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Em um contexto em que a universidade, embora relevante, se mostra insuficiente, a reforma do "Sistema S" aparece como uma importante frente de atuação

As leis de criação do Sistema S representam um marco histórico do trabalhismo no BrasilDivulgação/Senai

Refundar para evoluir

O Brasil é um país extremamente desigual e, por isso, extremamente dividido, com segmentos da população que possuem visões de mundo radicalmente antagônicas. Para chegarmos ao ponto onde a sociedade brasileira se encontra atualmente, um longo caminho de equívocos e desilusões foi trilhado em busca de soluções conciliatórias que ignoraram por completo as correlações de forças que engendram estas desigualdades.

Determinar o quanto o país necessita desconstruir suas instituições, assumindo os riscos inerentes a este processo, para poder refundar um modelo de democracia que permita uma participação popular concreta e com potencial transformador de nossa realidade, é um dos maiores desafios diante do qual nos encontramos atualmente.

Para avançar nesta tarefa, um pressuposto básico é reconhecer o fracasso das instituições constituídas a partir da abertura política da nova República na construção de uma sociedade igualitária, plural e emancipatória, no sentido mais genuíno de proporcionar aos seus indivíduos condições materiais para desfrutar de uma vida com liberdade e solidariedade social. E reconhecer este fracasso não significa recolher-se no conformismo de que a nação seja incapaz de por si própria imaginar alternativas e propor vias institucionais experimentais, sob o signo do medo de que a inovação institucional possa acarretar maiores desarranjos e conflitos sociais. Estes conflitos sempre existiram e sempre existirão, e por isso mesmo não devem paralisar os setores progressistas da sociedade em sua busca por modelos mais democráticos de representação popular, que melhor dialoguem com os diversos segmentos da população, em especial das classes trabalhadoras, que não dispõem de qualquer meio efetivo de afirmação de suas potencialidades na vida social.

As maiores disputas históricas no campo político nacional orbitam a questão do papel do Estado na condução dos rumos da nação. Transferir processos decisórios do Estado para a sociedade civil em nome da liberdade e da democracia sempre foi um discurso historicamente apropriado pelo liberalismo por meio da atribuição de uma significação que reproduz premissas de igualdade formal não existentes na realidade. Trata-se de um fetichismo condicionante da nação, pois quando não está focado simplesmente numa concepção gerencialista do Estado, apoia-se numa concepção tecnocrática de poder, desqualificando os processos decisórios descentralizados em favor de instâncias técnicas ocupadas por parcelas limitadas da população que, sob o pálio de uma aparente neutralidade, apenas reproduzem modelos de gestão segregadores, elitizados e concentradores de riqueza.

Se, por um lado, reconhecemos a necessidade de desconstruir instituições, por outro, não podemos perder de vista que desconstruir não equivale a destruir, e que uma destruição total das instituições que alicerçam nossa débil democracia apenas favorece a proliferação da vertente ultraliberal de concepção de nossa organização social, deixando lacunas que rapidamente seriam ocupadas pelos setores da sociedade já estabelecidos no poder. A destruição como pressuposto para reconstrução de uma ordem social é, dentro de uma perspectiva histórica, estratégia baseada na tomada do poder pela força, amplamente utilizada na construção de regimes totalitários, reprodutor de desigualdades e com resultados nefastos ao desenvolvimento social livre e justo. Essa, inclusive, é a perspectiva atual no Brasil, com a escalada violenta de ideologias de extrema-direita que se colocam como alternativa única de organização social, apostando no desmonte de políticas públicas e na destruição de instituições que, apesar dos defeitos e fracassos, sedimentaram-se na evolução normativa da constituição cidadã da nova República.

Nessa perspectiva de reconstrução institucional a partir da evolução normativa nacional, o fortalecimento das instituições do terceiro setor como espaços de manifestação de poder popular pode surgir como uma via para a consolidação de aparatos de construção de hegemonias dos setores sociais hoje desprovidos de qualquer perspectiva de mobilização social. Para consolidar hegemonias, porém, é necessário não apenas o controle de aparelhos ideológicos, mas também saber fazer esses aparelhos dialogar com os setores da sociedade capazes de impulsionar transformação social.

Pode-se afirmar que as leis de criação do Sistema S, iniciadas no final da Era Vargas, representam um marco histórico do trabalhismo no Brasil, na medida em que consolidaram o conjunto de reformas iniciadas a partir das diretrizes estabelecidas na Constituição de 1934 e reforçadas na Carta de 1937. Apesar das conquistas alcançadas neste período, a ideologia do trabalhismo brasileiro é marcada pela forte tutela do governo, que nesta época estabeleceu o princípio da unicidade sindical, minando iniciativas de organização sindical de base popular. E o Sistema S surge, neste contexto, como mecanismo de sujeição da classe trabalhadora à biopolítica liberal do Estado Novo, na acepção de Foucault (2008, p. 202), em que a lógica econômica transporta-se para a vida social, enquadrando os sujeitos conforme valores de eficiência e competitividade e convertendo a liberdade em subterfúgio para a sujeição e o controle das condutas.

Esta faceta dos serviços sociais autônomos de base sindical reforça-se no início da Nova República, com a criação de novas entidades voltadas para a tutela dos trabalhadores rurais e do setor de transportes, em meio a um processo de reabertura política conduzido pelo regime ditatorial militar que mantinha influência no meio político e exigia um retorno “gradual e seguro” à democracia, ao ponto de Florestan Fernandes (1997, p. 142) afirmar que o texto definitivo da Constituição de 1988 "brotou do consenso militar, não da vontade dos constituintes". A constituição cidadã é decerto resultado desse processo, em que as tensões entre o poder liberal-conservador e as tendências socialistas mais radicais acomodaram-se na influência social-democrata dos partidos de centro.

Mangabeira Unger (2004, p. 52) questiona se a hegemonia da social-democracia, que "importou na renúncia a um campo maior de conflito”, teria repercutido no pensamento jurídico como uma incapacidade de “passar da sua preocupação com o gozo de direitos para a perseguição de mudança institucional”. Porém, rejeita um determinismo tal, encontrando espaço na análise jurídica para a realização da imaginação institucional e do potencial transformador do direito. Para tanto, certamente, é necessário escapar da idealização do direito e saber identificar as experiências da realidade social que possam servir de ponto de partida para o experimentalismo institucional e transformações mais radicais. Este discernimento pressupõe alguma dose de ceticismo, no sentido pachukaniano de reconhecer que tanto o direito como o Estado são engendrados no capitalismo e constituem formas centrais de seu funcionamento (MASCARO, 2013, 1.7), mas também no sentido trágico de reconhecer a ideologia no próprio discurso anti-ideológico e buscar transportar os conflitos para fora deste campo, sem renegá-lo (ROSSET, 1989, p. 37).

Ao longo da redemocratização marcada pelo advento da Constituição de 1988, como contraponto à biopolítica trabalhista legada da ditadura, o Estado brasileiro depositou grande esperança nas universidades para formação de intelectuais, tanto que o art. 207 da Constituição trouxe para o direito positivo o princípio da autonomia didática, científica e administrativa dessas instituições, bem como o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Por outro lado, o art. 240 da Constituição relegou a um segundo plano as entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, limitando-se a desvincular as contribuições compulsórias a elas devidas do regime tributário próprio das demais contribuições sociais, previsto no art. 195. Isto é, a Constituição ateve-se a manter a possibilidade de arrecadação direta dessas contribuições pelas entidades paraestatais junto a seus contribuintes, sem integrá-las ao orçamento da União, mas não trouxe quaisquer diretivas adicionais para aplicação de tais recursos, que permanecem regidas pelas legislações de sua criação – algumas remontando ao Estado Novo; outras, mais recentes, ao início da abertura pós-ditadura militar. Disso resulta que, diferentemente das universidades, esta modalidade de ensino e assistência social sempre esteve a serviço direto do capital e da burguesia nacional, devido à blindagem da sua legislação de regência, que permite aos empregadores gerenciar as entidades para as quais vertem seus tributos. A rigor, é de se supor que esta autonomia orçamentária só se manteve constitucionalmente assegurada porque se tratava de um modelo perpetuador dessas condições históricas.

Ao longo da recente história constitucional, as universidades brasileiras têm desempenhado um importante papel na formação e no desenvolvimento da sociedade, porém sem o suficiente alcance das camadas sociais economicamente menos favorecidas. Historicamente, sempre foram espaços dominados pelas classes mais altas, mesmo apesar da intensificação das políticas educacionais da era Lula, com aumento considerável no número de universidades públicas federais e maior participação da classe trabalhadora por meio de programas de acesso e financiamento. Afinal, ainda que em grande parte gratuito ou financiado, este modelo educacional implica uma série de requisitos que o ensino público sucateado não é capaz de suprir, perpetuando mecanismos de segregação e exclusão social. Para ter acesso ao ensino superior público, a construção de uma bagagem no ensino médio e fundamental de qualidade, com acesso a livros, idiomas etc., apresenta-se como um obstáculo insuperável para muitos. Mais importante, tal modelo é altamente dependente de recursos orçamentários da União, até mesmo no setor privado, estando assim sujeito às mudanças radicais de orientação política inerentes à alternância de governos sem linhas programáticas coesas. Mesmo com um Plano Nacional de Educação instituído em lei e com metas claramente definidas, uma elaboração orçamentária defeituosa é capaz de minar quaisquer políticas educacionais.

Em síntese, temos que mesmo o ambiente universitário, concebido para contrapor-se a esta hegemonia no desenvolvimento de uma intelectualidade nacional, não tem sido capaz de romper as barreiras da exclusão social pelos mais variados motivos, e em algum nível isso repercute na produção acadêmica, pois reproduz ideologicamente as relações de sujeição que mantêm as condições de produção do capital.

Segundo Althusser (1985, p. 89-90), o mecanismo ideológico da sujeição, por meio do qual o agente social reconhece o seu lugar nas relações de produção, assegurando a divisão social do trabalho, existe concretamente e se situa em práticas e instituições que integram não apenas as leis e as políticas, mas o próprio Estado e seus aparelhos ideológicos. Se universidades padecem dessa influência, as instituições do Sistema S representam a própria encarnação desse mecanismo, na medida em que sujeitam o trabalhador à formação profissional técnica definida pelo mercado, que quantifica o trabalho por meio da “qualificação” e, por conseguinte, promove a reprodução social das condições de produção econômica.

Um enfrentamento dessa ideologia pressupõe o engajamento político a partir de lutas corporativas mais imediatas com horizonte no exercício mais pleno do poder pelo povo. Todavia, trata-se de um processo lento, pois exige a participação de toda classe trabalhadora forjando consciência revolucionária na luta política real, num processo de educação dialógica, que compreenda cada homem e cada mulher como "seres fazedores da história e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção”; enfim, como “um ser condicionado, mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento" (FREIRE, 2011, p. 233).

Se a classe trabalhadora sai em desvantagem por não conseguir pagar por sua educação, mesmo quando acessa o sistema público, nem tampouco integrar sua realidade ao debate acadêmico, então é necessário pensar em políticas para reduzir essa desvantagem. E num contexto em que a universidade, embora relevante, se mostra insuficiente, a reforma do "Sistema S" aparece como uma importante frente de atuação. Entre as instituições do terceiro setor, os serviços sociais autônomos são certamente os que apresentam maior potencial para esta tarefa, justamente porque hoje seu vetor de atuação é diametralmente oposto à finalidade institucional para a qual foram idealmente concebidos. Da forma como se estruturam na sociedade e no poder político do país, apresentam-se como organizações capazes de amalgamar a pulsão social difusa de uma sociedade que não consegue mais se organizar politicamente frente aos poderes políticos constituídos, majoritariamente representativos do capital. São entidades hoje geridas de fato pelo empresariado e organizações sindicais patronais, administrando recursos públicos diretamente arrecadados que ultrapassam R$ 17 bilhões por ano, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Economia e das próprias entidades. Recursos que certamente podem ser melhor direcionados se seus destinatários finais puderem decidir, de forma autodeterminada, como aplicá-los.

Certamente, assim como nas universidades ou em quaisquer organizações inseridas num sistema capitalista, as desigualdades de classe não podem ser totalmente eliminadas apenas com reformas no sistema sindical ou em suas instituições paraestatais de assistência social e ensino profissional. O próprio ensino profissional, em si, padece sob a ideologia do capital, da divisão social do trabalho e da qualificação utilitarista.

Contudo, a mudança do vetor finalístico destas instituições a partir de uma organização política interna estimulada e impulsionada por um novo regime jurídico de funcionamento e prestação de contas à sociedade pode ser um fator de relevante potencial emancipatório para os destinatários de suas ações.

O regime jurídico aplicável aos serviços sociais autônomos claramente o descaracteriza como um serviço público, por mais que se reconheça sua utilidade pública. Portanto, tais entidades não se sujeitam a um regime jurídico estritamente de direito público, ainda que arrecadem diretamente recursos públicos de natureza tributária e possuam orçamentos públicos sujeitos ao controle externo do Tribunal de Contas da União, o que lhes rende a qualificação jurídica de entes paraestatais.

Todavia, este arranjo jurídico institucional é apenas um ponto de partida que coloca o sistema em um patamar de independência orçamentária. Mais importante do que constatar as naturezas jurídicas das atividades relacionadas aos serviços sociais autônomos e os regimes jurídicos aplicáveis a estes conjuntos de atividades é investigar como essas formas jurídicas podem afetar a autonomia interna dessas instituições e dos segmentos sociais que nelas se pretendem representar, para então definir as possibilidades de se estabelecer um novo marco regulatório. A hipótese, então, é que esta disputa interna somente pode ser equilibrada ou mudar de vetor a partir de uma mudança no arcabouço normativo de funcionamento destas entidades que permita a participação direta de representantes das categorias profissionais, sem interferência de representantes do empresariado, que hoje, na prática, decide sobre a aplicação dos próprios tributos segundo seus próprios interesses.

Para tanto, porém, é de crucial importância delimitar os contornos jurídicos do serviços sociais autônomos, suas formas de atuação, seus processos decisórios internos, suas relações com o primeiro setor e suas formas de controle externo.

Afinal, se algum controle público e social é imposto aos serviços sociais autônomos, é necessário delimitar publicamente, e de forma democrática, os parâmetros para seus processos decisórios internos, e até onde essas entidades se sujeitam ao poder estatal, particularmente do poder Executivo, para que suas finalidades não sejam desvirtuadas, nem pelos aparelhos repressivos do Estado, nem pelos mecanismos de sujeição da ideologia do capital.

Em última análise, os serviços sociais autônomos – contanto que efetivamente autônomos – oferecem um espaço com potencial não apenas para o florescimento da consciência de classe no seio da própria classe trabalhadora, como também para a realização da "preocupação marxista com o 'encolhimento' do Estado" como estratégia para "enfrentar a força da reciprocidade autossustentada do capital" (MÉSZÁROS, 2002, p. 125) – não em benefício da ética liberal do mercado, mas em prol das liberdades mais plenas de uma ética de solidariedade comunitária. Em síntese, representam a potência da classe trabalhadora a partir da viabilização de instrumentos jurídicos para o exercício de direitos sociais e garantias fundamentais, equilibrando forças entre capital e trabalho, pois a partir de uma reorganização institucional jurídica é possível reorientar a vocação do modelo como um todo, inserindo-o numa política nacional estrategicamente coordenada e de efeitos permanentes, de modo a lhe permitir contrapor-se aos poderes oligárquicos estabelecidos no país, sem necessariamente cair no populismo que contaminou os governos mais à esquerda ao longo da história da República. Pois um projeto que se pretenda realmente revolucionário e emancipador precisa se afirmar junto aos setores mais organizados da classe trabalhadora, visando alcançar os setores mais pobres e explorados a partir da perspectiva de massificação do engajamento político, ainda que de forma gradual e em diferentes níveis de consciência de classe.

Osiris Vargas Pellanda é advogado da União atualmente em exercício na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, especialista em direito público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público

Referências Bibliográficas

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

FERNANDES, Florestan. O significado da ditadura militar. In TOLEDO, Caio Navarro de (Org.). 1964: Visões Críticas do Golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: Unicamp, 1997.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra, 2011.

MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013, recurso digital formato ePub.

MÉSZAROS, István. Para Além do Capital: Rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

ROSSET, Clément. Lógica do Pior. Tradução de Fernando J. Fagundes Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo.

UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito e o Futuro da Democracia. São Paulo: Boitempo, 2004.