultural. O segundo, um grande sucesso, ocorreu a partir de Deng, por meio do modelo de “reforma e abertura”, que desencadeou um período de crescimento vertiginoso com base sobretudo em investimentos em capital fixo e exportações, em uma espécie de acumulação quase primitiva, que levou à construção dos fundamentos do “socialismo com características chinesas”, ainda em seus momentos iniciais. No período Xi Jinping, veremos o aprofundamento do socialismo em direção a uma sociedade socialista moderna. E isto fica cada vez mais claro quando, no início de 2021, diante do Politburo, o presidente Xi Jinping fez questão de enfatizar que a nação chinesa enfrenta "oportunidades e desafios sem precedentes" e que “condições sociais favoráveis” devem ser criadas por todos os meios disponíveis até 2025, 2035 e 2049.

O principal alvo a ser observado é a “prosperidade comum” (ou, melhor ainda, “prosperidade compartilhada”), a ser implementada juntamente com inovações tecnológicas, respeito ao meio ambiente e abordagem completa da “questão rural”. O objetivo da “dual circulation”, nas palavras do próprio Xi, seria “facilitar uma melhor conectividade entre os mercados interno e externo para um crescimento mais resiliente e sustentável”. A prioridade ao mercado interno corre junto com o alcance de metas tecnológicas importantes para assegurar um desenvolvimento de alta qualidade na China. Isso implica construir cadeias de suprimento integradas e sofisticadas, dando prioridade às empresas para o investimento em tecnologia básica como semicondutores, aplicativos para rede 5G, Internet das Coisas (IoT), circuitos integrados, biomedicina. O bloqueio pelos EUA dos semicondutores importados pela China, a chamada guerra do chip, é peça do decouplingtecnológico que ameaça o cerne das inovações em IA, rede 5G, supercomputação, computação quântica, ciência dos materiais, biotecnologia, novos veículos de energia e ciência espacial. Por isso, um dos grandes desafios da China será superar esse bloqueio com produção interna e estabelecendo parcerias externas para obter os semicondutores necessários. É, sem dúvida, o maior esforço tecnológico do governo chinês. A liderança da China está muito ciente de que as grandes apostas giram em torno da próxima geração de tecnologia de chip e tudo fará para desenvolvê-la internamente.

A China obteve, como disse o presidente Xi Jinping, uma vitória completa sobre a pobreza absoluta. Uma conquista espetacular, que retirou quase 100 milhões que viviam em áreas rurais da pobreza extrema e cumpriu a meta proposta por XI Jinping quando chegou ao poder em 2012, alcançando, assim, o status de uma “sociedade moderadamente próspera”. E isso apesar da Covid-19.

No início deste ano, o presidente Xi Jinping anunciou a implementação de um novo sistema de previdência social em todo o país. Um plano, segundo ele, “grande e ousado para um sistema de bem-estar social basicamente abrangente”, argumentando que é uma questão crucial para a estabilidade do Estado.

É uma avaliação correta porque, se não houver seguridade social, haverá um imenso contingente que poupará até a última migalha para garantir a saúde e a velhice, expulso da prosperidade geral, e desestabilizará o caminho não só para uma sociedade socialista moderna como também, no presente momento, para manter uma sociedade moderadamente próspera. Sem dúvida, os valores envolvidos para garantir esta cobertura são extraordinários e serão um grande desafio para os próximos anos.

Na verdade, Xi Jinping tem sido inflexível: há muita desigualdade na China (disparidades regionais, urbano-rurais e de renda). A redução da desigualdade é crucial para a expansão e fortalecimento do mercado interno e do consumo de massa, assim como é necessário um maior controle da concentração de capital e dos monopólios e da atividade financeira, para que se tenha um desenvolvimento equilibrado e harmonioso.

É que o crescimento econômico durante os últimos 30 anos não beneficiou todos os segmentos da população igualmente ou no mesmo ritmo, resultando em um aumento significativo na desigualdade de renda. Isso é especialmente preocupante, pois os altos níveis de desigualdade afetam o ritmo e a sustentabilidade do crescimento em direção a uma sociedade socialista moderna, especialmente no longo prazo. Além de ser contra os princípios de uma sociedade moderadamente próspera.

Os dados sugerem que o coeficiente de Gini, amplamente usado para medir a igualdade de renda, começou a aumentar já no início dos anos 1980, refletindo um aumento na disparidade de renda.

Nos últimos anos, embora o coeficiente de Gini da China tenha mostrado sinais de estabilização – ficou em 0,465 em 2019, abaixo de um pico de 0,491 em 2008 – há a preocupação com o fato de um número na faixa de 0,4 a 0,5 refletir um diferencial de renda muito grande.

Como a economia continua a ser afetada pela pandemia de Covid-19, os grupos de baixa renda serão sempre os mais vulneráveis. Em particular, os preços dos alimentos aumentaram na China desde o surto do vírus. Além disso, os preços de propriedades aumentaram novamente nas megacidades, o que colocará os recém-formados sob mais pressão.

Para a liderança chinesa, todos esses sinais de alerta sugerem que eles não apenas precisam perseguir um crescimento econômico mais equilibrado, mas também restabelecer a redução da desigualdade entre ricos e pobres. Desta preocupação resulta a grande ênfase do presidente Xi Jinping na redução da pobreza nos encontros anteriores às reuniões do NPC.

Um caminho de crescimento saudável e mais equilibrado é imprescindível para que a China desenvolva com sucesso a estratégia da "dupla circulação" nos próximos anos e mesmo décadas.

Com a nova estratégia, a China dependerá significativamente do mercado doméstico para desenvolver e expandir a sua economia, o que é fundamental para se posicionar contra a desglobalização e as elevadas tensões geopolíticas. Dessa perspectiva, quanto maior for a base de consumidores, maior o sucesso da estratégia de construção de uma sociedade socialista moderna.

Isso explica também os esforços de Pequim para conter eventuais bolhas de ativos na economia, já que famílias ricas teriam se beneficiado mais com o rápido aumento dos preços dos ativos. O fato é que as famílias pobres têm muito menos dinheiro para fazer investimentos. Pequim vem apertando os parafusos do mercado imobiliário, e um maior aperto parece inevitável no próximo ano.

A China viu o número de indivíduos ultra ricos crescer mais rápido em 2020 do que em todo o mundo.

Assim, o PBOC, banco central chinês, está sendo mais generoso com instrumentos de política monetária direcionados. No ano passado, o banco central chinês criou alguns instrumentos diretos para ajudar a aumentar a oferta de crédito para pequenas e médias empresas, enquanto reduzia os custos de financiamento de tais empréstimos.

Há uma tendência clara para o reequilíbrio da estrutura econômica da China, a partir da ação dos reguladores. Com todo o esforço, Pequim também busca reduzir a desigualdade de renda, para alcançar um crescimento mais sustentável no longo prazo.

Por um lado, a China está buscando apoiar o setor manufatureiro para ajudar os grupos de baixa renda; por outro lado, Pequim está limitando o acesso ao crédito de famílias ricas e pedindo aos bancos comerciais que expandam seus balanços e emprestem para pequenas empresas e empresas privadas médias.

Significa muito para a China ter uma base mais ampla de consumidores e um setor manufatureiro mais forte.

Como vimos, o 14º Plano Quinquenal para o Desenvolvimento Econômico e Social e as metas para 2035 dizem respeito aos primeiros cinco anos (2021-2025) da jornada da China para a construção integral de um país socialista moderno, e uma fundação sólida deve ser construída para que esse objetivo seja atingido. A redução da desigualdade, o controle do capital e da especulação estão entre as principais fundações.

Este é um plano crítico numa época crítica, em razão de severos desafios externos e domésticos, e por isso deve ser estrategicamente focado em lutar por um desenvolvimento puxado pela inovação. De acordo com a visão do Politiburo, nos próximos 5 anos vivenciaremos tremendas mudanças históricas. Mas qualquer que seja a situação internacional e interna, a China tornar-se-á um país de renda alta, com a renda média ultrapassando o marco de US$ 12.700, caso se mantenha a estratégia de desenvolvimento baseada no pleno potencial de inovação.

No período do 14º Plano Quinquenal a incerteza geopolítica será o maior desafio, na medida que as tensões econômicas e até militares entre China e EUA se mantenham ou até cresçam; e que a pandemia global continue afetando o comércio e o investimento, em especial em 2021 e 2022. Daí a importância da dual circulation, na qual o mercado interno desempenha a função primordial enquanto o ciclo econômico internacional torne-se sua extensão e complemento.

Focar no mercado interno, um imenso mercado com grandes vantagens em termos industriais, não apenas dá ímpeto ao crescimento econômico chinês, mas também puxa a recuperação econômica internacional ameaçada pela pandemia e o protecionismo. A China se propõe a continuar abrindo sua economia e busca restaurar o comércio global num momento em que os EUA advoga protecionismo e multilateralismo.

A Visão de Longo Prazo dos 15 anos pretende que em 2035 a modernização socialista do país seja inteiramente atingida e é um sinal da vantagem institucional chinesa que assegura – pelo planejamento, coerência e força – as suas políticas, sem abdicar dos indicadores do mercado e, assim, oferece um ambiente estável e seguro para os investidores internos e externos.

O caso da Ant Financeira

O adiamento do início de outubro do IPO da Ant Financial sinalizou a mudança na atitude de Pequim em relação aos seus principais empreendedores de tecnologia. A surpreendente decisão das bolsas de valores de Xangai e Hong Kong de adiar o que teria sido a maior oferta pública inicial de todos os tempos, estimada em US$ 35 bi, mostrou que o risco financeiro especulativo de uma empresa não será autorizado pelo governo. Este ato do governo ocorreu após um discurso do fundador da Ant Financial, Jack Ma, classificando os bancos públicos como meras “casas de penhores.”

A partir da suspensão do IPO, o tom da Ant Financial mudou consideravelmente. Se enquadraram inteiramente. Os reguladores – PBOC (People Bank of China) e CSRC (China Securities Regulatory Comission) tinham razão. A Ant Financial afirmara que seus algoritmos de Big Data poderiam avaliar a qualidade de crédito de todos os microcréditos existentes no portfólio de US$ 300 bilhões da empresa. Os profissionais de Big Data chineses estavam menos convencidos das reivindicações da empresa, e as autoridades chinesas agiram de forma bastante razoável quando exigiram que a Ant revisasse seus sistemas e aumentasse sua reserva de capital contra possíveis perdas com empréstimos.

Ao contrário dos EUA, o governo chinês não pretende dar guarida a bolhas financeiras e está pressionando as empresas por padrões contábeis de excelência, inclusive nas estatais. Anunciou várias outras medidas para eliminar empresas frágeis ou com problemas éticos, incluindo um procedimento acelerado para cancelar o registro de empresas nas bolsas de valores da China.

Os reguladores produziram uma legislação antimonopólio para evitar que as plataformas da Internet exigissem exclusividade dos comerciantes que apoiam. Isso afeta não apenas o tratamento de pequenos concorrentes, mas também os conflitos entre os próprios gigantes da tecnologia. Tanto a Alibaba quanto a Tencent, por exemplo, supostamente exigiram que os clientes de seus negócios em nuvem fiquem longe um do outro. Alibaba, que concorre com a Meituan Dianping na entrega de comida, reclamou que a Meituan tentou forçar seus clientes a abandonar a plataforma do Alibaba.

Os reguladores estão exigindo que as empresas chinesas atendam aos critérios globais de relatórios, transparência e práticas competitivas. Talvez a reforma mais importante de todas tenha ocorrido no contexto da Parceria Econômica Abrangente Regional de 16 nações da ASEAN, sob a qual a China removerá cerca de 90% das tarifas atualmente em vigor sobre as importações japonesas. As tarifas e outras barreiras às importações apoiaram os fabricantes estatais, mas também estimularam a ineficiência e o mau uso dos recursos de capital. Submeter as empresas chinesas à competição do mercado mundial é indispensável para os esforços da China para sair de seu vale de produtividade de vários anos. Tudo indica que, agora que as empresas chinesas acumularam força suficiente para competir, a China está levantando a grande muralha da proteção de seu mercado e se abrindo à competição.

As cadeias globais de valor e a China

O PIB chinês passou de US$ 1,2 trilhões, em 2000, para US$ 11,1 trilhão, em 2015. Foi neste período, 2000 a 2015, que a economia da China passou de sexta maior para a segunda maior do mundo, e a China construiu o maior pool de reservas estrangeiras do mundo, em torno de US$ 3 trilhões (desde 2015 a 2019: $3,01 a $3,33).

Em 2019, em torno de 100 países tinham mais relações comerciais e de investimento com a China do que com os EUA, e esta parece ser a tendência. À medida que mais países comercializam mais com a China, e recebem mais investimentos chineses, o resultado líquido deste processo dá a China maior vantagem estratégica.

Diante desse quadro, a administração Trump, e agora Biden de forma mais suave, tanto aberta como secretamente, pretende que o melhor meio de desacelerar e diminuir o crescimento da economia chinesa é por meio de um progressivo descasamento da economia chinesa vis-à-vis a economia norte-americana e, se possível, dos seus aliados europeus e asiáticos. Tudo indica, no entanto, que esforços dos EUA para descasar a si mesmos da China podem bem resultar num descasamento dos EUA em relação ao mundo, diante das complexas cadeias globais de valor que atualmente existem.

Mais de dois terços do comércio mundial ocorria antes da crise do Covid-19 através das CGV, na qual a produção cruza pelo menos uma fronteira e tipicamente muitas fronteiras antes de ser finalmente montada e finalizada. As CGVs são uma estrutura complexa em rede na qual fluxos de bens, serviços, capital e tecnologia fluem através de fronteiras nacionais. Além disso, os novos desenvolvimentos tecnológicos, tais como a robótica, os Big Data e a internet das coisas (IoT) estavam começando a remodelar e a transformar as CGV. Tudo isso, é bom repetir, antes do Covid-19, e agora com imprevistas alterações diante do fato de que muitas dessas cadeias sofreram rupturas devido à paralisia econômica imposta pela pandemia, inicialmente, pelo fechamento da China e, depois, pela paralisia internacional.

É importante ter claro que o crescimento das CGV tinha já se reduzido desde a crise financeira global 2008-2009. A importância das CGV decorre do fato de que o PIB de um país pode ser decomposto em 3 tipos de relações comerciais:

1º- comércio puramente doméstico, de forma tradicional, no qual o produto é produzido num país, exportado e consumido no outro;

2º- comércio com cadeia de valor simples, na qual um bem produzido em um país é exportado, usado na produção de um bem neste mesmo país, e aí é consumido; e

3º- comércio com cadeia de valor complexa, na qual a produção cruza muitas fronteiras antes de ser finalizada.

A Apple, por exemplo, tem em torno de 200 fornecedores subcontratados situados em 24 países, a grande maioria de origem asiática, entre eles a China (39%), Taiwan e Ásia do Sudeste (23%) e Japão (16%).

De 2000-2007, especialmente as CGV complexas estavam se expandindo a uma taxa mais rápida do que os outros componentes do PIB. Durante a crise financeira global, ocorreu um recuo das CGV, seguida por uma rápida recuperação em 2010-2011, mas desde então, com a exceção de 2017, o crescimento em geral se reduziu. Em 2017, a expansão das cadeias complexas de valor foi maior que o crescimento do PIB global. É claro que quanto maior a intensidade tecnológica (conhecimento agregado) em um setor, mais significativo o crescimento de atividades complexas nas CGV. Então, as relações, os links, são especialmente importantes para setores high tech, e é nessas áreas que vemos cadeias altamente complexas envolvendo muitos países. E é aí que a China tem crescido e se posicionado como hubestratégico.

Antes da crise da Covid-19, a China estava desempenhando um importante papel, tanto como um hub de demanda e oferta de comércio tradicional e redes simples de CGV, como também nas atividades inter-regionais, embora os EUA e a Alemanha sejam ainda os mais importantes hubs nas redes de CGV complexas.

Conclusão

Cabe notar o sentido diferenciado da civilização chinesa, que jamais teve uma religião no sentido ocidental, mas teve filosofias e crenças. Podemos ver um pouco dessa civilização milenar nos seus aforismos. Como exemplo, cito um ditado milenar por seu realismo tolerante: todo chinês é confucionista na vida pública; taoista na vida privada; budista na morte.

Sem dúvida, em termos da sociedade chinesa, o conceito de harmonia e desenvolvimento compartilhado representam o propósito histórico dessa civilização com o PCCh. Com eles, uma maior valorização do trabalho coletivo, das comunidades e das redes de relações interpessoais.

As redes sociais chinesas revelam que a confiança do público chinês na liderança de Pequim permanece sólida, considerando uma série de fatores:

1) A China venceu a “guerra da saúde” contra a Covid-19 em tempo recorde;

2) O crescimento econômico está de volta;

3) A pobreza absoluta foi erradicada – e de acordo com o calendário original;

4) O estado-civilização está firmemente estabelecido como uma “sociedade moderadamente próspera” ao comemorar 100 anos após a fundação do Partido Comunista, e a busca de uma sociedade socialista moderna em 2035. Desde o início do milênio, o PIB da China cresceu nada menos que 11 vezes. Nos últimos 10 anos, o PIB mais que dobrou, de US$ 6 trilhões para US$ 15 trilhões. Nada menos que 99 milhões de habitantes rurais, 832 condados e 128.000 vilas rurais foram os últimos a serem libertados da pobreza absoluta.

O processo sistêmico em jogo é uma mistura sofisticada de marxismo internacionalista com as características da civilização chinesa – a estrutura para um futuro compartilhado com toda a humanidade.

O texto acima corresponde à palestra na mesa "A luta pelo socialismo no século 21 e a trajetória chinesa", realizada em 27/3/21, das 13 Jornadas de Debate Sobre Socialismo no Século 21, organizadas pelo Partido dos Trabalhadores e pela Fundação Perseu Abramo

Dilma Rousseff integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Foi presidenta do Brasil de 2011 até 2016