Economia

Os acordos da Rússia mostram que o país está longe de ser a nação fragilizada dos anos 1990 e retomou sua capacidade de influenciar e impor seus interesses para o Ocidente

Em 2014, a Rússia anunciou a construção de um megagasoduto, conectando a Sibéria ao norte da China. Imagem: Reprodução

O conflito envolvendo Ucrânia e Rússia superou as questões envolvendo os dois países e as fronteiras, tornando-se um alvo de disputa de narrativas e instrumentos de coerção envolvendo as grandes potências globais. Uma leitura rápida dos fatos, principalmente a partir da cobertura da guerra realizada pela Ocidente, causa a sensação de um completo isolamento russo liderado pela articulação envolvendo Estados Unidos e Europa.

Para reforçar essa percepção, tem-se noticiado diariamente a evolução e consequência das sanções sobre o sistema financeiro russo. A desvalorização do rublo, a corrida bancária interna, a falência de algumas empresas e bancos russos, além do bloqueio da possibilidade de transações no mercado internacional, são alguns dos resultados mais destacados desse processo. Com o congelamento de quase US$ 1 trilhão de ativos russos, a expectativa era de que Rússia e EUA provocassem “um colapso da economia russa”, de acordo com o ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, para um canal de notícias local em 1º de março.

Do ponto de vista político, a proximidade do governo russo com pequenas autocracias e governos mais isolados internacionalmente da África e da América reforçam a percepção de que Putin está acuado no sistema internacional. O apoio desses governos tem sido colocado como praticamente o único suporte global recebido por Putin.

Essa interpretação sobre a guerra esconde fatos importantes do conflito, desde a sua origem até as articulações e os blocos de interesses envolvidos com a Rússia. De um lado, por conta de uma convergência energética criada com outros grandes players do setor e de uma aliança militar realizada com vários países em desenvolvimento e, de outro, pela parceria estratégica promovida com a China, esse talvez seja o momento de maior fortalecimento da Rússia no cenário internacional em comparação com outras guerras, como da Chechênia em 1999 e na Geórgia em 2008. Esse artigo se propõe a aprofundar essa discussão trazendo novos elementos para o debate.

A Rússia para além do Ocidente

A guerra na Ucrânia é resultado de dois processos que marcam as primeiras décadas do século 21. De um lado, a expansão dos EUA e da Otan em direção à Europa Oriental e, de outro lado, a recomposição territorial da Rússia em direção ao Leste europeu.

A movimentação dessas placas tectônicas indica o surgimento de uma nova ordem internacional, diferente daquela erigida após a Segunda Guerra Mundial. No lugar do unilateralismo, do globalismo e do ocidentalismo o que se observa é um cenário com maiores complexidades, impondo o multilateralismo, reavivando nacionalismos, protecionismos e com a presença relevante do Oriente.

Esse redesenho das tensões globais, entre EUA/Otan e a Rússia e sua antiga zona de influência soviética, envolve questões energéticas centrais. A doutora em geopolítica pela Universidade de Strasbourg, Vira Ratsiborynska, lembra da crise de 2016 das áreas separatistas de Nagorno-Karabakh na Armênia, que faz fronteira com o Azerbaijão e a Geórgia. Segundo ela, “qualquer escalada do conflito em torno do disputado enclave armênio ameaça a rota de exportação de energia de Baku através do Cáucaso. Dois oleodutos que transportam petróleo e gás do oeste do Azerbaijão estão localizados perto do Nagorno-Karabakh, colocando-os dentro das linhas de frente alcance tanto da influência da Rússia como de armas e sistemas fornecidos às partes em conflito. Fechando esta rota energética diminuiria drasticamente as esperanças da Europa para reduzir sua dependência das fontes de energia russas”.

Não por acaso, a disputa da Crimeia, na própria em 2014, também envolve a discussão do gasoduto que liga a Rússia até a Turquia e com a aproximação ucraniana com a Otan e a União Europeia. Esses são dois exemplos que mostram a força da Rússia no Leste europeu e o papel central que o segmento energético tem para a costura das parcerias e intervenções russas na região.

Quando se observa a reunião extraordinária da Assembleia-Geral da ONU, realizada em 2 de março de 2022, que aprovou uma resolução contra a invasão russa da Ucrânia, muitas vezes há um olhar cuidadoso sobre a configuração do mapa de votos. Na votação, 141 países se posicionaram contra a ação russa, mas 35 países se abstiveram e 5 países votaram a favor da Rússia, além de outros 12 países que não participaram da votação.

Entre os expressivos 141 votos anti-Rússia e os óbvios 5 votos pró-Rússia há uma área intermediária de abstenções e isenções que merece uma análise mais cuidadosa. O suposto isolamento de Vladimir Putin é passível de contestação. O presidente russo contou com a neutralidade de países importantes como Índia, China e África do Sul, o único dos Brics a votar contra a Rússia foi o Brasil. Além disso, a Rússia contou com a isenção de países importantes na África, na Ásia e no Oriente Médio. Trata-se de países expressivos em território, população e recursos estratégicos.

Para além de questões conjunturais ligadas apenas ao conflito atual, esse mapa é resultado de uma estratégia de acordos comerciais, energéticos e militares firmados entre a Rússia e nações consideradas estratégicas para a retomada econômica do país euroasiático.

A Rússia tem se preparado para lidar com sanções do Ocidente há muito tempo, principalmente depois que anexou a Crimeia em 2014. No campo econômico, o país acumulou um volume gigantesco de reservas internacionais e reduziu sua exposição ao sistema financeiro internacional, aumentando as interconexões com a China. Em outras frentes a Rússia fortaleceu ainda mais sua posição no complexo xadrez geopolítico nos últimos anos.

Acordos de cooperação energética

Na geopolítica da energia, a Rússia segue como um dos principais players globais e tem buscado uma “convergência energética” entre seus aliados. Em 2014, a Rússia anunciou a construção de um megagasoduto, com mais de 3 mil quilômetros e capacidade de fornecimento de mais de 38 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, conectando a Sibéria ao norte da China. O chamado "acordo do século" foi firmado entre o grupo Gazprom, da Rússia, e a Corporação Nacional de Petróleo, da China, e foi resultado de um investimento de US$ 55 bilhões.

Neste mesmo ano, a Rússia firmou um acordo com a África do Sul prevendo a construção de oito reatores para usinas de energia nuclear, esse foi o primeiro projeto de alta tecnologia russa desenvolvido no continente africano. A parceria entre a estatal russa Rosatom e a estatal sul-africana Eskom envolveu um investimento de US$ 40 bilhões.

Ainda neste mesmo período teve início a construção de uma série de 28 acordos entre Rússia e Índia envolvendo produção energética, naval, mineral e de defesa. Os países assinaram protocolo fixando metas anuais de US$ 30 bilhões de comércio e de US$ 50 bilhões em investimentos.

Um outro passo importante foi dado em 2017, quando a Rússia liderou um movimento para que outros grandes produtores de petróleo compusessem o grupo conhecido como Opep+. A Rússia e mais nove grandes exportadores de petróleo se alinharam ao bloco para aumentar seu poder de barganha, ainda que sem se tornarem membros oficiais da Opep.

Além disso, a Rússia assinou um acordo estratégico com a Arábia Saudita. No campo energético, foram fechados negócios para criação de dois fundos comuns de investimento no domínio energético e de tecnologia, por US$ 1 bilhão cada.

Com a tutela sobre a região do Donbass na Ucrânia, a Rússia se aproxima das maiores reservas de carvão de alta qualidade da Europa e, portanto, de um dos mais importantes exportadores dessa energia fóssil na região.

Por todos esses motivos, a Rússia conta atualmente com a neutralidade de um conjunto de países que respondem pela produção de mais de 29 milhões de barris de petróleo por dia, mais do que a metade da produção sob a influência dos países que atualmente estão se posicionando contra a Rússia, segundo dados da BP de 2020. Isso corresponde a cerca de 30% da produção global de petróleo e uma parte relevante alimenta o continente europeu.

Se incluirmos nesse cálculo a Arábia Saudita, o peso da produção desse grupo subiria para quase 45%. Embora o país tenha votado contra a Rússia na ONU, tem uma parceria estratégica com russos e tem se negado a promover qualquer tipo de sanção na sua indústria energética. Essa convergência energética dificulta demasiadamente uma ação mais ofensiva dos europeus contra os russos.

No caso do gás natural (GN), o cenário é parecido. O bloco que se absteve de uma posição anti-Rússia na ONU é responsável pela produção de mais de 1462 bilhões de metros cúbicos de GN, novamente, mais do que a metade da produção do bloco desfavorável à Rússia. Já no segmento de carvão a situação é ainda mais problemática, o bloco pró-Rússia produz cerca de 112 exajoules, quase três vezes mais do que a produção do bloco anti-Rússia.

Isso significa que os países consumidores podem ter dificuldade para suprir suas necessidades domésticas diante de uma eventual escassez de petróleo russo provocada por uma nova rodada de sanções econômicas. Caso, por exemplo, os EUA tentem embargar os fluxos comerciais de óleo e gás da Rússia, a Europa pode ter dificuldades incomensuráveis.

O objetivo do Kremlin, por um lado, é conseguir atender novos mercados de energia, principalmente a Ásia, reduzindo a dependência das suas exportações para a Europa, e, por outro, aumentar sua influência no controle do preço e da oferta global de petróleo e de gás natural, diminuindo o poder de barganha dos grandes consumidores principalmente a Europa. Durante a crise ucraniana Putin joga com as possibilidades abertas por essa estratégia.

Ao abrir novas possibilidades de exportação do gás russo para a Ásia, uma eventual sanção contra as exportações de gás e de outros energéticos pode afetar muito mais os compradores europeus do que a própria Rússia. De acordo com dados da BP, em 2020, a Rússia respondia por quase metade das importações de gás natural e carvão para Europa e por um quarto das compras de petróleo. Esses números são ainda mais impressionantes, considerando que houve queda de participação russa no fornecimento de energia para a Europa nos últimos anos. Em 2013, por exemplo, a Rússia era responsável por quase 70% de todo o gás enviado à Europa ocidental.

Acordos de cooperação militar

Na geopolítica das armas, a Rússia avançou na cooperação com importantes países do eixo Indo-Pacífico. Desde 2014, Pequim e Moscou trabalham em projetos para a criação de um sistema coletivo de segurança regional. Tradicionalmente, a Rússia é a principal fornecedora de armas e tecnologias militares para a China. O Exército e a Marinha dos dois países têm realizado exercícios conjuntos no Mar do Leste chinês. Em 2021, os dois países concordaram em expandir exercícios estratégicos conjuntos e patrulhas aéreas em toda a área do Indo-Pacífico, compartilhando informações e tecnologias para o monitoramento de lançamento de mísseis nucleares contra a região.

Foi também no final de 2021 que Rússia e Índia assinaram um acordo decenal para a cooperação bilateral em assuntos militares e científicos. Os acordos foram firmados em rublos e rupias, se resguardando do dólar e de eventuais restrições impostas pelo sistema SWIFT, o que mais uma vez evidencia como a Rússia já se preparava para parte das sanções impostas pelo Ocidente.

Além disso, nos últimos anos, a Rússia firmou parceria com vários países do Oriente Médio e do seu entorno em acordos comerciais envolvendo o envio de armamentos e aparato militar.

Em 2017, por exemplo, a Rússia fechou uma parceria estratégica militar com a Arábia Saudita que tratava da venda do sistema de defesa antiaérea russa S-400, além de sistemas antitanque, lançadores de foguetes e granadas e fuzis de assalto. Já em 2015, Putin assinou um acordo militar com o Irã para aprofundar a cooperação na área de contraterrorismo, intercâmbio de militares para treinamento e aumento no número de visitas a portos pelas marinhas dos dois países. Entre todos esses movimentos, com certeza, o maior destaque foi para a atuação russa na Síria. A intervenção militar deu a Putin um papel de destaque no tabuleiro geopolítico do Oriente Médio.

Essas primeiras décadas do século 21 explicitam uma mensagem: o sistema interestatal não é mais um monopólio dos europeus e de algumas de suas ex-colônias, o sistema interestatal é agora formado por civilizações e culturas diversas, nenhuma delas é superior às demais ou possui a exclusividade para definir verdades e moralidades. Os acordos de cooperação energética e militar da Rússia mostram que o país euroasiático está longe de ser a nação fragilizada dos anos 1990 e retomou sua capacidade de influenciar e impor seus interesses para o Ocidente.

Rodrigo Leão é coordenador-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e doutorando em Economia Política Internacional IE/UFRJ

William Nozaki é coordenador-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo