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As ações do atual governante estimulam a ampliação da violência política no país e a proliferação de ameaças e tentativas de agressão aos seus oponentes

Bolsonaristas cercam o carro do ex-presidente Lula, em Campinas, em maio de 2022. Reprodução/Twitter

O cerco ao carro do ex-presidente Lula por bolsonarista, em Campinas (maio/2022), foi mais um indicativo de que as milícias bolsonaristas, assim como o seu líder, sabem que não há chance de vencerem as eleições dentro das regras democráticas e, caso não sejam contidos com rigor pelas instituições responsáveis, podem ser tentados a ir para uma espécie de tudo, ou nada. Eles sabem que, desta vez, não contam com um juiz disposto a transgredir as regras do processo legal para impedir Lula de concorrer e que o campo golpista não possui o mesmo consenso que sustentou o golpe contra Dilma.

A convocação para um vale-tudo é explícita na afirmação de bolsonaro (sim, com b minúsculo) de que “só Deus me tira daqui”. Como ele sabe que não há qualquer chance de vitória no campo da disputa de ideias e projetos e que ele não possui condições emocionais mínimas para o debate, todo o seu esforço é voltado a emular com argumentos messiânicos os bandos protofascistas que lhe seguem. O fracasso da sua gestão é tal, que não há qualquer argumento político democrático que possa ser utilizado por seus apoiadores para defender a sua permanência à frente do governo.

Não é novidade para ninguém a relação estreita do clã bolsonaro com as milícias que controlam numerosas territórios nos centros urbanos, uma relação cultivada por anos e acentuada a partir da chegada de bolsonaro à presidência. Por exemplo, em apenas quatro anos o deputado estadual (RJ), Flávio Bolsonaro, aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares, policiais civis, bombeiros, guardas municipais e membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (A República das Milícias, de Bruno Paes Manso). Entre os homenageados aparecem os mais conhecidos milicianos, como o ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Adriano Magalhães Nóbrega, o Capitão Nóbrega, acusado de liderar o Escritório do Crime, de ser chefe da milícia do Rio das Pedras e suspeito de assassinar a vereadora Marielle Franco e Anderson. Adriano recebeu uma moção de louvor em 2003 e a medalha Tiradentes em 2005, sempre por iniciativa de Flávio, que, ainda, contratou a esposa de Adriano para o seu gabinete. Como afirmou Bruno Paes Manso, a vida pública do clã bolsonaro é um rastro das suas afinidades com os milicianos mais perigosos do Rio.

Como é amplamente conhecido e fartamente documentado, há vastos territórios nas grandes cidades do país nos quais a soberania territorial do Estado foi substituída pelo domínio de diferentes grupos e facções, ligadas principalmente ao tráfico de drogas e às milícias, que são chefiadas por muitos dos homenageados por Flavio bolsonaro. Elas submetem os moradores dessas áreas à um código de conduta próprio, no qual seus chefes concentram o papel de acusadores, juízes e promotores. Exercem um típico poder tirano, apoiado nas armas e na imposição do medo e o governo de bolsonaro faz de tudo para ampliar a circulação de armas e munições, assim como para diminuir as regras que permitem o seu rastreamento. Como isso pode ser compreendido, senão como um convite ao crime e à impunidade?

Esses grupos atuam a partir de um comando altamente centralizado, muito organizado e fortemente armado, com ramificações cada vez extensas em diferentes setores da sociedade, o que lhes permite acumular poder econômico suficiente para avançar sobre o poder político e buscar consolidar um projeto de poder.

Esta realidade é bem diferente da idealizada pelo pensamento liberal e consagrada no ordenamento democrático, que compreende o Estado como a única fonte “do direito de recorrer à força". Max Weber, por exemplo, identifica o monopólio da violência como o elemento principal da legitimidade do poder estatal. Para ele, o Estado é “uma comunidade humana que se atribui (com êxito) o monopólio legítimo da violência física, nos limites de um território definido", mas o que confere legitimidade para esse exercício do monopólio da força é o respeito às normas constitucionais, que devem orientar todas as ações dos agentes públicos, da burocracia estatal.

No Estado democrático de direito, portanto, não há legitimidade em qualquer ação não abrigada, rigorosamente, pelos preceitos constitucionais. O domínio é o da lei e não o da vontade ou arbítrio de nenhum indivíduo, seja qual for a posição que ocupe. Fora da legalidade democrática toda violência é abusiva, pois é o seu respeito que diferencia a civilização da barbárie. A despeito disso, as ações do atual governante estimulam a ampliação da violência política no país e a proliferação de ameaças e tentativas de agressão aos seus oponentes, tal como fazia antes de ser eleito.

Há quatro anos atrás, a Caravana de Lula na região Sul teve que alterar deu roteiro por falta de garantias de segurança, devido à ação organizada por ruralistas de extrema-direita que agiam, orgulhosamente, como jagunços e milicianos ao usarem caminhões, tratores, pedras e relhos para bloquear a livre circulação de Lula e agredir seus apoiadores.

Um caso emblemático ocorreu em Bagé, quando o presidente da Associação Rural Bagé, Rodrigo Moglia, liderou um protesto para impedir a visita de Lula à uma universidade criada no seu próprio governo. O então prefeito de Bagé, Divaldo Vieira Lara (PTB), e a senadora Ana Amélia Lemos fizeram discursos acalorados, saudando a violência política contra os adversários e exaltando o uso de pedra, ovos e relho como instrumentos legítimos da política. Adriano da Nóbrega não faria melhor.

Episódios como esses não param de acontecer e mostram que o bolsonarismo pode tentar estender, para todo o país, a mesma tirania e medo que já impõem sobre as populações nas áreas em que o seu poder territorial substituiu o do Estado. Essa verdadeira “miliciarização” da campanha eleitoral não significa necessariamente a expansão territorial das milícias, mas a adesão de outros setores sociais da direita a algumas das suas práticas, como os episódios de 2018 e tantos outros já indicam. Vale lembrar, que Divaldo Vieira Lara (PTB), o ex-prefeito que exaltou o relho contra Lula, já foi cassado do cargo por coação de servidores e uso indevido de dinheiro público.

A expressiva liderança de Lula nestas eleições e o grande arco democrático que está sendo construído em seu apoio, para derrotar bolsonaro e o bolsonarismo, mostram que a esmagadora maioria da sociedade não quer que o Brasil seja transformado num grande Rio das Pedras. Ao contrário, quer que o Estado democrático de direito e a justiça social recuperem a soberania em todo país e que ninguém mais seja submetido ao medo e à violência. É esta imensa vitalidade democrática que vai tirar bolsonaro e trazer de volta a cidadania.

Gerson Almeida é sociólogo