Política

Se a democracia liberal-representativa for recuperada como universo político de vivência comum, a experiência do OP será considerada um marco de ousadia reformista dentro da ordem

Depois dos 16 anos dos governos do PT, o OP foi paulatinamente enfraquecendo e perdendo seu poder decisório. Foto: Sul 21

Com fundamento na teoria política democrática, discorro sobre a gênese política e institucional do Orçamento Participativo (OP). Faça-o como um dos “formuladores" ativos de sua implementação e colaborador em diversos trabalhos acadêmicos, algum de- les como entrevistado, outros como “consultor” informal. As centenas de trabalhos sobre o OP já deram conta de analisá-lo criticamente como experiência democrática vitoriosa, com as suas grandezas e limites. A presente contribuição vai noutro sentido, pois busca os seus pressupostos ideológicos e políticos – até agora “invisíveis” – não contidos naquelas pesquisas que contribuíram para seu reconhecimento mundial.

Tanto na celebração dos 200 anos da Revolução Francesa como na derrubada do Muro de Berlim, centenas de intelectuais “celebraram o que seria um casamento eterno do capitalismo com os direitos humanos, pela via liberal democrática e representativa (...), mas depois de trinta anos o casal encontra-se à sombra o divórcio.”1 Aduzo: com seus filhos espúrios evocando o fascismo, a anticiência, a xenofobia, a indiferença perante a morte e a agoniados excluídos e dos pobres.

No clima que precedeu a implantação do Orçamento Participativo em Porto Alegre – nos festejos do “fim do comunismo” – as celebrações não eram vistas por nós como sinalizadoras de um novo futuro da esquerda, massim como início da recuperação  da utopia que desmoronava. Estávamos, portanto, distantes do otimismo liberal-democrático expresso logo após a hecatombe histórica da URSS e mais próximos de uma orfandade rebelde.

Em novembro de 1989, a decomposição das experiências "reais" do Leste e a virada liberal do contrato social-democrata europeu, somadas à derrubada do Muro, sinalizaram, contudo – para as esquerdas do mundo –, a imperatividade de uma reflexão sobre as raízes do nosso ideário socialista. Sem um encontro com um passado tido como heroico (que se esvaía) o presente deste passado cairia no vazio e o diálogo das esquerdas, sobre o socialismo e sobre a "questão democrática”, perderia o sentido.

Quando escrevo este texto o capitalismo está amantizado, não com a democracia, mas com o capital financeiro global, assediado pela pandemia do coronavírus. Os pobres e os miseráveis do mundo continuam “à margem de vida”, à mercê do que o capitalismo se tornou depois da queda do Muro: Trump representando a crise humanista do capitalismo e Merkel sua consciência culpada iluminista. O espectro do “comunismo” não ronda em nenhuma parte do mundo e a falta de um contraponto democrático humanista (e possível) ao neoliberalismo libera as forças do mercado para seu nível máximo de fetichismo na ordem global.

A cidade de Porto Alegre era um terreno fértil para o debate em 1989. A ação po licial da ditadura – mais repressiva onde as tentativas de luta armada foram intensas – não desbastara a esquerda que atuava na região: cristãos da teologia da libertação, comunistas heterodoxos e tradicionais, “autonomistas” e social-democratas – com suas organizações discretas ou clandestinas – sobreviveram. A maioria dos seus quadros, então, já integrava ao Partido dos Trabalhadores, que pretendia se construir como a “reserva moral” para uma esquerda, ainda que genericamente socialista, predisposta a recompor as velhas utopias.

Quando inicia a vigência da Constituição de 1988 – cuja assembleia foi acordada entre a oposição “consentida” e setores do regime militar – a esquerda passa a ter novamente um papel público relevante. Foi quando ela vestiu outra roupagem e abriu-se, sucessivamente, para novas formas de luta e organização. A ideia de uma revolução socialista, pelas diversas vias que as esquerdas propunham na luta contra a ditadura militar, começa a ruir obstruída pela claridade da luta política democrática que exige outras formas de contencioso e visões mais sofisticadas para compreender as novas questões de Estado e de governo.

Parte desta esquerda militara nos bairros de forma “infiltrada” junto aos movimentos sociais da cidade, defendendo as demandas comunitárias de saneamento básico, iluminação pública, creches, melhorias no transporte coletivo e obras de infraestrutura, como a pavimentação de ruas. Neste novo período a esquerda também reviveria as suas influências junto à universidade e o movimento sindical, bem como voltaria a estar presente nas organizações representativas dos profissionais liberais, atuantes nos movimentos de resistência ao regime de exceção.

Na restauração democrática, cujo momento decisivo foi a promulgação da Constituição de 1988, a esquerda mantinha o seu fôlego, para tentar radicalizar a democracia emergente. Foi neste quadro que o OP se tornou um projeto comum de uma esquerda plural, que emergia da clandestinidade com seus militantes mais calejados, mas também já integrada por jovens ativistas da luta social a partir do início dos anos 1980. Suas ideias mestras sobre política se desenvolveram em oposição frontal aos partidos tradicionais de então, tolerados pela ditadura, que também se reorganizaram após a anistia política em 1979.

Neste ambiente foi composto o programa de governo da primeira chapa da Frente Popular (1988) em Porto Alegre, que se demonstraria capaz de vencer as eleições diretas para a prefeitura. Tal chapa tinha o signatário deste texto como candidato a vice-prefeito, sob a liderança do bancário-sindicalista Olívio Dutra como candidato a prefeito. Na época, Olívio era um líder sindical de vanguarda e tornara o quadro mais influente do estado do Rio Grande do Sul na organização do Partido dos Trabalhadores.

Essas são as condições específicas nas quais surge a ideia “antissistema” do Orçamento Participativo, através da esquerda social e política, que se propõe a incentivar uma participação popular imaginada, porém com uma forma distante do que ela seria no futuro. Nossa inspiração vinha dos exemplos do Comuna de Paris, dos sovietes, dos conselhos alemães da social-democracia, das plenárias populares espontâneas dos movimentos comunitários na cidade, que tinham se mantido vivos, ainda que de forma reservada e por vezes clientelista durante a ditadura militar.

Ao assumir, nas eleições em 1989, compromissos com a governabilidade “pela esquerda” – através do que designávamos como conselhos populares – iniciávamos um movimento prático de busca de um modelo de participação popular e, a seguir, abríamos um debate teórico sobre tipo normativo do nosso projeto, ainda indefinido. A discussão, que percorreu intensamente as bases plurais do PT, não foi internalizada pelos demais partidos de esquerda, indiferentes perante um movimento que começava com escassas chances de se tonar exemplo nacional e mundial.

O movimento prático foi apoiado com certa naturalidade nos movimentos comunitários (organizados ou em nucleação), o que permitiu não partir do “zero” e estimulou que captássemos a energia da luta comunitária existente, que sobrevivera ao autoritarismo do regime militar. Propúnhamos às comunidades novas formas de organização para sua valorização perante o Estado, assumindo o compromisso que elas teriam incidência privilegiada na composição do orçamento público, para que suas demandas fossem atendidas.

Nas elaborações em curso defendíamos a democracia direta, idealizada pelas concepções tradicionais da esquerda, que viam as instituições e os espaços políticos da democracia como espaços de luta, recusando-os como dotados de um "valor universal". No processo da sua implantação a democracia direta tornou-se, no entanto, um instrumento democrático de gestão púbica, integrado à ordem jurídica em curso, forçando os seus limites, mas na verdade reorganizando a vida institucional da cidade.

O modelo normativo que foi se aperfeiçoando viria de uma peculiar forma de entendimento do direito público, que se propôs a constituir – através de um diálogo com Conselho geral do OP – um regimento interno, que regularia o funcionamento do OP de forma negociado com os seus conselhos regionais da cidade. Esta forma de regulação foi concertada com o governo eleito e regrou, portanto, um contrato político-jurídico de âmbito local, como de um direito público não-estatal, acordado entre a delegação política pelo voto eleitoral e os conselhos regionais do OP.

Este contrato, para “dar certo”, deveria ser respeitado pelos governos que, por concepção ideológica, assimilassem a radicalização democrática e entendessem que a produção do Orçamento “deveria baixar” até as camadas populares.

O momento seguinte seria a objetivação de uma fração do Estado Social em âmbito local, não como momento preliminar de um projeto socialista, como desejávamos de forma irrealista. A conciliação democrática que vencera na sociedade brasileira, com a Constituição de 1988, recomendava que deixássemos de lado as ilusões mais imediatistas e absorvêssemos por inteiro o novo processo político democrático, resultado da conciliação que nos retirara da ditadura.

Aqui cabe por inteiro o formulado por Boaventura de Souza Santos, para entender o nosso itinerário: “O problema da democracia nas concepções não hegemônicas está estreitamente ligado ao reconhecimento de que a democracia não constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional. A democracia constitui uma nova gramática histórica. Não se trata neste caso, como em Barrington Moore Jr., de pensar as determinações estruturais para a constituição dessa nova gramática. Trata-se sim de perceber que a democracia é uma forma sócio-histórica e que tais formas não são determináveis por leis naturais.”2

No debate sobre como compor o Orçamento, a questão da participação que percorrera os dissensos eleitorais se apresentava agora como questão concreta de governabilidade, e esta necessidade de governabilidade teria influência decisiva na concepção de participação popular que inaugurávamos. Ela se voltaria, de fato, para a democratização da gestão política local (na cidade), não mais para a “subversão” das instituições formais do Estado. Este esforço político e de formulação teórica para os novos tempos, no qual deixaríamos de ser oposição sistemática ao regime militar e aos seus governos, ocupa o nosso imaginário revolucionário e nos chama para a política real, em curso, originária da "abertura" controlada que se torna uma estrada aberta a partir da Constituição Social de 1988.

Nos nossos dois primeiros governos na cidade (1989-1992; 1993-1996) enfrentamos questões que iriam influenciar o formato do OP em Porto Alegre, dando à cidade  uma projeção mundial, não somente perante os governos de esquerda, mas junto a todos os governos que apostassem em algum nível de inovação na agenda liberal-representativa em âmbito local. Esta inovação foi ensejada pela reestruturação política da gestão da cidade – em âmbito municipal – através da absorção da democracia direta combinada e integrada na democracia representativa.

O processo ali cursado promoveu um encontro – naquele espaço – entre diversos grupos sociais que atravessavam a estrutura de classes da cidade, num momento específico de “conjuntura não-revolucionária”, quando “o OP da capital gaúcha em 1989-2004 tornou-se a experiência que melhor ilustrou uma solução democrático-radical na direção de uma pedagogia política de autoemancipação”3.

A evolução do número de demandas nos nossos três primeiros governos (Olívio Dutra, Tarso Genro e Raul Pont) demonstra claramente o grau de confiança que o processo adquiriu nas comunidades mais pobres da cidade e nas suas classes médias baixas: as demandas evoluíram 87,71% desde início do OP, em 1990, tendo iniciado com 230 demandas e chegado a 440 em 12 anos. As demandas foram atendidas, total ou parcialmente, pelo poder público, quando da execução de cada Orçamento neste período.

O dilema final “de fundo”, que envolveria a natureza de um governo de esquerda,  dentro de uma ordem jurídica nova, que abria espaços para uma combinação da democracia direta com representativa4, seria o seguinte: os trabalhadores e seus aliados, tendo  chegado ao governo – pelos meios democráticos – governam a cidade só para os trabalhadores e os excluídos ou governam para "toda a cidade"?

A inversão da hierarquia nos investimentos públicos, priorizando as classes de baixa renda, bastaria para caracterizar um governo de esquerda no âmbito da cidade? No  entanto, o tema axial a ser respondido era mais complexo: os trabalhadores governam para toda a cidade, mas como privilegiar de forma transparente – no orçamento público – as necessidades dos "de baixo"? Tratava-se, então, de instituir privilégios orçamentários regulados, a partir do peso da participação direta das comunidades na discussão do orçamento público, que fossem absorvíveis pelo Poder Legislativo local, como órgão da representação política que votava o Orçamento e o tornava norma jurídica.

Este privilégio orçamentário transparente é o que impulsionaria a regulamentação contratual, entre governo e conselhos através do regimento interno do OP, e o seu consequente sucesso junto às classes populares. À medida que os investimentos em obras públicas e os investimentos em saúde e educação apareciam na vida das comunidades – como frutos reais da decisão popular –, a confiança na marcha da democracia direta articulada coma delegação eleitoral foi visivelmente aumentando.

Esta visão da gestão, como tarefa da esquerda, implicava na formação de um novo “grupo dirigente”, implícito ou acordado dentro do Partido dos Trabalhadores e do próprio governo, para ampliar o seu apoio. A instituição consciente de uma democracia direta, como “semente de um novo Estado”, permitiu um processo de participação popular combinado com o respeito à representação política.

Depois dos 16 anos de vigência dos governos do PT, que reorganizaram a cidade de Porto Alegre, o OP foi paulatinamente enfraquecendo e perdendo seu poder decisório, sem desmontá-lo plenamente, até sua liquidação, em 2020, no governo da extrema-direita na cidade. Tal liquidação se deu sob a indiferença ou o aplauso do oligopólio da mídia local, que percebia o OP como nocivo à sua influência na formação de opinião e atuara sempre em defesa da visão “empresarial” da gestão pública, com o Estado sendo “gerenciado” como uma empresa privada.

No nosso primeiro e segundo governos (entre 1989 e 1996), os partidos comunistas tradicionais e os partidos que se configuravam como do campo "popular" (trabalhistas, sobretudo) não só não simpatizavam com as formas de participação direta, que – segundo eles – concorria com a representação parlamentar na Câmara de Vereadores (Poder Legislativo Municipal), como também porque – na sua visão – empoderavam o Partido dos Trabalhadores junto às camadas mais populares da cidade.

Na perspectiva vencedora em nosso meio, na qual “o local constituir-se-ia em es paço privilegiado, (para) viabilizar de forma mais concreta a relação entre governo e sociedade”, fazia todo sentido a visão de Castells: “o município (...) é o órgão do Estado mais permeável a uma representação política das classes dominadas (...). Foi essa (visão), na oposição das esquerdas, que deu à política municipal o seu caráter de vanguarda na longa permeabilidade na marcha da esquerda através das instituições democráticas” (Castells,1980:1.269).5

Os sucessivos governos centristas e de direita, que se sucederam em Porto Alegre, foram paulatinamente rompendo com aquele contrato político que dava confiabilidade ao OP, como relata esta informação relevante: “no ano de 1989, havia 13 municípios que adotaram a política de participação no orçamento. Em 1993, 36 cidades adotavam a política; em 1997 (ano que se amplia a implementação do OP nas médias e pequenas cidades) 103 cidades; em 2001, 177 cidades; em 2005, 203 municípios; em 2007, 353 municípios; em 2009, 437 cidades; e por fim em 2014, 482 cidades adotavam o OP nos 26 estados do Brasil. Em 2017, segundo o levantamento da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Rio Grande (então cidade coordenadora da Rede BR de OP), apenas 120 municípios adotavam tal política, e destes, somente 24 em pleno funcionamento.”6

A degradação do OP, até a sua morte política, nas mãos da extrema-direita “gerencial”, também fica clara nestes dados:

Ao longo dos anos se constatou que mais da metade (número que oscila entre 53,2% e 69%) das pessoas opinam que ‘sempre ou quase sempre’ se decide sobre obras e serviços. No entanto, nos últimos dois anos da pesquisa (2005 e 2009), houve uma redução considerável na percepção de ‘sempre ou quase sempre’ decidir, ao passo que nesse mesmo período, as respostas ‘nunca’ ou ‘às vezes’ aumentaram cerca de um terço, – ‘nunca’ passa de 0,6 em 1998 para 3,8 em 2009;  e ‘às vezes’ passa de 23,8 em 1998 para 32,4 em 2009. Com base nessas informações, se conclui que a opinião sobre poder de decisão tem se tornado mais pessimista.7

No governo de Olívio Dutra, já no âmbito estadual (entre 1999-2003), o sistema do Orçamento Participativo foi instituído com relativo sucesso, embora o seu desgaste já estivesse em andamento e a resistência, no parlamento estadual, fosse extraordinariamente forte, já que os métodos políticos participativos do OP reduziam fortemente o poder das oligarquias no controle sobre o Orçamento.

Com base nesta experiência do governo Olívio, no segundo governo (2011-2015), já como Frente Popular no Rio Grande do Sul e com forte participação comunista – tendo como governador quem escreve este texto –, formulamos um novo sistema participativo, sustentado no OP, assim narrado por um dos dirigentes desta nova experiência: “O Sistema Estadual de Participação Popular e Cidadã do Rio Grande do Sul (2011-2014) foi instituído pelo governo do estado em 2011, objetivando articular, de maneira sistêmica, diferentes fóruns de participação social. O sistema reunia experiências em curso no estado – Consulta Popular e os Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes), apoiados em lei estadual instituída no governo Alceu Collares(1991-1995) –; o resgate dos fóruns do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e o próprio Orçamento Participativo; e a instituição de novos, o Gabinete Digital e o Gabinete dos Prefeitos”.

Entre suas diretrizes, o sistema propunha garantir a “participação direta do cidadão, de forma presencial ou digital, na elaboração, monitoramento e avaliação das políticas; a transversalidade nas suas execuções, e a promoção de um diálogo com a sociedade qualificado e sistemático” (SEPLAG, 2011).

Sendo assim, o objetivo não se resumia à legitimação das políticas governamentais, mas também a abertura de novos canais, a partir dos quais as ações do governo pudessem ser debatidas, concertadas e decididas pela sociedade. A interdependência entre os espaços de participação, sem lhes retirar a autonomia, buscava integrar três dimensões conceituais: i) participação da sociedade na formulação de políticas estratégicas, e na composição do orçamento e do investimento; ii) democratização da gestão pública no processo deliberativo estatal; iii) interação entre governo e temas sensíveis à sociedade através das novas tecnologias de informação e comunicação.

A vocação de cada fórum componente do sistema assegurava a diversidade, amplitude e transversalidade da participação e das políticas gestadas nos diferentes níveis. O perfil multifacetado e dinâmico possibilitava o processo participativo permanente, desde a votação da peça orçamentária anual, nas plenárias do OP, até a formulação de políticas concertadas no CDES, passando pelos debates promovidos pelo Gabinete Digital. O calendário anual de atividades permitia a participação contínua da sociedade na gestão, o monitoramento da execução de políticas públicas, a revisão do planejamento estratégico, e o tratamento de questões conjunturais.

Em 2013, no esforço de aprimoramento do sistema, o governo determinou, através de Nota Diretriz firmada pelo governador que:

[...] este processo deverá combinar as distintas dimensões de participação que compõem o Sistema, que vai dos debates com as representações da sociedade civil, realizados no CDES sobre gestão e estratégias, passa pelos encontros com debates sobre desenvolvimento realizados nas regiões, pela participação presencial e direta dos cidadãos nos debates sobre o orçamento, pelo diálogo realizado através dos mecanismos virtuais até chegar à votação universal. [...]. A combinação de todos estes instrumentos, de uma forma consistente e orgânica, é base denosso Sistema de Participação Popular e Cidadã (NOTA DIRETRIZ Nº 21, março de 2013).

A nova diretriz não se cumpriu inteiramente, dentre outros motivos, por ter sido o  sistema interrompido pelo governo que sucedeu a gestão Tarso Genro, condenando a inédita experiência ao seu encapsulamento temporal e, ao final, a sua extinção melancólica.

Alguns resultados apresentados por três dos seus principais fóruns materializam os objetivos pretendidos pelas diretrizes que instituíram o Sistema de Participação. O balanço dos quatro anos de atividades do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul (CDES RS) apresentou a realização de 24 reuniões do Pleno do Conselho; 19 Câmaras Temáticas; 35 Diálogos Temáticos; 23 Diálogos Regionais; 9 Seminários nacionais e internacionais; 2 Cartas de Concertação; 60 Relatórios de Concertação e recomendações ao governador. Destes, 192 propostas concertadas pelos 90 conselheiros representantes da sociedade civil foram atendidas ou processadas, total ou parcialmente pelo governo estadual8. Das cinco ferramentas de participação promovidas pelo Gabinete Digital – Governador Pergunta; Governador Responde, Governo Escuta; De Olho nas Obras; e Diálogos em Rede –, apenas nas quinze edições do “Governo Escuta” houve mais de 700 mil interações9. Em 2014, o OP Estadual registrou a participação de mais de 1,3 milhão de cidadãos na votação das prioridades de investimentos para o orçamento de 2015. Sendo, participantes nas audiências regionais: 6.101; participantes nas assembleias municipais: 79.120; participantes na votação digital: 255.751; participantes na votação presencial: 1.059.842; total: 1.315.593 votantes10. O sistema de participação, mais que uma inovação técnica para a gestão pública, foi certamente uma nova “tecnologia de gestão democrática”.11

A experiência do OP em Porto Alegre, que se diversificou pelo mundo, foi uma experiência política generosa de gestão do Estado que pretendia repartir (e repartiu) as responsabilidades políticas de gestão e de gerência dos recursos públicos, pagos pelo contribuinte ao poder público. Sua importância foi atestada pelas resistências que suscitou nos setores mais conservadores da sociedade, que sempre manejavam o orçamento público prioritariamente para atender seus interesses e que sempre compreenderam o Estado – no seu nervo mais concreto, o dinheiro – como um aparato privado para seu controle exclusivo. Não é, portanto, uma experiência perdida nem o início de uma revolução. Numa perspectiva de futuro, todavia, se a democracia liberal-representativa for recuperada como universo político de vivência comum, esta experiência do OP será considerada um marco deousadia reformista dentro da ordem.

Tarso Genro é advogado e presidente do Instituto Novos Paradigmas. Foi prefeito de Porto Alegre (RS), deputado federal, secretário do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, ministro da Educação, ministro da Justiça, ministro das Relações Institucionais dos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, presidente nacional do PT, e autor de vários livros e artigos de direito e teoria política, tais como: "Utopia Possível",     “Direito Individual do Trabalho”, “Contribuição à Crítica do Direito Coletivo do Trabalho”, “O futuro por armar: democracia e sociallismo na era globalitária”.