Mundo do Trabalho

Os efeitos da pandemia foram bastante negativos em termos do mercado de trabalho e a reconstrução pós-pandêmica é mais precária, mais informal e com menor renda do trabalho

Levantamento no 1º trimestre de 2022 revela que 2,3 milhões de brasileiros não estão trabalhando ou buscando uma vaga. Foto: Reprodução/RBA

Sabe-se que a crise sanitária atingiu duramente o mercado de trabalho e, mesmo diante do resultado positivo da economia em 2021, os indicadores continuam apontando piora da qualidade do emprego e da renda gerada.

É necessário pontuar que, no Brasil, essa precarização não começou na pandemia, tampouco ocorreu apenas em função das necessárias medidas de isolamento. Desde meados de 2016, quando, em meio a uma grave crise política, o Estado brasileiro foi assumido por um governo de orientação ultraliberal, os direitos trabalhistas vêm sofrendo constantes ataques. O mundo liberal entende que a proteção ao trabalho e a regulação das relações entre trabalhadores e empregadores são obstáculos para a geração de emprego e o lucro da economia capitalista. Assim, medidas como a reforma Trabalhista, a lei da Terceirização e a reforma Previdenciária foram impostas à população brasileira e, em vez do crescimento econômico e da ampliação do mercado de trabalho prometidos, houve aprofundamento da precarização, da informalidade e da instabilidade para os trabalhadores.

Foi nesse cenário que a crise sanitária teve início. Os empregos protegidos foram mantidos graças a medidas e programas que – criados a partir da pressão social e de um arcabouço construído em governos anteriores – suspenderam o emprego ou reduziram a jornada, garantindo o trabalho e a renda de muitos trabalhadores com carteira de trabalho assinada. Ainda assim, cerca de 9 milhões de pessoas perderam suas ocupações nos três primeiros meses de isolamento, sendo a grande maioria informal, sem carteira de trabalho e sem proteção. Para aqueles em situação mais vulnerável, o auxílio emergencial fixado em R$ 600, também por pressão social, assegurou parte da renda. No entanto, os cortes e mudanças de critérios para acesso ao CADúnico excluíram parcela importante do acesso ao benefício.

O fim do auxílio emergencial intensificou a busca pela sobrevivência e, mesmo diante do lento avanço da vacinação, a população foi retomando as atividades em um ambiente de agravamento da precariedade, acentuada queda de renda, jornadas maiores e ausência de proteção trabalhista e sindical.

Analisar esse cenário é o objetivo deste artigo. Pretende-se, aqui, revelar a desestruturação do mercado de trabalho causada por um governo liberal, que não tem a menor preocupação com a questão da renda e do emprego e que, claramente, prioriza o lucro e as vantagens de um grupo pequeno da sociedade. Serão apresentados a seguir indicadores do trabalho no 1º trimestre de 2020 e no 1º trimestre de 2022 com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O mercado de trabalho em 2022: maior informalidade e menor rendimento

O Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu 3,9% em 2020 e, em 2021, apresentou crescimento de 4,6%, superando ligeiramente a perda do ano anterior. Já no 1º trimestre de 2022, a expectativa é de que a economia cresça 1,5%, segundo monitor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas como se deu a geração de emprego e renda nesse início do ano?

A comparação entre a força de trabalho do 1º trimestre de 2020, período anterior à pandemia, e a do mesmo trimestre de 2022 apontou que o número de ocupados cresceu 2,3%. Já entre os que estão fora da força de trabalho verificou-se elevação de 3,6%, no mesmo período, indicando um maior número de pessoas (2,3 milhões) que não estão trabalhando ou buscando uma vaga. O número de desocupados decresceu 9,1%, e passou a corresponder a quase 12 milhões de pessoas.

Tabela 1- Estimativa da Força de trabalho

Brasil - 1º trimestre de 2020 e 1º trimestre de 2022 (em mil pessoas)

Condição na ocupação 1º trim. 2020 1º trim. 2022 Diferença em Nº Abs. Diferença %
Força de Trabalho (FT) 169.427 172.678 3.251 1,9
Ocupados 93.115 95.275 2.160 2,3
Desocupados 13.148 11.949 -1.199 -9,1
Fora da FT 63.164 65.454 2.290 3,6

Fonte: PNADC, IBGE. Elaboração: Dieese

Aparentemente, o mercado de trabalho brasileiro retomou os níveis de ocupação de antes da crise sanitária, porém, é importante que se conheça a qualidade das ocupações geradas ao longo desse período.

A análise da posição na ocupação e da categoria de emprego nos 1ºs trimestres de 2020 e de 2022 mostra que os maiores aumentos ocorreram nas posições mais informais e precárias, quais sejam, o assalariamento sem carteira do setor privado (6,9%) e o trabalho por conta própria (5,9%). O percentual de redução do trabalho doméstico com carteira foi de -11,9%, enquanto a proporção do trabalho doméstico sem carteira ficou praticamente estável (0,2%). Já o emprego no setor público diminuiu -1,1%, devido à redução entre os estatutários (-2,2%), apesar da maior contratação de trabalhadores com carteira (3,2%).

Tabela 2 - Evolução da ocupação por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal

Brasil - 1º trimestre de 2020 e 1º trimestre de 2022     

Ocupados por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal Diferença %
Empregado no setor privado 2,8
Empregado no setor privado, exclusive trabalhador doméstico - com carteira de trabalho assinada 1,4
Empregado no setor privado, exclusive trabalhador doméstico - sem carteira de trabalho assinada 6,9
Trabalhador doméstico -3,1
Trabalhador doméstico - com carteira de trabalho assinada -11,9
Trabalhador doméstico - sem carteira de trabalho assinada 0,2
Empregado no setor público -1,1
Empregado no setor público, exclusive militar e funcionário público estatutário - com carteira de trabalho assinada 3,2
Empregado no setor público, exclusive militar e funcionário público estatutário - sem carteira de trabalho assinada 0,3
Empregado no setor público - militar e funcionário público estatutário -2,2
Empregador -5,6
Conta própria 5,9
Trabalhador familiar auxiliar 1,7

Fonte: PNADC, IBGE. Elaboração: Dieese

Já a taxa composta de subutilização foi de 23,2%, no 1º trimestre de 2022, o que correspondeu a uma população subutilizada estimada em 26,8 milhões. Ainda que se tenha verificado um ligeiro recuo em relação ao mesmo período de 2020, quando equivalia a 24,4%, esse patamar de subutilização é muito elevado. Só a população subocupada por insuficiência de horas trabalhadas representou 6,5 milhões de pessoas tanto em 2020, quanto em 2022; e a desalentada atingiu 4,6 milhões, representando 4,1% em relação à força de trabalho total.

Em termos de rendimento, houve queda de -7,7% entre o 1º trimestre de 2020 e o mesmo período de 2022. Entre os assalariados do setor privado, com e sem carteira, a perda foi de 6,6%. Entre os empregados do setor público, a diminuição foi de -9,5% e chegou a 12,5% entre os contratados com carteira pelo poder público. Ainda, registrou-se decréscimo de -11,5% no rendimento dos empregadores e de -5,6% entre os trabalhadores domésticos. Já os conta-própria tiveram queda nos rendimentos de -2,6%.

A redução do rendimento médio real acontece em um momento em que a inflação de bens básicos como alimentos e serviços básicos de gás, luz, água e combustíveis não vem dando trégua. Com isso, a perda do poder de compra vai ficando cada vez mais evidente.

 

Tabela 3 - Evolução do rendimento médio real por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal

Brasil - 1º trimestre de 2020 e 1º trimestre de 2022  

(em reais do 1º trimestre de 2022)

Ocupados por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal 1º trim. 2020

1º trim.

2022

Diferença %
Total 2.690 2.483 -7,7
Empregado no setor privado 2.412 2.252 -6,6
Empregado no setor privado, exclusive trabalhador doméstico - com carteira de trabalho assinada 2.634 2.467 -6,3
Empregado no setor privado, exclusive trabalhador doméstico - sem carteira de trabalho assinada 1.741 1.637 -6,0
Trabalhador doméstico 1.068 1.008 -5,6
Trabalhador doméstico - com carteira de trabalho assinada 1.507 1.420 -5,8
Trabalhador doméstico - sem carteira de trabalho assinada 900 870 -3,3
Empregado no setor público 4.366 3.953 -9,5
Empregado no setor público, exclusive militar e funcionário público estatutário - com carteira de trabalho assinada 4.381 3.814 -12,9
Empregado no setor público, exclusive militar e funcionário público estatutário - sem carteira de trabalho assinada 2.329 2.194 -5,8
Empregado no setor público - militar e funcionário público estatutário 4.966 4.511 -9,2
Empregador 6.913 6.118 -11,5
Conta própria 2.049 1.995 -2,6

Fonte: PNADC, IBGE

Elaboração: Dieese

A dificuldade enfrentada pelos sindicatos desde a reforma trabalhista associada à escalada da inflação e à postura defensiva que têm sido obrigados a assumir nas negociações coletivas de trabalho para a preservação dos empregos resultaram, ao longo de 2021 e até março de 2022, em rebaixamento salarial para a maior parte das categorias profissionais, dado que não foi possível negociar a reposição da inflação sobre os salários. Apenas em abril de 2022 é que mais da metade das categorias que negociaram conseguiram assegurar o repasse do INPC – IBGE Índice Nacional de Preços ao Consumidor – aos seus salários. Esse fato – aliado à alta de preços dos serviços e produtos básicos – impõe perda ao poder de compra das famílias dos trabalhadores e impede que o consumo interno estimule a economia.

Um breve olhar sobre os conta-própria

O número de trabalhadores nesse tipo de ocupação retornou ao patamar pré-pandemia já no primeiro trimestre de 2021, indicando a necessidade da busca de renda pelos trabalhadores, principalmente em virtude da redução e, posteriormente, do fim do auxílio emergencial.

No 1º trimestre de 2022, o número de ocupados era 2,3% maior do que no 1º, enquanto o de trabalhadores por conta própria havia crescido 5,9% nesse período. Porém, há diferenças entre o perfil e a condição dos trabalhadores que começaram após o início da pandemia e os daqueles que tinham os negócios já no período anterior.

Em primeiro lugar, entre os que são conta-próprias há menos de dois anos, o rendimento foi menor, equivalia a 72,3% do recebido por aqueles que estavam nessa condição há dois anos ou mais, segundo dados do 1º trimestre de 2022. Entre os mais antigos, o rendimento médio era de R$ 2.129, enquanto entre os mais novos nessa situação, ficava em R$ 1.540.

Ainda, entre os trabalhadores por conta própria há menos de dois anos, 73,4% não tinham CNPJ e não contribuíam com a Previdência Social. Entre os conta-própria há mais de 2 anos, o percentual era de 59,4%. Entre os mais recentes, apenas 13,5% tinham CNPJ e contribuíam com a Previdência, enquanto entre os antigos, eram 20,4% nessa situação.

O percentual foi baixo também daqueles que apenas contribuem com a previdência: 7,7% entre os mais recentes e 14,3% entre os trabalhadores por conta própria mais antigos. Essa categoria de trabalhadores, que contribuem com a previdência, abarca também aqueles inscritos como MEI (microempreendedores individuais), que têm garantidos alguma proteção social, como auxílio acidente, licença-maternidade, entre outros, além da contagem de tempo para aposentadoria – isso tudo se a contribuição estiver em dia. Portanto, entre os trabalhadores que atuam há mais tempo por conta própria, 34,7% contribuíam com a previdência, e entre os que estão há menos tempo, apenas 21,2%. Isso pode estar relacionado, inclusive, à baixa remuneração recebida pelos trabalhadores, que dificulta o pagamento da contribuição.

Tabela 4

Estimativa (em mil pessoas) e proporção (em %) de trabalhadores por conta própria, segundo cadastro no CNPJ e contribuição à Previdência Social

Brasil - 1º trimestre de 2020 e 1º trimestre de 2022     (em 1.000 pessoas)

Situação Há 2 anos ou mais   Até 2 anos   Total
%   %   %
CNPJ e Previdência 3.996 20,4   776 13,5   4.772 18,9
Só CNPJ (sem Previdência) 1.141 5,8   310 5,4   1.451 5,7
Só Previdência (sem CNPJ) 2.795 14,3   439 7,7   3.235 12,8
Sem CNPJ e sem Previdência 11.612 59,4   4.214 73,4   15.826 62,6
Total 19.544 100,0   5.739 100,0   25.283 100,0

Fonte: PNADC, IBGE. Elaboração: DIEESE

Algumas considerações sobre o Mercado de Trabalho brasileiro

Desde 2016, o mercado de trabalho brasileiro, assim como a economia, patinou. O pífio crescimento do PIB e a ausência de rumo para a indústria geraram um efeito negativo no mercado de trabalho: renda menor, maior informalidade, maior subtilização. Já as reformas foram realizadas em um momento de crise econômica e política, sem interlocução com a sociedade, com a finalidade de atender aos interesses de um pequeno grupo de empresários e políticos, em detrimento da classe trabalhadora. Como resultado, essas medidas formalizaram a precarização, tiraram poder da negociação coletiva ao enfraquecer os sindicatos e jogaram a aposentadoria para longe dos trabalhadores, causando enormes prejuízos à vida dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.

Os efeitos da pandemia foram bastante negativos em termos do mercado de trabalho, mas seus impactos foram mais duramente sentidos por aqueles que não tinham proteção da legislação ou dos sindicados. Dessa forma, a reconstrução pós-pandêmica é mais precária, mais informal e com menor renda do trabalho.

Para piorar, no momento atual, um fantasma estava controlado passou a rondar o país:  a inflação. Começou timidamente, presente nos alimentos básicos em 2020, devido à alta da exportação e à ausência de políticas reguladoras. Em 2020, o INPC – IBGE aumentou em média 5,45% e os alimentos, 15,45%. O governo, porém, não viu problema. Em 2021, além da alta dos preços das commodities, a crise energética, a crise do petróleo e o encarecimento dos fretes internacionais levaram a inflação média a 10,16%. Em 2022, mais crise do petróleo, exportações e o conflito externo consolidaram o problema. Mas o governo, sem atacar a causa da questão, elevou e seguirá elevando a taxa de juros, comprometendo não apenas o crescimento econômico do ano, mas elevando ainda mais a precarização e diminuição da renda de trabalhadores e trabalhadoras.

É urgente a mudança de orientação do Estado brasileiro para a construção de uma economia que sirva ao seu povo, que leve o país ao desenvolvimento, que garanta emprego, renda e condições de vida digna à classe trabalhadora. E isso é possível. A economia liberal e a mão invisível do mercado já mostraram à sociedade o que produzem: inflação, precarização do trabalho, pobreza e fome para a maioria; e bem-estar e lucro para poucos. Para que o mercado de trabalho se reconstrua com elevação de renda, aumento do emprego formal e proteção do Estado – é preciso que o pacto social seja refeito e que a população possa escolher o futuro que deseja construir.

Fausto Augusto Júnior é sociólogo e diretor Técnico do Dieese

Patrícia Lino Costa é economista e supervisora da Produção Técnica do Dieese

Patrícia Toledo Pelatieri é economista e diretora Técnica Adjunta do Dieese