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Entre 2020 e 2050, a China será confrontada, cada vez mais, pelo processo contraditório de elevação da produtividade e de descarte de força de trabalho

Comemoração 110º Dia Nacional da República Popular da China. Foto: Wang Yu Ching/Gab. do Pres./Fotos Públicas

Introdução: a questão geral do socialismo  

Segundo a teoria da economia política marxista, essa é uma questão científica associada ao grau de desenvolvimento do capitalismo.

A contradição básica do capitalismo, que determina a necessidade de sua superação histórica, reside no fato de que o desenvolvimento de suas forças produtivas leva, ao mesmo tempo, a uma constante elevação da produtividade (produção mais elevada com menor participação de força de trabalho), e a uma progressiva redução do mercado de consumo e, portanto, redução do movimento das mercadorias e crise de realização do próprio capital.

É tal contradição que coloca a necessidade de ser resolvida com a superação do próprio sistema do capital.

A hipótese básica é que tal transição teria dois momentos: um, socialista, de superação da propriedade privada, e de reorganização do processo produtivo e de distribuição da produção na sociedade; outro, de uma sociedade reorganizada de modo a atender a todas as necessidades sociais sem precisão da propriedade privada (comunismo).

Na prática, porém, a história, da mesma forma que agiu nas transições econômicas, sociais, políticas e culturais passadas (comunismo primitivo, escravismo e feudalismo), resolveu apresentar ironias de diferentes tipos para a superação do capitalismo.

Ironias da história

Em primeiro lugar, o desenvolvimento da formação econômico-social capitalista tem sido extremamente desigual nas diferentes partes do mundo.

Em segundo lugar, tal desenvolvimento criou situações revolucionárias socialistas em países atrasados em seu desenvolvimento capitalista. Exemplos: Rússia, China, Vietnã, Laos, Angola, Moçambique, Cuba etc.

No caso da Rússia, o sistema feudal ainda era predominante na agricultura, e os núcleos industriais estavam segregados a apenas algumas cidades (principalmente Petrogrado).

No caso da China, o sistema feudal ainda era predominante. Além disso, potências imperialistas ocupavam áreas do país como colônias suas. E indústrias estavam presentes apenas em algumas áreas restritas.

Em momentos diferentes, revoluções com perspectiva política socialista eclodiram e se desenvolveram em virtude das brutais contradições provocadas por guerras imperialistas, tanto na Rússia, em 1917, quanto na China, entre 1945 e 1949.

A evolução econômica da Rússia Soviética conheceu a reforma agrária capitalista, a Nova Política Econômica (combinação de estatismo e privatismo, até 1928) e o estatismo industrial e agrícola completo, com planos econômicos centralizados, desde os anos 1930 até o fim da URSS.

Por um lado, o sistema estatal permitiu à URSS se tornar uma potência econômica e militar por um período prolongado. Por outro, criou uma crise na produção de bens de consumo, uma das bases da falência da experiência socialista e da transformação da economia estatizada numa economia capitalista, desde os anos 1990.

A evolução econômica da China conheceu, inicialmente, a reforma agrária capitalista, seguida da combinação do sistema industrial capitalista com o sistema industrial estatal.

Não esquecer que parte da burguesia chinesa foi aliada no processo da revolução chinesa e, por isso, o processo revolucionário chinês foi classificado então como democrático-popular.

Para reduzir a massa de desempregados da população (na época, já superior a um bilhão de pessoas), as empresas estatais chinesas adotaram o sistema 3:1 (três trabalhadores por posto de trabalho), o que reduzia a produtividade, mas ampliava a capacidade de emprego.

Paralelamente, foram mobilizadas campanhas para modificar a situação social chinesa. As campanhas contra os três males (fome, endemias e analfabetismo) e pelos três bens (máquina de costura, bicicleta e rádio) promoveram o estudo básico e melhores condições de vida.

Por outro lado, as políticas de industrialização claudicavam pela crescente oposição da burguesia nacional aos planos de industrialização estatal. O que conduziu a grandes campanhas, como as do cooperativismo rural e da revolução cultural, claramente estatizantes.

A revolução cultural foi o ápice de mobilização de grandes massas sociais para resolver as questões relacionadas com o desenvolvimento econômico, aspecto estratégico para a continuidade da perspectiva socialista.

Isso, num momento em que o estatismo absoluto estava em crise, tanto na URSS, quanto nos países democrático-populares do leste europeu, e também no Vietnã. E foi sua avaliação, ou seu balanço crítico, durante dois anos, no final dos anos 1970, que permitiu uma nova estratégia de desenvolvimento socialista na China.

Balanço das experiências chinesas – 1949/1978

Segundo tal balanço, a experiência histórica demonstra que não é possível ingressar no socialismo de transição capitalismo-comunismo antes de desenvolver todas as possibilidades e contradições do capitalismo. Ou seja, como já concluíra Lenin, não é possível liquidar o mercado por decreto.

Por outro lado, retornar ao capitalismo pleno é inaceitável para todos que realizaram movimentos revolucionários exitosos e estabeleceram democracias populares e processos que deveriam desembocar no socialismo.

Em tais condições, a conclusão do PC Chinês residiu em combinar a ação primária do mercado com a orientação científica/tecnológica/econômica/social e política do Estado, numa perspectiva socialista e comunista, de modo a completar o desenvolvimento que o capitalismo foi incapaz de realizar.

Tal orientação estatal compreende o desenvolvimento da indústria, da agricultura e dos serviços, marcados por revoluções científicas e tecnológicas, com elevação constante da produtividade, tendo como alvo o pleno atendimento das necessidades sociais, e a elevação do padrão de vida e educacional do conjunto da população.

Para tanto, o Estado deve contar com a ação de instrumentos próprios, como bancos, empresas estatais, organizações científicas e tecnológicas, planos estatais gerais e específicos, e instituições democráticas de crescente participação popular na vida social e política da sociedade.

Por outro lado, para evitar a burocratização, a monopolização e o engessamento do processo produtivo, como ocorreu na experiência soviética, tanto empresas de propriedade estatal quanto privada devem participar do processo produtivo, impondo a concorrência entre si.

Por outro lado, esse processo estatal-privado também gera problemas relacionados com a corrupção, em especial  voltada para conquistar agentes estatais com poder de decisão sobre as atividades econômicas.

Em tais condições, a corrupção tende a constituir o principal perigo para o desenvolvimento do sistema socialista, obrigando o Estado a ter planos, orientações concretas e leis de combate permanente a ela.

Além disso tudo, o problema do emprego deve continuar sendo um problema, principalmente tendo em vista a população chinesa de 1,4 bilhão de habitantes. Num primeiro momento, os investimentos nos processos produtivos industrial e agrícola devem gerar novos empregos, mas também processos correlatos de desemprego.

Balanço das experiências chinesas de 1978 e 2020

A rigor, desde 1978 a China adotou uma série de reformas e políticas para dar seu salto no desenvolvimento industrial e agrícola.

Primeiro, elevou os preços dos produtos agrícolas para incentivar a produção agrícola familiar, criando um ambiente de incorporação de milhões de famílias camponesas para a elevação da produção.

Nessa mesma linha de desenvolvimento das áreas rurais, incentivou o desenvolvimento de projetos industriais de equipamentos para a agricultura nas zonas agrícolas.

Paralelamente, nos centros urbanos, organizou agências de elaboração de projetos industriais propostos por técnicos e operários de empresas estatais, a serem financiados por bancos estatais, permitindo, ao mesmo tempo, eliminar paulatinamente o sistema 3 por 1 e elevar a produtividade industrial. Ou seja, incentivou a formação de uma nova burguesia.

Também organizou e construiu “zonas econômicas especiais” para permitir a localização de novas empresas industriais, principalmente joint ventures com empresas estrangeiras que se comprometessem, contratualmente, a transferir novas e/ou altas tecnologias para as empresas chinesas parceiras, estatais e/ou privadas;

- Adotou planos quinquenais estatais de desenvolvimento nacionais, provinciais e municipais, tendo em conta as articulações regionais;

- Fortaleceu o sistema de participação dos funcionários e trabalhadores das empresas estatais no processo de planejamento e funcionamento dessas empresas através de assembleias gerais;

- Adotou um seguro-desemprego, cujo pagamento depende de o desempregado apresentar um atestado de que está realizando curso para elevar sua capacidade técnica, ou que está participando efetivamente de trabalhos comunitários;

- Adotou e executou um programa de eliminação da situação de vida abaixo da linha da pobreza, através da reorganização dos sistemas produtivos locais causadores dessa situação extrema, programa de sucesso alcançado em 2020.

Perspectivas para 2050

Os planejadores chineses acreditam que estarão ombreados, em termos industriais e agrícolas, com os principais países capitalistas, em torno de 2050, quando seu desenvolvimento científico e tecnológico tiver alcançado alto grau de desenvolvimento.

Segundo eles, os sistemas de energia e recursos naturais sustentáveis estarão estabelecidos; os principais problemas do ciclo hídrico estarão resolvidos; a manufatura verde de materiais e os processos recicláveis de materiais estarão em funcionamento; a tecnologia de informação estará universalizada; os sistemas de indústria biológica e da agricultura estarão consolidados; o sistema de saúde já será acessível a todos; os sistemas de exploração do oceano terrestre e do espaço sideral estarão em expansão; e a administração social do processo produtivo será crescente.

Isso significa que, entre 2020 e 2050, a China será confrontada, cada vez mais, pelo processo contraditório de elevação da produtividade e de descarte de força de trabalho, obrigando-a a adotar novos procedimentos de utilização dessa força humana e de distribuição de renda nacional.

Ou seja, seguindo as previsões da teoria econômica marxista, nos próximos 30 anos a China se confrontará cada vez mais com a contradição entre a alta produtividade das forças produtivas e o descarte da força de trabalho, que tende a criar gargalos na comercialização das mercadorias.

Nessas condições, é possível que a tendência socialista de transição se consolide, mesmo paulatinamente, através da redução do papel do mercado e do aumento consistente do papel do Estado na reorganização da produção e da distribuição dos bens produzidos.

Texto lido durante a mesa “A luta pelo socialismo no século 21 e trajetória chinesa”, em 27/03/21, das 13 Jornadas de Debate Sobre o Socialismo no Século 21, realizadas pelo Partido dos Trabalhadores e a Fundação Perseu Abramo

Wladimir Pomar é jornalista e militante do PT. Foi secretário Nacional de Formação Política do PT, coordenador do Instituto Cajamar e coordenador-geral da campanha Lula presidente em 1989. É autor de diversos textos sobre a China, entre os quais um reeditado em 2015 pela Fundação Perseu Abramo, intitulado O Enigma Chinês: socialismo ou capitalismo