Internacional

A ausência de liderança por parte do Brasil e da Argentina e manifestações persistentes no sentido de negociar acordos comerciais independentes contribuíram para o descrédito da união aduaneira

É preciso retomar a dinâmica do intercâmbio comercial intrabloco e manter a credibilidade do Mercosul diante dos parceiros extrarregionais. Reprodução/R7

Nos anos recentes, a ausência de liderança por parte do Brasil e da Argentina resultou em arrefecimento do processo de integração regional. O desinteresse e as agressões ao Mercosul, particularmente por parte do presidente do Brasil, só agravaram a situação. A falta de engajamento dos sócios menores e manifestações persistentes no sentido de negociar acordos comerciais independentes também contribuíram para o descrédito da união aduaneira, já muito afetada pelas perfurações da tarifa externa comum.

Apesar de permanecer o consenso frágil para manter o Mercosul como união aduaneira, não tem sido possível superar o dilema provocado por recentes manifestações contrárias de alguns governos do bloco, declarando preferência por uma área de livre comércio. Sugerem também negociações de acordos bilaterais com grandes potências (EUA, China etc.), alinhamento individual com outros blocos de integração (Aliança do Pacífico) ou adesão individual a acordos como o da União Europeia.

Esse dilema tem de ser resolvido com uma afirmação política contundente a favor da União Aduaneira. Sem isso, será difícil retomar a dinâmica do intercâmbio comercial intrabloco e manter a credibilidade do Mercosul diante dos parceiros extrarregionais.

Sem aprofundar nas estatísticas, basta observar a notável oscilação do intercâmbio comercial do Brasil nos últimos 10 anos:

- em 2021 o total das exportações brasileiras chegou a US$ 280 bilhões; as importações atingiram US$ 219 bilhões; comércio nos dois sentidos de quase US$ 500 bilhões;

- com o Mercosul, a corrente de comércio chegou a US$ 27,8 bilhões em 2011 e diminuiu para US$ 16,9 em 2021;

- para comparar, o comércio total com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) foi de US$ 8,3 bilhões em 2011 e subiu para US$ 19 bilhões no ano passado;

- com a China, subiu de US$ 46,5 em 2011 para US$ 90 bilhões em 2021.

Esses números mostram que, no caso do Brasil, o comércio intrarregional privilegia os produtos industriais, enquanto as exportações para outras regiões (Ásia, Europa e Oriente Médio) se concentram em commodities agrícolas e minerais. E como ficaram a indústria e os empregos no Brasil nos últimos anos? Mais de 13 milhões de desempregados. Evidentemente, isso não pode ser atribuído apenas ao enfraquecimento do Mercosul, mas, de certo, o colapso na oferta de trabalho na indústria foi uma consequência da integração diminuída.

Apesar de tudo, será possível reverter essa tendência com medidas de governo, coadjuvadas pela cidadania, por trabalhadores e empresas.

Uma primeira providência pode ser o combate ao protecionismo ainda latente em determinados setores. Por exemplo: é patente o receio do governo e dos produtores de frango do Uruguai em competir com importações de países vizinhos; de outro lado, é difícil compreender por que os produtores gaúchos de arroz resistem às importações do produto uruguaio, que poderia ser facilmente absorvido no enorme mercado brasileiro, sem afetar em nada a igualmente enorme produção nacional.

Sem falar da insólita crise que se instalou entre Argentina e Uruguai quando da construção neste último das “papeleras” com financiamento europeu, que resultou até no fechamento de fronteiras terrestres entre os dois países.

Presumimos que será possível contornar tais dificuldades “psicológicas”. Assim sendo, serão abordadas adiante medidas concretas de incentivo, tais como: investimentos conjuntos, com patrocínio governamental, ampliação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), financiamento de indústrias integradoras, com recursos do Focem e apoio de empresas, estimular obras de infraestrutura, treinamento de mão de obra especializada, entre outras.

O que fazer

- buscar incentivos a empresas dispostas a instalar-se em áreas deprimidas e de maior criminalidade, em entendimentos com governos estaduais e municipais sobre isenções tributárias e incentivos à produção, inclusive treinamento de operários;

- integrar as economias em áreas deprimidas, com investimentos conjuntos;

- consolidar o Focem como instrumento para financiar os empreendimentos que ampliem a oferta de emprego no âmbito do Mercosul;

- estimular os produtores, empresas agrícolas e agricultura familiar, com financiamento e incentivos, a processar os seus grãos, carne, couro, minério, etanol, fibras, frutas etc., no entorno dos locais de origem;

- reforçar a redução das assimetrias como objetivo central da integração, a fim de melhorar a competitividade produtiva e comercial das economias menores;

- promover o desenvolvimento equitativo em todos os países, o que, além de fortalecer o bloco sub-regional, atrairá outros países da vizinhança sul-americana, mesmo os membros de outros processos de integração (Comunidade Andina e Aliança do Pacífico);

- tratar com prioridade os estímulos que possam ter resultados palpáveis, em curto prazo, nas fronteiras e na área social, em particular na oferta de emprego, saúde e educação.

A dimensão do trabalho

Nos anos 1990 imperou na região um modelo de gestão política e econômica assentado em um forte ajuste fiscal, na supervalorização do câmbio para combater os preços internos e um programa de privatizações. Tais medidas resultaram na elevação do desemprego e no empobrecimento de boa parte da população nos quatro países. Os problemas internos se refletiram nas dificuldades de fazer avançar a agenda de políticas regionais em matéria de desenvolvimento produtivo e geração de empregos. Porém, atores empresariais e sindicais, cada um em torno de seus interesses, continuaram a atuar e demandar participação.

As centrais sindicais dos quatro países se articularam na Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS) e passaram a acompanhar o processo de integração desde 1992, tendo sido demandantes da criação de um subgrupo para tratar dos temas trabalhistas. Em dezembro de 1994, a CCSCS entregou uma carta aos presidentes reunidos na Cúpula de Ouro Preto, apresentando suas discordâncias de aspectos do processo e suas demandas. Nessa cúpula foi aprovada a constituição do Foro Consultivo Econômico Social do Mercosul, cujo regimento foi negociado pelas entidades sindicais, empresariais e sociais.

Tradicionalmente, as representações empresariais não tratavam de agendas mais amplas e muito menos sociais, mas a maior presença sindical provocou uma mudança de atitude no empresariado.

Entre 1996 e 1998, o subgrupo (11) que tratava dos temas trabalhistas conseguiu avanços e, em 1998, aprovou a criação do Observatório do Mercado de Trabalho que teria como função disponibilizar as estatísticas do mercado de trabalho e harmonizar as políticas de geração de emprego.

Também naquele ano foi aprovada pelos presidentes a Declaração Sociolaboral do Mercosul (elaborada de forma tripartite) que reuniu um conjunto de princípios e direitos fundamentais que teriam de ser respeitados nos quatro países. Para garantir sua efetividade criou-se um organismo (uma Comissão Tripartite) para acompanhar a aplicação da declaração nos quatro países. A declaração é um documento sem eficácia, é apenas exortativa, mas com caráter promocional, podendo ser um instrumento útil para promover a elevação dos padrões trabalhistas.

Analisando essa breve reconstrução, pode-se concluir que não é necessário criar nenhum organismo novo, mas sim garantir as condições para o funcionamento dos atuais (CSL, OMT, GANEMPLE etc.)

-É preciso atualizar o estudo sobre as legislações trabalhistas nacionais e dar estrutura e sustentação a CSL para que tenha condições de efetivamente fiscalizar (através das representações nacionais) o cumprimento da DSL.

- É preciso dar condições de funcionamento ao Observatório do Mercado de Trabalho (OMT) que deve se utilizar dos Institutos Estatísticos Nacionais e produzir seus dados. É importante articular as atividades do OMT com as negociações e decisões do Focem, Indústria, Agricultura e outros para que possa se debater políticas de geração de emprego.

- Retomar o debate e harmonização dos indicadores e classificações da formação profissional

- Acompanhamento específico das questões do emprego e direitos sociais nas regiões de fronteira.

A dimensão social

Em 2007 a Reunião de Ministros e Autoridades da Área Social decidiu criar o Instituto Social do Mercosul (ISM) e em 2008 adotou o Plano Estratégico de Ação Social (Peas), que orientaria as ações governamentais e o trabalho do ISM em políticas de inclusão, o acesso à educação, à saúde e serviços públicos em geral.

O ISM recebeu recursos do Focem para financiar estudos, de modo a subsidiar os governos na formulação de políticas sociais. Vale notar que o Instituto Social não executa ações de assistência diretamente, como, por exemplo, de combate à fome, promoção da educação, serviços de saúde. Com um corpo de funcionários reduzido, o ISM se vale da sua estreita relação com a academia, particularmente universidades, nas quais busca consultorias de catedráticos, professores e suas equipes. O ISM coopera com entidades europeias, com apoio do programa EuroSocial, além de haver recebido no passado recursos da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).

O relativo “abandono” do ISM pelos governos do bloco nos últimos anos reflete a perda de importância das preocupações sociais por parte dos governantes de turno. O caso do Brasil é peculiar e emblemático. O governo brasileiro não paga as contribuições devidas ao organismo. A dívida acumulada supera US$ 3, apesar de a resolução respectiva do Conselho do Mercado Comum (CMC) haver sido aprovada pelo Congresso Nacional, mas nunca ratificada por resistência do Ministério da Economia.

A primeira iniciativa neste campo deve ser atualizar o pagamento das contribuições devidas ao organismo. Trata-se de um problema que afeta a credibilidade do Brasil, a ser resolvido definitivamente.

Atenção às fronteiras

Facilitar o trânsito transfronteiriço é fundamental. É urgente simplificar e harmonizar os requisitos sanitários para o trânsito de pessoas, animais e mercadorias, com o propósito de reduzir drasticamente os tempos de trâmite; os documentos alfandegários têm de ser simplificados e os postos de fiscalização integrados devem ser finalmente realizados, para eliminar a duplicação atual na maioria dos passos de fronteira.

O habitante da fronteira merece atenção especial e prioritária. Em geral, o que ele pretende é:

-receber tratamento de saúde no seu país e no país vizinho, sem discriminação e consciente de que as contas serão pagas, sem impedimento, em moeda local ou em divisas, pelos órgãos oficiais ou planos de saúde correspondentes;

- poder matricular-se e aos seus familiares em estabelecimentos educacionais públicos e privados das cidades fronteiriças, sem excesso burocrático ou exigências descabidas;

- circular com veículos, dispor de transporte público integrado, transportar os seus bens e adquirir produtos de subsistência em qualquer lado da fronteira, sem ser incomodado por fiscalização abusiva;

- obter emprego em qualquer lado da fronteira, sem entrave documental, e ter reconhecidos os seus direitos trabalhistas e previdenciários.

Conselhos de representação vicinal

Para estimular o entendimento e diminuir os conflitos fronteiriços é importante a criar e manter Conselhos de representação vicinal que se reúnam algumas vezes por ano com a presença das comunidades locais, com assistência de autoridades municipais locais, das instancias do Mercosul e, sempre que possível, com a presença de representantes dos governos centrais.

Promoção do Desenvolvimento – o Focem

Retomar os estímulos ao desenvolvimento no Mercosul é necessário e urgente. O Focem tem de voltar a ser o instrumento de promoção, se possível como banco de desenvolvimento, capaz de acrescentar às contribuições financeiras governamentais mecanismos de captação de recursos. Para tanto, aperfeiçoar a integração do Focem com o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata) e estreitar a relação com o Banco do Sul e o Banco Interamericano de Desenvolvimento são opções a serem aprofundadas.

O Focem ampliado poderá ser habilitado a financiar cadeias de valor em dois ou mais países do Mercosul, como agente da integração produtiva, em setores já conhecidos de madeira e móveis, pecuária e indústria do couro, mineração e metalurgia.

O Focem poderia também ser instruído a dar prioridade ao financiamento de pequenas empresas, à agricultura familiar e aos empreendimentos que ampliem a oferta de mão de obra. Neste contexto, será igualmente importante observar os projetos com maior capacidade de integrar cadeias de valor, desde o processamento da matéria prima até a industrialização.

Uma ideia a ser discutida é que esse banco de desenvolvimento possa auxiliar na reciclagem de material (embalagens, cartões, plástico, metais) nos grandes centros urbanos, com empréstimos concessionais para aquisição de veículos de transporte e automação de plantas processadoras.

É necessário realizar uma reforma administrativa do Focem, dando-lhe autonomia de funcionamento e plenas condições técnicas para execução dos projetos sob sua responsabilidade.

A Secretaria do MERCOSUL

Compõem a Secretaria cinco unidades técnicas: Comunicação e Informação (Ucim), Focem (objeto do comentário precedente), Educação (UTE), Estatísticas de Comércio Exterior (Utecem) e Cooperação Internacional (UTCI).

Para enxugar a Secretaria, propõe-se manter a Ucim e a Utecem e fundir a UTE com a UTCI, com a criação de uma Unidade de Educação, Cultura e Cooperação Internacional. Uma inovação importante seria a inclusão da cultura entre as atribuições dessa unidade. Com esta última, passariam a ser três unidades no total, já que a UTF seria transferida da Secretaria do Mercosul.

No que respeita a administração, será necessária uma reforma mais abrangente, com a criação de uma Unidade de Administração, Pessoal e Logística, em substituição ao Setor de Administração (AS) existente. À nova unidade podem ser subordinados os atuais Setores de Apoio (SAP) e de Assistência Técnica (SAT).

O Setor de Normas e Documentação (SND) poder ser incorporado à Utecem, que passaria a cuidar de toda a regulamentação e das estatísticas de comércio.

 As instâncias políticas e decisórias

Trabalhar na avaliação e eventual revisão dos âmbitos político e decisório do Mercosul certamente exigirá um importante esforço de negociação entre os sócios. Em mais de 30 anos, houve uma profunda transformação do bloco, com a adição de novas estruturas, mas sem a preocupação em rever o que ficava para trás. A consequência foi o inchaço da estrutura sem uma avaliação concreta da possibilidade de unificar grupos e subgrupos e de que forma tornar mais eficientes e conclusivas as negociações. É preciso rever o labirinto existente, formado por inúmeros grupos temáticos, normas e instâncias superpostas.

Uma vista d’olhos no organograma constante da página do Mercosul na Internet –https://www.mercosur.int/pt-br/documento/organograma-mercosul-completo-oficial/ – impressiona pela verticalidade da instância decisória. Quase tudo, simplesmente, depende da chancela do Conselho do Mercado Comum (CMC), exceto o Parlamento e o Tribunal Permanente de Revisão (TPR).

Convergem para o CMC 3 grupos independentes, 19 reuniões de Ministros e Altas Autoridades, o Grupo Mercado Comum (GMC), com seus 18 subgrupos de trabalho, 11 reuniões especializadas, 10 grupos ad hoc, o Tribunal Administrativo Trabalhista e mais 7 grupos e 1 foro, 1 comissão, 1 conselho e 1 comitê. Finalmente, reportam ao CMC a Comissão de Representantes Permanentes, e o FCCP (Foro de Consulta e Concertação Política). E ainda, a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), à qual se subordinam 8 Comitês Técnicos, além do Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas e do Comitê ad hoc sobre Controle de Quotas.

Evidentemente, falta racionalidade nesse emaranhado. Um passo inicial pode ser uma revisão histórica das reuniões e decisões dos órgãos mencionados, a fim de ratificar ou não o interesse na sua manutenção. Outra questão, mais importante, a considerar será a manutenção ou não de reuniões como a de presidentes de Bancos Centrais ou de ministros da Indústria, já que não existem políticas econômicas, monetárias nem industriais comuns, cada sócio atuando de forma independente em cada caso, com critérios próprios para taxas de câmbio e incentivos à indústria (isenções fiscais, zonas francas, regimes especiais para “maquiladoras” etc.).

O Foro Consultivo Econômico Social

A principal esfera (mas não a única) é o Foro Consultivo Econômico Social (FCES), que começou a funcionar em 1996. As entidades que representam diferentes segmentos da sociedade civil têm que ter espaço de participação como observadores nas áreas de negociação temática e o FCES deve ter as condições para consensuar propostas e demandas que contribuam para o avanço da integração. Para cumprir esse papel o FCES tem que ter condições de responder com agilidade as consultas realizadas pelas instâncias decisórias.

Parlamento do Mercosul

Criado em 2006 o Parlasul nunca conseguiu completar seu cronograma. Os países se deram o prazo até 2020 para escolher os 188 integrantes do órgão. O Paraguai definiu os seus nas eleições de 2008 e a Argentina em 2015. Brasil e Uruguai, no entanto, deveriam fazer isso nas próximas eleições e só tinham representantes provisórios: deputados em atividade em seus respectivos Congressos. Os planos de eleição popular foram suspensos, provavelmente de forma definitiva.

Em 2019, em reunião de presidentes do Mercosul se acordou suspender as eleições diretas dos membros do Parlamento, decidindo-se que os atuais deputados cumprirão seu mandato, mas os próximos serão eleitos pelos respectivos Congressos nacionais entre os próprios membros. O argumento dos presidentes foi realizar um corte de gastos desnecessários e reduzir a burocracia para o funcionamento do bloco.

Uma palavra final sobre o Parlasul. Em algum momento os governos do bloco, em coordenação com os respectivos parlamentos, terão de resolver se o mantêm apenas como local de debates e intercâmbio de opiniões ou se conferem maior relevância ao foro.

José Eduardo Martins Felício é embaixador, ingressou no Itamaraty em 1974 e se aposentou em 2018. Últimos cargos: Diretor Executivo do Instituto Social do MERCOSUL, de 2017 a 2019; Embaixador no Paraguai de 2013 a 2016; Embaixador em Cuba, de 2010 a 2013; Embaixador no Uruguai, de 2006 a 2010; encarregado de países políticos sul-americanos, Subsecretário e Coordenador do Mercosul pelo Brasil entre 2003 e 2006.

Maria Silvia Portela de Castro é socióloga, mestra pelo Prolam (USP); foi presidente da Associação dos Sociólogos do Brasil (1983/85); foi assessora da CUT na área trabalhista na política no Mercosul, da Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul e do Foro Consultivo Econômico Social (FCES); atualmente é consultora do Instituto Lavoro e da Fundação Friedrich Ebert