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O sociólogo Gustavo Venturi nos deixou no último dia 12 de janeiro. Criador do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, também foi colunista de Teoria e Debate

Gustavo Venturi, sociólogo, pesquisador e palmeirense. Foto: Reiko Miura/FPA

A inteligência, a sensibilidade, o espírito científico e o compromisso militante de Gustavo Venturi se despediram de nós nesse 12 de janeiro de 2022.

A constituição do Núcleo de Opinião Pública (NOP) imprimiu um caráter diferenciador no perfil de atuação da Fundação Perseu Abramo, em relação às demais fundações partidárias que vieram à luz na segunda metade dos anos 1990.

Com a Lei dos Partidos Políticos, Lei 9.096/95, que criou o Fundo Partidário se consolidava uma aspiração democrática da sociedade brasileira naquele momento expressa pela maioria dos deputados e senadores no Congresso Nacional. Apostava no fortalecimento dos partidos como instrumentos indispensáveis da ação política e, portanto, das instituições que vinham sendo reconstruídas com a derrota da ditadura, a partir da Carta de 1988.

A Fundação Perseu Abramo deve à inteligência, e compromisso profissional de Gustavo Venturi, a formulação e construção do Núcleo de Opinião Pública (NOP) como um dos seus instrumentos de aproximação da realidade brasileira, por meio de pesquisas sobre a condição social, política e cultural dos setores populares numa das sociedades mais desiguais do mundo.

Entendia que para transformar esta mesma sociedade numa perspectiva socialista e democrática era indispensável despir-se do viés ideológico. Ir além das aparências, compreende-la, subsidiar e qualificar o debate político do Partido dos Trabalhadores, das esquerdas e dos setores progressistas sobre temas indispensáveis a um país que aspirava se pôr em sintonia com a contemporaneidade do mundo: “Mulheres brasileiras no espaço Público e Privado no Brasil”, “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”, “Situação dos povos Indígenas no Brasil hoje”, “Perfil da Juventude no Brasil”, “Diversidade sexual e homofobia no Brasil”, “Cultura política nas periferias”, entre eles.

Gustavo Venturi, enquanto esteve à frente do NOP, antecipou alguns desses temas que se tornaram agenda incontornável no debate do Brasil contemporâneo. Seja no momento virtuoso dos governos democráticos e populares, quando o país buscava a superação desses desafios, para avançar rumo a uma democracia substantiva, seja muito mais neste momento em que a sociedade brasileira amarga os retrocessos que vivemos desde o golpe de 2016, com a imposição do projeto neoliberal e do governo neofascista.

A existência e a ação do NOP, como instrumento de prospecção da realidade brasileira conferiram à Fundação Perseu Abramo, não apenas uma autoridade qualificada no seu diálogo e colaboração com seu instituidor, o Partido dos Trabalhadores, mas também como interlocutora com outras fundações partidárias no Brasil e no mudo. Espaço de diálogo com a academia, os centros de pesquisa, com a intelectualidade formal ou aquela que elabora a partir dos conflitos sociais, dentro dos movimentos populares, comunitários ou culturais.

Para mim é particularmente tocante rever nos registros da fundação a imagem de Gustavo Venturi expondo para jovens, em sessões do Fórum Social Mundial, em encontros mobilizados pela própria Perseu Abramo, resultados de pesquisas sobre “Drogas”, “Diversidade  Sexual e Homofobia no Brasil” ou sobre “Perfil da Juventude no Brasil”.

Devolvia naqueles encontros aos protagonistas-destinatários a leitura da duríssima realidade de um país que vira as costas aos seus próprios filhos. Um país herdeiro de 500 anos de cultura patriarcal, escravocrata e uma juventude em busca de caminhos para contestar e superar as engrenagens da exploração e do preconceito.

Aquelas pesquisas se converteram em referências valiosas para a formulação de políticas públicas em inúmeras experiências de gestão nos quatro cantos do país, na vigência dos governos populares, no final do século 20 e nos primeiros anos do século 21, interrompidos pelo golpe de 2016.

Gustavo Venturi soube traduzir como profissional e como militante o conhecimento científico em interpretação objetiva da realidade, capaz de pautar iniciativas de governo e estimular a participação popular nos processos de gestão democrática que precederam o avanço do neofascismo. E, mesmo depois do golpe, seguiram sendo utilizadas como forma de resistência à selvageria do projeto neoliberal contra as conquistas dos trabalhadores.

Uma recordação afetiva para terminar esse reconhecimento, que será afinal, sempre insuficiente. Durante a realização do Fórum Social das Américas, em 2004, estávamos em Quito, a maravilhosa capital do Equador. A cidade abriga um conjunto arquitetônico barroco único que fez dela Patrimônio Cultural da Humanidade, reconhecido pela Unesco. Gustavo fora encarregado de apresentar numa Oficina do Fórum, ao lado de Flávio Jorge, Flavinho, então diretor da Fundação, os resultados da pesquisa sobre “Diversidade racial e preconceito de cor no Brasil”, salvo engano.

Numa manhã livre – entre as múltiplas atividades do Fórum –  decidimos encarar uma oferta pouco usual para brasileiros: subir a encosta do vulcão Cotopaxi. Um dos cinco que circundam a capital equatoriana. Éramos três: Gustavo, Ricardo Azevedo, então vice-presidente da Fundação e eu.

Cumpridas todas as recomendações, luvas, gorro, agasalho, um estoque de pirulitos nos bolsos para devolver ao corpo a glicose necessária ao esforço da subida, iniciamos a marcha precedidos pelo guia. Avançamos uns duzentos metros em ziguezague pela encosta, lentamente. Essa também era uma das recomendações, lentamente, buscando o oxigênio cada vez mais rarefeito, quando ouvimos a voz e o mau humor de Ricardo Azevedo, fumante inveterado: “Ei! Não vou seguir com vocês. Isso aqui é o lugar mais feio do mundo. Só cinza e frio! Oxigênio que é bom, sumiu! Vou descer e esperar vocês lá embaixo. E fumar meu cigarro.”

Seguimos o guia, Gustavo e eu por cerca de quinhentos metros, sempre em ziguezague – o que torna o percurso muito mais longo – até uma estação intermediária, um refúgio, de onde se pode observar a coroa de neve que cinge o cume do Cotopaxi. A partir daquela estação não se permite que os amadores prossigam. Só aficionados e profissionais.

Aquecidos e reconfortados pelo chá de coca, oferecido gentilmente pelas pessoas que atendiam os caminhantes que alcançavam o interior da estação, Gustavo eu permanecemos ali um período considerável. Tempo suficiente para recuperar forças e empreender a descida, que afinal, mesmo cercada dos mesmos cuidados, se revelou tão penosa quanto a subida. Gustavo estava feliz. “Já podemos dizer aos netos que subimos a encosta de um vulcão”, me disse.

Na árdua trajetória que nos cumpre realizar para romper o círculo de ferro que nos ata ao binômio perverso da Casa-Grande & Senzala, na história da sociedade brasileira, a memória de Gustavo Venturi nos inspira. Como a dos lutadores que prefiguraram para seu povo um destino de justiça e liberdade e a ele se entregaram, mas não poderão celebrar com os sobreviventes o momento da reconquista.

Talvez para meu consolo, para tornar suportável a dor das perdas de militantes como Gustavo Venturi, gerado pelo impulso de novas lutas, o poeta recorre – talvez em vão – ao verso que afinal nos alimenta o sonhos:

“O que somos nós senão bandeiras

que passamos de uma a outra mão

sobre o tumulto?

Geração após geração?”

Seguimos, Gustavo.

Brasília, 16 de janeiro de 2022.

Pedro Tierra, poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.