Sociedade

A celebração já passou por várias disputas políticas. No entanto, a luta por direitos das mulheres como uma forma de transformar as coisas permanece viva nas ruas

A data sempre esteve ligada ao esforço político de trabalhadoras em reivindicar direitos Foto: Reprodução

Mulheres de várias partes do Brasil, e do mundo, se organizam e ocupam as ruas todos os anos no dia 8 de março. Reivindicam direitos sociais: soberania alimentar, moradia, previdência, creches e direitos reprodutivos. Nos últimos anos, nesse dia, as mulheres têm combatido a ascensão das forças políticas conservadoras. Não sem motivo – a exemplo do governo Bolsonaro, esses grupos aplicam políticas que forçam uma visão de família na qual as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados. Em nome do compromisso de pagar juros da dívida pública, fecham creches, escolas, sucateiam hospitais e outros equipamentos sociais. Fazem assim, com que o trabalho de cuidados, que não pode ser adiado, seja feito pelas mulheres e sem reconhecimento algum. Em 2022, vivemos um cenário apocalítico de pobreza endêmica: grande parte da população brasileira se encontra em condições assustadoras de trabalho, recebendo salários irrisórios e em jornadas extenuantes. E nesse “8 de Março” veremos as mulheres reivindicarem transformações que são capazes de mudar a vida de todo mundo.

Já faz tempo que a data faz parte do calendário de lutas das mulheres e esse é o tema do nosso texto. Abordar as origens do “8 de Março”, no entanto, não é uma tentativa de ditar seu sentido político. Os eventos ligados a esse acúmulo de lutas já sofreram transformações ao longo do tempo e do território em que aconteceram, portanto, o “8 de Março” é uma data histórica. Mesmo assim, ela sempre esteve ligada ao esforço político de trabalhadoras em reivindicar direitos e mudar o mundo, principalmente ao empenho de mulheres socialistas.

Por um dia de lutas

Desde o começo do século 20, Clara Zetkin, Alessandra Kollontai e Rosa Luxemburgo reivindicavam que o movimento socialista tinha que contar com a organização de trabalhadoras. Foi aí que elas garantiram a realização de uma série de conferências de mulheres socialistas na Europa. Em 1909, o Partido Socialista dos Estados Unidos era muito forte e tinha atuação constante no movimento sindical. Reunidas no Comitê Nacional da Mulher, elas organizaram, então, o primeiro Woman’s Day (Dia da Mulher, no singular mesmo) que aconteceu no último domingo de fevereiro, em várias cidades daquele país. A exemplo do “1º de Maio”, dia do Trabalho, as celebrações se concentravam aos domingos mais próximos das datas, para que maior número de pessoas pudesse comparecer.

Nos Estados Unidos, o “Dia da Mulher” de 1909 teve bastante repercussão. Foi aí que o partido resolveu que manteria a atividade como um evento anual. Na Segunda Conferência Internacional da Mulher Socialista, em 1910, na cidade de Copenhague, aquelas que eram organizadas por Zetkin e Luxemburgo, chegou a proposta de que a atividade política se tornasse internacional. Clara Zetkin, então, submeteu a seguinte resolução para as outras cem delegadas da conferência:

De acordo com as organizações políticas e sindicais do proletariado, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão em seus respectivos países um dia especial das mulheres, cujo principal objetivo será promover o direito de voto das mulheres. Será necessário debater esta proposição com relação à questão da mulher a partir da perspectiva socialista. Esta comemoração deverá ter um caráter internacional e será necessário prepará-la com muito esmero”. (GONZALÉZ, 2010, p. 115).

Nessa conferência, dirigentes e delegadas ainda trataram da importância do direito ao voto das mulheres, da necessidade urgente de assistência às trabalhadoras grávidas, e da importância da redução da jornada de trabalho, que no começo do século 20 podia chegar a 16 horas diárias. Para as socialistas, portanto, os direitos das mulheres estavam intrinsecamente ligados à luta por direitos sociais e políticos.

Assim como nos Estados Unidos, as manifestações por toda a Europa foram exitosas. A celebração de um “Dia da Mulher” serviu para estreitar laços entre operárias e partidos de vários países, além de se mostrar um método de mobilização e protesto efetivo. Contudo, apesar de sua internacionalização, o Dia das Mulheres, agora no plural, ainda não contava com uma data fixa. Isso só foi acontecer na Conferência das Mulheres Comunistas de 1921, quando as delegadas aprovaram outra resolução escrita por Clara Zetkin:

Nestes tempos de entusiasmo acolhemos a proposta das nossas companheiras búlgaras e a resolução da 2ª Conferência Internacional das Mulheres Comunistas, em Moscou, de celebrar uniformemente o Dia Internacional da Mulher no dia 8 de março, dia em que o celebravam as companheiras russas. Os corações pulsavam de gozo, os olhares se levantavam em direção ao futuro e as vontades se reafirmavam e se inflamavam. Éramos movidas pela lembrança daquela grande manifestação das mulheres proletárias de Petrogrado pela paz e pela liberdade, que no 8 de março de 1917 dera início à Revolução Russa”. (A resolução foi transcrita no livro de Isabel Gonzalez, p. 115).

De 1909 à década de 1920, o sentido do “Dia da Mulher” permanecia o mesmo – os direitos das trabalhadoras e a transformação do mundo. Entretanto, com a ascensão de Stálin ao poder em 1927, o “8 de Março” se esvaziou do conteúdo transformador e foi transformado em um dia equivalente ao Dia das Mães. Bem mais tarde, em 1975, a data recebeu, em Conferência da Organização das Nações Unidas, o aval de comemoração internacional. A partir daí, o acúmulo político das mulheres trabalhadoras foi se apagando; agora, a luta das mulheres passava a ser vista “no contexto da ampla luta pelo desenvolvimento econômico e social”.

Mesmo assim, o “Dia Internacional das Mulheres” chegou ao século 21 como um momento de lutas políticas e reivindicações de direitos. Até hoje, de todas as datas comemorativas anuais, é aquela que menos envolve consumo de presentes ou comidas, mesmo com grande esforço da mídia em vender produtos ditos empoderadores ou ideais de feminilidade.

A história por trás do mito

O acúmulo de luta das trabalhadoras e das socialistas também foi paulatinamente substituído por um mito. Muita gente o conhece: o Dia Internacional das Mulheres seria uma homenagem a trabalhadoras da indústria têxtil que foram incendiadas vivas em uma fábrica de Nova York.

É verdade que, em 1908, houve um incêndio de proporções consideráveis na fábrica de roupas femininas Triangle Shirtwaist Company, que ficava num prédio do bairro Lower East Side, em Nova York. A empresa contava com cerca de 500 funcionárias, a maioria mulheres jovens e imigrantes. É verdade também que desde o começo daquela década, o prédio era alvo de fiscalizações e denúncias por parte do conselho sanitário da cidade, já que, assim como muitos outros no período, ele tinha sido construído de forma descuidada e sem preocupação com as pessoas que o usariam. Foi aí que, num sábado, no dia 25 de março de 1908, um incêndio atingiu o andar do prédio. Sem escadas de emergência e lotado de materiais inflamáveis, o incêndio fez 146 vítimas. A tragédia gerou muitos protestos por parte dos sindicatos e organizações de mulheres trabalhadoras, mas não deu origem às celebrações de um dia internacional das mulheres. O episódio compõe os muitos momentos de revolta com as condições de trabalho. Tudo isso foi demonstrado no livro de Isabel González.

Entretanto, não basta “desmentir o mito”, é preciso também explicar por que ele existe. Duas historiadoras francesas buscaram essa resposta. Ao pesquisar alguns jornais, elas encontraram uma matéria de 1955 que continha a informação de que o “Dia Internacional das Mulheres” era em homenagem às trabalhadoras que morreram em um incêndio. Elas não tinham encontrado nenhuma notícia parecida antes de 1955. A década de 1950 era o auge da Guerra Fria, quando Estados Unidos e URSS disputavam a hegemonia do globo terrestre por meio de tensões políticas em blocos econômicos e corrida armamentista. Para garantir o apoio do seu bloco, há muitos registros de uma campanha anticomunista deflagrada pelo governo dos Estados Unidos. Dessa forma, já que o movimento feminista não renunciara à celebração da data, a lógica norte-americana envolvia retirar seu sentido “bolchevique” e espalhar notícias na imprensa sobre uma origem fictícia do “Dia Internacional das Mulheres”, mesmo que baseada em fatos reais. Por isso, até o mito pode contar uma história.

A celebração do “Dia Internacional das Mulheres” já passou por várias disputas políticas, incluindo o terrorismo da Guerra Fria. No entanto, a luta por direitos das mulheres como uma forma de transformar as coisas permanece viva nas ruas de todo mundo, ainda no século 21.

Para saber mais:

O livro de Isabel Gonzalez é esse: GONZÁLEZ, Ana Isabel. As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres. São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010.

Sobre o anticomunismo, ler: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). EdUFF, 2020.

No Brasil, a referência mais antiga que encontramos sobre a celebração do Dia Internacional das Mulheres foi feita por costureiras na cidade do Rio de Janeiro, em 1922. A categoria era composta por várias jovens, muitas delas negras, que trabalhavam em ateliês em jornadas absurdas com baixos salários. Elas tinham organizado uma grande greve em 1919 e permaneceram mobilizadas no sindicato por alguns anos. Essa descoberta é de Beatriz Luedemann Campos, que foi aluna do curso de História da Unifesp e defendeu uma monografia sobre o tema, em 2021. Para ler: CAMPOS, Beatriz Luedemann. “Companheiras em Greve: o movimento paredista da União das Costureiras em junho de 1919”. Revista Angelus Novus, nº 17, 2021. Link: https://www.revistas.usp.br/ran/article/view/189595/179171

As duas historiadoras francesas que trataram sobre o mito da origem do “8 de Março” são Liliane Kandel e Françoise Picq. Elas aparecem no artigo de Temma Kaplan, na revista Feminist Studies (nº 11), de 1985.

Maria Luiza Péres é aluna do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisa a atuação política das mulheres socialistas e seus congressos internacionais

Glaucia Fraccaro é professora do Departamento de História da UFSC. Autora do livro Os Direitos das Mulheres – Feminismo e Trabalho (Editora da FGV, 2018)