“Vivemos como se as desigualdades fossem parte da vida, algo do qual não pudéssemos sair. Mas desigualdades não são uma graça de Deus. São frutos de sistemas feitos pela mão humana, que precisam ser desfeitos. Nos habituamos a viver com as injustiças, mas não devemos perpetuá-las”.
Graça Machel
A desigualdade social é um tema da ordem do dia que nos conecta com os principais problemas do mundo contemporâneo. Embora a sua persistência indique a necessidade constante de soluções políticas conjuntas que alcancem gerações de agora e as que virão, como também revela a amplitude e variação de seus efeitos na vida das pessoas, a desigualdade social é um fenômeno complexo e aberto para ressignificações. Na pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), a sua repercussão se deu na forma de alerta global tanto em termos de inequidades no acesso das populações mais vulneráveis aos imunizantes, quanto nas estimativas sobre os impactos econômicos da crise sanitária que se baseiam em profundas assimetrias entre os países desenvolvidos e periféricos1.
O Brasil atravessa a pandemia de Covid-19 com nível preocupante de desigualdade social baseada na distribuição de renda2. O comportamento desproporcional dos rendimentos entre ricos e pobres remonta aos nossos antepassados históricos, reiterando zonas de exclusão social, nas quais o princípio ocidental civilizatório da dignidade humana se tornou uma promessa muitas vezes irrealizável para determinados agrupamentos. Todavia, se pensarmos que o antídoto para a desigualdade social é simplesmente o seu par oposto, a igualdade, bastaria injetar uma dose de homogeneidade na sociedade para erradicar as suas diferenças e, por conseguinte, as suas mazelas3. Algo que parece impossível, mesmo naqueles países onde a performance democrática se mostrou mais exitosa em termos de cidadania ampliada4.
Invisibilizar as diferenças não é o caminho para enfrentar a desigualdade social, especialmente quando nos deparamos com disparidades inerentes aos grupos mais vulneráveis. De forma sistemática, os componentes que impulsionam a desigualdade social podem ser identificados pelas categorias de classe, raça e sexo. Quando contrastadas, elas são redimensionadas conforme a capacidade de mobilidade dos sujeitos na estrutura social que as encarnam como experiência, identidade e condição. Outrora, quando o país se orientava por uma justiça social progressista, houve proeminência de ações focalizadas da esfera pública que incutiram princípios de equidade nas políticas sociais. Contudo, e apesar de seus efeitos redistributivos, de modo geral, o desempenho de agrupamentos específicos na força de trabalho permanece restritivo. Os atributos de classe, raça e sexo operam como multiplicadores de disparidades validadas pelas relações de poder na ordem social, bloqueando oportunidades para certas pessoas e reproduzindo privilégios de outras, que dificultam a superação das diferenças socialmente hierarquizadas por parte daqueles(as) que detêm menos investidura para disputar melhores oportunidades.
Aqui, aplicamos o termo “mulheres trabalhadoras” para ressaltar especificidades desse grupo populacional no mercado de trabalho, mas também buscamos extrapolar o sentido métrico fornecido pelos indicadores socioeconômicos, a fim de reconhecer a potencialidade transformadora que as mulheres carregam consigo para fortalecer, reconstituir ou criar laços de solidariedade. Via de regra, elas são catalisadas por contextos de deterioração dos sistemas de seguridade social dos Poderes Públicos, agravados por flexibilizações do código trabalhista, e ajustes estruturais orientados pelo princípio do Estado mínimo. A precarização das condições de vida e de trabalho não só corresponde ao desmonte democrático, como também generaliza a pobreza nas camadas mais pobres da população, sendo as mulheres e, por conseguinte, as mulheres negras, uma fração substantiva que caracteriza as fragilidades sociais do nosso país.
Essas questões norteiam o presente texto, que apresentará, a partir de algumas estatísticas sociais do trabalho5 produzidas ao longo da pandemia, breves apontamentos sobre a desigualdade social observada pela situação das trabalhadoras brasileiras. Em complemento, o texto trará algumas projeções globais que mostram a deterioração da força de trabalho feminina agravada pelo contexto da pandemia, o que na órbita de crises simultâneas se apresentam indispensáveis para captar tendências multidimensionais sobre as desigualdades sociais.
Contrastes socioeconômicos de classe, raça e gênero na pandemia
Entre 2012 e 2020, a população que recebia até um quarto de salário mínimo per capta viu cair o seu rendimento do trabalho em quase 15%. Já o rendimento de outras fontes para este grupo, consideravelmente advindas de programas sociais, saltou de 29,7% para 50,3% nesse período. Em direção semelhante, o índice de desigualdade (Gini) só não foi pior em 2020 em razão dos benefícios fornecidos ao cidadão e cidadã de baixa renda. Na ausência de uma tela de proteção social mínima, estaríamos às voltas com a pior desigualdade de renda já registrada desde o início da série analisada pelo Sistema de Informações Sociais (SIS-IBGE). O conflito distributivo observado pelo crescimento da insegurança social, considerando o aumento da dependência das pessoas pobres por políticas de Estado, reflete o processo de desidratação do mercado de trabalho.
No quarto trimestre de 2021, mulheres ocupadas ou desocupadas que compunham a força de trabalho somavam 47,2 milhões, frente a 60,5 milhões de homens, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNADC-IBGE). Quando se trata de participação no mercado de trabalho, as mulheres acumulam desvantagens. É o que acontece com o comportamento dos indicadores de força de trabalho e de ocupação, dos quais as mulheres estão, em pontos percentuais, 12,4% e 15,0%, respectivamente, atrás dos homens. Na ponta inversa, quando os componentes informam exclusão ou precariedade (subutilização, subocupação, desocupação ou simplesmente fora da força de trabalho), as mulheres superam a margem calculada para os homens em todas as comparações apresentadas de forma expressiva. A tabela a seguir sintetiza alguns componentes sobre a dinâmica do mercado de trabalho.
TABELA – Componentes do mercado de trabalho, segundo proporção atribuída por sexo e diferença numérica calculada para as mulheres em relação aos homens, Brasil, 4º trimestre de 2021.
Componentes* |
Mulheres (%) |
Homens (%) |
Diferença das mulheres em relação aos homens em p.p. (%) |
Pessoas na força de trabalho |
43,8 |
56,2 |
-12,4 |
Pessoas ocupadas |
42,5 |
57,5 |
-15,0 |
Pessoas desocupadas |
54,5 |
45,5 |
9,0 |
Pessoas fora da força de trabalho |
64,7 |
35,3 |
29,4 |
Desocupação + subocupação por insuficiência de horas trabalhadas |
22,4 |
14,5 |
7,9 |
Subutilização da força de trabalho |
30,6 |
19,1 |
11,5 |
Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração da autora. (*) Para uma definição dos conceitos utilizados pela pesquisa, verificar glossário do SIS-IBGE, referenciado na nota de rodapé 3.
Além do déficit de participação no conjunto de pessoas ocupadas, a disparidade nos rendimentos condiciona a desvalorização da força de trabalho feminina que no primeiro trimestre de 2020 equivalia 77,5% do rendimento médio real obtido pelo trabalho dos homens. Nesse mesmo período, a informalidade que atingiu 38,8% da população ocupada em geral, ao ser analisada pelo critério de cor ou raça subiu para 44,7% no conjunto de pessoas pretas ou pardas. Frente à queda generalizada do rendimento habitual pelo trabalho6, a pressão sobre o poder de compra desabilita, aos poucos, trabalhadores e trabalhadoras na busca pela subsistência, observadas as características individuais das populações que extrapolam os impactos mais gerais deste contexto.
Em maio de 2020, a pesquisa experimental Pnad-Covid-19 verificou que 23,5% das pessoas ocupadas que foram afastadas do trabalho eram mulheres, contra 15% de homens; 20,8% das pessoas ocupadas pretas e pardas foram afastadas do trabalho, contra 16,1% das pessoas brancas. Para as mulheres, o trabalho remoto foi mais disseminado do que para os homens, correspondendo 23,5% e 15,0%, na sequência; já no cruzamento por cor/raça, a modalidade virtual de trabalho afetou apenas 6,8% dos(as) ocupados(as) pretos(as) e pardos(as) e 14,1% dos(as) ocupados(as) brancos(as). Esses percentuais ilustram diferentes incidências da pandemia na população ocupada, passíveis de investigação mais aprofundada sobre a viabilidade do trabalho remoto em termos inclusão digital de diferentes perfis, e das variáveis que condicionam maior exposição ao desemprego em momentos de retração profunda da atividade econômica.
A concentração de demanda do trabalho e da vida doméstica, invariavelmente atribuída ao gênero feminino7, exigiu maior resiliência das mulheres. A pandemia desorganizou profundamente as fronteiras entre casa e trabalho pela necessidade de adaptação das famílias ao distanciamento social, gerando uma concentração de stress das mulheres8. As trabalhadoras domésticas, que respondem por 15% da ocupação feminina, e sofrem com baixos rendimentos, jornas extensas de trabalho, contratos flexíveis, informalidade, longas horas no transporte público para deslocamento até o trabalho, assédios e racismo, tiveram sobrecarga emocional das famílias em razão do aumento por cuidados na pandemia9. Esses dados dialogam com aspectos de inclusão e equidade que propiciam autonomia individual e exercício do trabalho digno.
Mulheres trabalhadoras no cenário global pós-pandemia
Recentemente publicado, o relatório da Oxfam constatou que “a fortuna de 252 homens é maior do que a riqueza combinada de todas as mulheres e meninas da África, América Latina e Caribe: 1 bilhão de pessoas”. A concentração de renda no mundo é o principal vetor da desigualdade e manutenção da pobreza. Se, de um lado, a pandemia não intimidou o aumento bilionário da fortuna dos mais ricos, de outro, ela tem causado uma devastação social apoiada pelo sistema econômico10.
As projeções sobre a recuperação dos mercados de trabalho no panorama global são desalentadoras, principalmente pelo aprofundamento das disparidades que afetam mais as mulheres, jovens, pessoas idosas e migrantes. De acordo com o monitoramento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que 435 milhões de mulheres e meninas tenham passado a viver em 2021 com apenas US$ 1,90 por dia e que 47 milhões regressaram à condição de pobreza11. Cabe acentuar que atividades econômicas que mais empregam mulheres no mundo, equivalente a 41% ou 527 milhões, como as de serviços e alimentação, intermediação financeira, administração, manufatura (vestuário), e comércio varejista, foram também as mais impactadas pela recessão12. A informalidade é uma realidade para 740 milhões de mulheres trabalhadoras do mundo, que sobrecarregadas pelas tarefas do cotidiano familiar, esbarram com dificuldades para acessar empregos decentes e mais bem remunerados13.
Os desdobramentos da pandemia sobre as condições de vida e de trabalho das mulheres ao redor do mundo potencializaram as desigualdades sociais de maneira sistêmica, nos afastando de uma trajetória que traz no horizonte a paridade de gênero. As estimativas de recuperação da crise ocasionada pela Covid-19 sublinham o prolongamento de seus efeitos na região latino-americana em termos de incapacidade do mercado de trabalho para absorver força de trabalho disponível, o que resulta na proliferação de ocupações precárias e informais.
Sobreposição e acúmulo de desvantagens
A arquitetura do mercado de trabalho brasileiro, cuja dinâmica de inclusão e exclusão informa o grau de exercício da cidadania no acesso a bens e serviços econômicos, nos permite captar a incidência da desigualdade social nos diferentes estratos que compõem a sociedade. O prejuízo social da pandemia, mensurado a partir do seu prolongamento e intensidade em diferentes realidades, revela esgarçamento da malha de proteção social e deterioração das condições de trabalho. Intervenções governamentais tardias para enfrentar esse cenário tendem a subjugar os seus efeitos mais nocivos, incapacitando aos poucos a gestão da máquina pública para equalizá-los. O custo social é gigantesco e se assenta principalmente nas camadas pobres da população Nas quais as mulheres estão mais suscetíveis a precarização generalizada da vida.
A crise sanitária significou um aumento extraordinário da desigualdade social no Brasil e no mundo, um problema que continuará pautando a agenda pública nos próximos anos. O confronto com a desigualdade social passa pelo reconhecimento sobre as suas várias manifestações que precisam estar no radar das políticas sociais. Caso contrário, o futuro se tornará sinônimo de desesperança, principalmente para as mulheres.
Thamires Cristina da Silva é professora de Sociologia na Escola Dieese de Ciências do Trabalho e consultora técnica especializada na Flacso Brasil. E-mail: [email protected]