Em 2020 e 2021, os povos no mundo experimentaram mais uma travessia da barbárie capitalista. Essa travessia, de uma massa inerte, pelo caminho da morte, da exploração humana e do abandono, é expressão contundente de uma cultura que incapacita o ser humano. Durante uma pandemia mundial, a ausência de um combate massivo a esse sistema de individualismo e de busca pela maximização do lucro, em detrimento da vida, é a doença para a qual nós socialistas precisamos desenvolver uma vacina. A vacina contra o vírus que imobiliza e incapacita a humanidade de reagir a uma sentença de fim, essa sentença de fim chama-se capitalismo.
Para além de um sistema exclusivamente político-econômico, o capitalismo se configura essencialmente enquanto um projeto cultural. Dessa forma, sua hegemonia é garantida a partir das narrativas que mobiliza para justificar sua existência, como a liberdade econômica, o livre mercado, a mão invisível. Não resta dúvidas sobre a falsidade de tais premissas, de forma que essa tese do mercado como agente capaz de otimizar as relações econômicas é uma camuflagem para a “mão visível” dos grandes capitalistas, dos ricos e dos super-ricos da sociedade. São esses sujeitos políticos que determinam como as relações econômicas se realizam nos países capitalistas, portanto, essa ideia de livre mercado é basicamente deixar que estes senhores do capital decidam “livremente” como vai funcionar a economia, e consequentemente a cultura de nossa sociedade. São eles, assim, os responsáveis pelo atual padrão de acumulação desigual e produtor de miséria, por essa lógica insana de maximização do lucro em sacrifício ao bem-estar social e de individualismo extremo, que se desvelou tão torpe e desumano durante a pandemia. A falsa ideia da mão invisível associa o capitalismo a uma espécie de sistema natural da sociedade, de cultura natural.
A partir desse entendimento, a pergunta óbvia é: como pode o capitalismo ser um sistema natural se ele é gerador de opressões, de exploração, de desigualdade social, de destruição da própria natureza? A resposta é que não é. É um sistema violador dos povos e estruturado na violência per si. A segunda questão óbvia é: como há um número de explorados tão maior que o número de exploradores, e esse sistema se mantém hegemônico? Na reflexão sobre a luta pelo socialismo no século 21, é pertinente avaliar se existe um esgotamento das nossas concepções de esquerda, o que tem sido insuficiente na luta pelo socialismo.
A partir do entendimento que as nossas premissas socialistas não são insuficientes, a falta da persuasão dessa massa de explorados, de que a existência da humanidade depende da construção de um sistema econômico alternativo é o problema a ser resolvido. Como ampliar o convencimento de que o capitalismo não pode ser a cultura política do mundo pois ele é incompatível com a continuidade da vida, com a continuidade do planeta? Nessa quadra da história, a humanidade tem novamente a infeliz oportunidade de constatar que esse é um sistema de morte, pois em meio a uma pandemia mundial, a incapacidade de relações solidárias internacionais, relações não capitalistas, possibilitou o ambiente perfeito para o fortalecimento e continuidade de um vírus que matou milhões de pessoas.
É fundamental que a luta anticapitalista encontre o caminho para tornar massificado o entendimento de que existe uma sentença de fim para a humanidade dentro do sistema capitalista. O debate que motiva esse texto, realizado no dia 14 de agosto de 2021 no canal da Fundação Perseu Abramo, por coincidência ocorreu no dia de combate à poluição. A poluição é inerente ao atual padrão de acumulação capitalista e à busca pela maximização do lucro, de forma que a degradação ambiental e humana é o modus operandi estrutural desse modelo. A partir da máxima de Chico Mendes que dizia que “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, é justo dizer que solenizar o dia de combate à poluição (um efeito), é uma forma de fazer “jardinagem”.
É fundamental abordar a causa das mazelas da sociedade, essa mazela da desigualdade, da pobreza, do racismo, da exploração, do genocídio dos povos indígenas e da destruição do planeta. O ritmo de crescimento desse modelo urbano-industrial impõe o consumo dos recursos naturais como se fossem fontes inesgotáveis, de forma predatória e incompatível com a continuidade da vida humana.
Temos o desafio de construir novos valores revolucionários que sejam hegemônicos nessa sociedade, valores democráticos, sustentáveis e anticapitalistas por natureza. Valores que nos dirijam a uma outra civilização. O padrão civilizatório atual não serve à vida, não serve aos movimentos sociais, não serve à massa dos explorados, não serve à maioria da população do mundo. Os movimentos sociais organizados integram o conjunto de lutas para a construção do socialismo. O movimento das pessoas que são atingidas por desastres ambientais, o movimento negro, o movimento de mulheres, dos povos indígenas e demais povos tradicionais, o movimento de luta por cidadania e vida das pessoas LGBTQIA+. Todos esses são movimentos de luta por um outro mundo, são movimentos de lutas que deságuam na mesma realidade que nós socialistas queremos construir: um mundo livre de opressões, em que não existam exploradores e explorados.
As lutas contra as opressões fazem parte da construção de um outro modelo civilizatório, pois o capitalismo é incompatível em profundidade com os direitos humanos. Só é possível garantir direitos sociais a todas as pessoas no regime capitalista, se for a partir da falsa premissa dos racistas brasileiros, de que existem pessoas que não são tão humanas assim.
Quando isso é dito no Brasil, é sabido que estão falando das pessoas negras, é de conhecimento público que se refere aos povos tradicionais, aos povos indígenas, que são essas pessoas que não têm direitos humanos garantidos, que são matáveis. Portanto, a luta pelos direitos humanos é em essência uma luta socialista.
Se opor à barbárie capitalista passa também por compreender que os valores democráticos não estão atrelados aos valores capitalistas, não existe democracia no capitalismo. A relação perniciosa entre poder financeiro e resultados eleitorais, poder financeiro e instrumentalização da fé alheia, reforça a incompatibilidade da desigualdade econômica com a democracia.
Na discussão sobre os direitos humanos e a organização da sociedade, é relevante pensar no judiciário classista. Não há justiça imparcial no capitalismo. Não há direito à vida com o judiciário que determina o que é justo a partir de uma concepção classista, elitista, machista e racista. A raça tem sido determinante para definir a ocupação dos presídios, tem sido fator de incriminação para a população negra e também para negação de direitos.
O acirramento da violência capitalista é o destino final da busca pela maximização do lucro, e dessa utilização da violência em variadas dimensões como meio do controle social. O difundido conceito de necropolítica tem sido a expressão mais contundente desse estágio da evolução do capitalismo. É a exterminação de uma parte dos povos e a máxima exploração do ser humano e dos recursos naturais. O contexto da luta dos socialistas é o da garantia do direito à vida, à dignidade humana e da necessária solidariedade entre os povos.
Não é possível escolher qual opressão será combatida, ou construir uma lista de prioridades entre essas opressões. A luta socialista prepara a construção de um outro modelo civilizatório, que necessariamente passa por uma outra cultura em que estejam superadas as opressões de classe, de raça/etnia, de gênero, de orientação sexual, ou qualquer outra que subjugue o ser humano. Por uma cultura, que como temos lido e escutado em Ailton Krenak, não seja possível pensar a vida humana de forma emancipada da natureza e esse padrão de consumo e acumulação como termômetro da felicidade humana.
Texto escrito por ocasião da participação na mesa “Alternativas ao capitalismo e à barbárie, na luta pelo socialismo e pelos direitos humanos: teorias e práticas em debate”, em 14/08/21, das 13 Jornadas de Debate sobre o Socialismo no Século 21, organizadas pela Fundação Perseu Abramo e o Partido dos Trabalhadores.
Elen Coutinho é economista, diretora da Fundação Perseu Abramo