Internacional

O inimigo principal da classe trabalhadora brasileira é o governo dos Estados Unidos, é a Otan, é o imperialismo, inclusive europeu. Não é Putin e seu governo

Existem na esquerda diferentes posições acerca da guerra na Ucrânia, inclusive porta-vozes das posições de Putin e de Biden, respectivamente.

Essa diversidade de posições não constitui novidade. Foi assim no debate sobre a Guerra de 1914-1918, a guerra civil espanhola, as preliminares da Segunda Guerra e o movimento de descolonização. Tampouco houve unanimidade frente à intervenção soviética na Hungria, na Tchecoslováquia e no Afeganistão; ou no debate sobre os conflitos militares entre China, Vietnã e Camboja. A esquerda se dividiu, inclusive, no debate sobre as intervenções militares imperialistas no Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia. Para não falar das diferentes posturas frente à ocupação da Palestina por Israel.

A rigor, há diferentes esquerdas, expressando diferentes setores sociais e suas correspondentes posições políticas, táticas e estratégicas, programáticas e teóricas. Assim sendo, é necessário explicitar as premissas de que partimos no presente debate.

Em primeiro lugar, a intervenção militar da Federação Russa na Ucrânia não é inesperada, nem imprevista. O fio dos acontecimentos nos leva até 1989, quando os “russos” estavam saindo, a Alemanha reunificando-se e os EUA prometendo que a Otan não avançaria nem “uma polegada” sobre a antiga área de influência da URSS. Em março de 1991 acabou o pacto de Varsóvia; em dezembro de 1991, acabou a própria URSS: Rússia e Ucrânia converteram-se em repúblicas independentes. Nos anos imediatamente posteriores, a maior preocupação dos Estados Unidos não era a China, mas sim afirmar seu poder unilateral, o que implicava manter sob tutela a União Europeia. Para tanto, os EUA insistiram na política de "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães embaixo". Na prática, estimularam a fragmentação do antigo espaço soviético e o enfraquecimento da Federação Russa; bloquearam a criação de um exército europeu e ampliaram a presença da Otan, criada em 1949. Desde então e até hoje, a organização incorporou a Polônia, a República Tcheca, a Sérvia, a Hungria, a Estônia, a Lituânia, a Letônia, a Romênia, a Bulgária, a Albânia, a Macedônia do Norte e Montenegro. E seguiu buscando incorporar a Ucrânia. Além disso, a Otan mudou oficialmente seus parâmetros de atuação. Uma das decorrências disso foi a guerra contra a República Federal da Iugoslávia, sem autorização da ONU e que incluiu 78 dias de bombardeios aéreos, de 24 de março de 1999 a 10 de junho de 1999.

A Rússia demorou para reagir ao cerco da Otan. Mas pelo menos desde 2007 os pronunciamentos de Vladimir Putin explicitaram diversas vezes existir uma “linha vermelha” que não poderia ser cruzada sem reação. Coerente com isso, frente ao golpe de Estado na Ucrânia em 2014 – com aberta e pública participação de representantes dos EUA, da União Europeia e de forças paramilitares nazistas, tudo junto e misturado –, a Rússia reagiu retomando a Crimeia e estimulando movimentos secessionistas na região de Donbass. A situação voltou a escalar durante a gestão do atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, defensor da entrada da Ucrânia na Otan e, também, de uma ofensiva militar total contra as repúblicas separatistas de Donbass. Frente às provocações de Zelensky, o governo russo primeiro exigiu um recuo e depois –pretextando acordos recém firmados com as duas repúblicas secessionistas, a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk – atacou preventivamente a Ucrânia.

Isso levou alguns setores da esquerda, embora contrários à Otan e aos EUA, a colocar em primeiro lugar a defesa da autodeterminação nacional ucraniana. Reconhecem que o governo russo tinha razão em várias de suas denúncias e queixas, mas ao atacar primeiro teria supostamente “perdido a razão”, dando argumentos para as sanções econômicas, o apoio militar do “Ocidente” à Ucrânia, a russofobia e a censura contra meios de comunicação e profissionais que não endossam o “discurso oficial” anti-Putin.

Certamente tudo seria mais fácil se um “bom papo” fosse suficiente para resolver os grandes conflitos mundiais, se o mundo fosse dividido entre “mocinhos 100% nossos” e “bandidos 100% deles” e se esperar o inimigo atacar primeiro fosse mesmo a melhor defesa. Mas a história real pode ser bem diferente, vide a descoberta de laboratórios de armas biológicas operando em território ucraniano e de fato controlados pelos Estados Unidos.

Putin é um nacionalista, um anticomunista e um conservador, motivos pelos quais a esquerda em geral e a esquerda russa em particular têm inúmeros motivos para se opor a ele e a seu governo. Mas não é preciso apoiar Putin e a ação militar na Ucrânia para reconhecer que não foi o governo russo quem cercou os países da Otan; não é o governo russo quem realizou ataques genocidas contra civis residentes em Donbass, desrespeitando os acordos de Minsk; tampouco é o governo russo quem vem endossando forças nazistas. E, muito importante do nosso ponto de vista, o governo russo não está envolvido em nenhuma das brutais intervenções militares na África, no Oriente Médio e inclusive na América Latina ocorridas desde 1991. Dito de outra forma: o inimigo principal da classe trabalhadora brasileira é o governo dos Estados Unidos, é a Otan, é o imperialismo, inclusive europeu. Não é Putin e seu governo.

Desde 2014 a Ucrânia tornou-se um “peão” da política dos Estados Unidos e da Otan. Formalmente dentro da lei, respeitando os limites da autodeterminação e da soberania nacional, há alguns anos o governo ucraniano vem recebendo armamentos e “instrutores” militares da Otan, assim como vem tolerando e legalizando a ação de forças assumidamente neonazistas. É fundamentalmente isto – e não algum tipo de patologia diabólica – que levou a Federação Russa a recuperar a Crimeia, a apoiar a secessão de Donbass e a atacar primeiro. Noutras palavras: para defender a sua soberania nacional, depois de seguidas tentativas de negociar, os russos foram preventivamente à guerra (embora a rigor a guerra já estivesse lá, como lembram os moradores de Donbass, massacrados há anos por tropas do governo ucraniano).

Ao atacar preventivamente, o governo russo seguiu uma “cartilha” similar a dos EUA. Aliás, é muito reveladora a resolução aprovada no dia 2 de março de 2022 pela Assembleia Geral da ONU, segundo a qual “as operações militares da Federação Russa dentro do território soberano da Ucrânia são de uma magnitude que a comunidade internacional não via na Europa (grifo meu) há décadas”. De fato: os EUA e seus aliados europeus estão acostumados a fazer operações militares de igual ou maior “magnitude” em países situados fora da Europa, com exceção da já citada Iugoslávia. Nesse sentido, o desprezo pelas advertências de Putin tem um quê “psicológico”: décadas de “unilateralismo USA” faziam parecer ser “impossível” que a Rússia viesse a atacar preventivamente.

Nossa opinião sobre a ação militar russa iniciada em 24 de fevereiro de 2022 deve levar tudo isso em devida conta. E a paz que defendemos não pode ser uma pax estadounidense. Entre outros motivos porque não haverá paz efetiva sem a derrota dos maiores promotores das guerras: os estados imperialistas, a começar pelos Estados Unidos. Se a Otan não recuar (inclusive no fornecimento de armas à Ucrânia, com o apoio de “progressistas” como o primeiro-ministro da Espanha Pedro Sanchez) e se a Ucrânia não assumir uma condição neutra (como a Áustria pós-Segunda Guerra), mais cedo ou mais tarde o conflito voltará a escalar.

As guerras causam destruição, sofrimento e morte, afetando principalmente as classes trabalhadoras. Motivos mais do que suficientes para defendermos a paz. Mas nossa defesa da paz não pode assumir a forma de um pacifismo abstrato, nem pode confundir-se com a hipocrisia colonialista e racista de certa mídia e de tantas lideranças políticas que posam de pombas brancas, mas têm cumplicidade no morticínio de tantos povos meio-orientais, africanos, asiáticos e latino-americanos. Um bom exemplo desse pacifismo hipócrita está no noticiário da Rede Globo.

Por todos esses motivos, ao povo brasileiro, à classe trabalhadora brasileira, à esquerda brasileira, interessa uma saída pacífica e negociada que enfraqueça a Otan e os governos imperialistas, a começar pelos Estados Unidos.

Esta posição decorre da análise do conflito em si, mas também da análise do conjunto da situação. A guerra na Ucrânia não é um fato isolado. Como se sabe, a guerra é a continuação da política sob outras formas; por sua vez, a política é economia concentrada. A guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia ocorre nos marcos de uma crise sistêmica mundial do capitalismo, por sua vez relacionada ao declínio da hegemonia dos Estados Unidos e a ascensão da República Popular da China. Nesse contexto, é inevitável que a guerra se estenda aos negócios e à política cotidiana. Assim como é inevitável a ocorrência de guerras de vários tipos, cores e sabores, desde as guerras imperialistas, passando por diferentes conflitos intercapitalistas, guerras pela independência nacional, contra a ocupação estrangeira, contra o fascismo e o nazismo, além das guerras civis. Há guerras e guerras, todas são terríveis, mas algumas são “guerras justas” e necessárias.

Há imensas controvérsias sobre os acontecimentos desde o dia 24 de fevereiro, inclusive sobre a real situação do conflito e de seus desdobramentos. Para além das torcidas e das mentiras de guerra, há também analistas bem-informados fazendo afirmações antagônicas sobre o que está ocorrendo e sobre o que pode vir a ocorrer. Há quem diga, por exemplo, que a guerra na Ucrânia interessaria (eleitoralmente) ao governo Biden e (economicamente) ao complexo industrial-militar dos EUA; que as sanções econômicas vão causar dano irremediável à economia russa e, por tabela, à economia chinesa, contribuindo para reverter o declínio da hegemonia dos Estados Unidos; e que o saldo mais importante da guerra seria a submissão da União Europeia aos interesses geopolíticos dos EUA. Mas há quem sustente opiniões total ou parcialmente diferentes, por exemplo no sentido de que a guerra – qualquer que seja seu resultado imediato – consolidou definitivamente a aliança Rússia-China, beneficiando esta última e colocando dificuldades intransponíveis para a globalização made in USA.

Seja como for, devemos insistir na defesa do cessar fogo e da negociação, apoiando todas as propostas que apontem no sentido da neutralidade e da autodeterminação da Ucrânia, bem como do recuo e da dissolução da Otan. Vale lembrar, por sinal, que a organização já atua na América Latina, havendo até quem defenda a associação do Brasil.

O mais importante, entretanto, é perceber que o conflito Rússia/Ucrânia não é uma exceção, nem raio em céu azul, mas parte integrante de um período histórico marcado por imensa instabilidade, por crises prolongadas e por conflitos brutais. É preciso fazer nosso povo, nossa classe, nosso partido e oxalá nosso futuro governo estarem à altura da situação histórica. Não há como sobreviver em bom estado a estes tempos de guerra com uma economia dependente, primário-exportadora, financeirizada, desindustrializada, com um Estado cada vez mais policial, dirigido por uma classe dominante colonizada e com forças armadas absolutamente incapazes de defender a soberania nacional. Resta saber se a esquerda brasileira será capaz de enfrentar, derrotar e superar – com a urgência e profundidade necessárias – a herança maldita do bolsonarismo e do neoliberalismo. Para isto será preciso reafirmar um dos objetivos mais importantes da política externa dos governos Lula e Dilma, bem como da política de relações internacionais do nosso partido: a construção de outra ordem mundial, diferente da almejada pelos governos dos EUA e da Europa, inclusive dos que posam de progressistas e social-democráticos. Os tijolos para isso já sabemos onde estão.

Valter Pomar é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC e integrante do Diretório Nacional do PT