Cultura

O fundamento teórico do "politically correct", que o direitismo denomina de censura velada à liberdade de expressão (de agressão), consiste no entendimento de que humanos são seres linguísticos

Participantes da 19ª Parada do Orgulho LGBT na Avenida Paulista, São Paulo (SP). Foto: Leo Pinheiro/Fotos Públicas

O “bolchevismo cultural” remetia à arte degenerada do dadaísmo, cubismo e futurismo surgidos no alvorecer do século 20, e às lides conspirativas contra os valores morais e estéticos, do Ocidente. Para Iná Camargo Costa, em Dialética do Marxismo Cultural (Expressão Popular), “a certidão de nascimento daquele foi lavrada na autobiografia de Adolf Hitler, em Mein Kampf / Minha Luta”, escrita enquanto esteve na prisão. O “marxismo cultural” é o seu equivalente contemporâneo.

O objetivo do Nationalsozialismus era, literalmente, aniquilar as forças que se conjugaram para realizar a vitoriosa Revolução Russa (1917). Sua cruzada inicia com a divulgação de uma fraude: Os Protocolos dos Sábios de Sião, que simulava atas de uma reunião secreta. O documento antissemita, que ainda circula na internet, imprimiu a tola convicção sobre a suposta conspiração judaica internacional de dominar o mundo, associada à teoria bolchevique sobre a tomada do poder. O nacional-socialismo configuraria o dique de defesa ocidental, segundo a pregação do ministro da Propaganda nazista, doutor em Filosofia pela Universidade de Heidelberg, Joseph Goebbels.

Hoje, intelectuais que se referenciam em Antonio Gramsci (o conjunto da esquerda democrática) e na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Benjamin, Marcuse) constituem-se nos inimigos da hora. Pesa sobre eles a acusação de minar vetores espirituais do conservadorismo tradicionalista. O movimento de contracultura e o multiculturalismo ilustram a solapa das tradições, através das “políticas identitárias” de ações afirmativas de grupos além do paradigma heterossexual, branco, machista, cristão. O identitarismo imprescinde do linguajar do “politicamente correto”, que provoca urticária nos conservadores. Sob o abrigo do marxismo cultural, que condensa o “marxismo ocidental” de Perry Anderson e o “materialismo cultural” de Raymond Williams, avançam as denúncias à violência continuada e sem trégua aos dominados e aos subordinados.

O fundamento teórico do politically correct, que o direitismo denomina de censura velada à liberdade de expressão (leia-se, de agressão), consiste no entendimento de que humanos são seres linguísticos. Se “a linguagem é uma prática em ação”, que pode ferir com as palavras, é preciso anteparos para cancelar as ofensas e as injúrias raciais, sexistas, homofóbicas e quaisquer outras designações verbais que reiterem um normativismo excludente e opressivo. Daí a necessidade de “uma política do performativo”, quando a enunciação se equipara a uma execução. Em uma tal perspectiva, pergunta a expoente nos debates sobre identidade de gênero e direitos humanos, Judith Butler, em Discurso de Ódio (Unesp): “A linguagem poderia nos ferir se não fôssemos, de algum modo, seres linguísticos, seres que necessitam da linguagem para existir?” Certamente, que não.

Transformações linguísticas acompanham as mudanças sociais. A Revolução Francesa, ao estender a todos o tratamento de “cidadãos”, demarcou no tratamento interpessoal a divisória com o ancien régime, época em que a sociedade era desigualitária. No feudalismo, “servos” tinham deveres, não direitos. Na sociedade burguesa, em tese, os cidadãos afora os deveres têm direitos a cobrar das instituições. O processo de igualitarização acrescenta novos vocábulos ao dicionário. Provém do habitus herdado do patriarcalismo, a resistência aos pronomes neutros em substituição dos gêneros masculino e feminino, hierarquizados. Na verdade, aquilo que se proíbe de vir à luz é a igualdade. Argumentar com o escudo da “linguagem culta”, é ignorar o vínculo entre a história e a língua.

Só Carolina não viu

A ideia de “guerra cultural” contra o marxismo, que galvaniza o extremismo de direita e o fundamentalismo religioso nos Estados Unidos, a partir das décadas de 1990, é uma corruptela da tese do livro de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations (1993). Para o famoso professor de Harvard, após o fim da Guerra Fria, o choque de civilizações entre os EUA e o Islã substituiria as disputas ideológicas e econômicas. O ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, em 2001, pareceu confirmar a projeção. Agora, se sabe que os estrategistas estadunidenses em geopolítica agiram como a moça dos versos de Chico Buarque: “o tempo passou na janela / e só Carolina não viu”. Não viu a desindustrialização cá, e a hiperindustrialização (telecomunicações de 5° geração, fabricação de celulares, automóveis elétricos, energias renováveis) lá, na China, encerrando a unipolaridade.

A guerra cultural do neoconservadorismo ao marxismo na modernidade repete o modelo de interpretação dos antagonismos e tensões, já usado na gasta elucubração do “plano judeu” para espalhar o antissemitismo e legitimar a “caça às bruxas”. Incapazes de perceber as contradições internas do sistema capitalista, na etapa do deixar-fazer neoliberal, os neoconservadores lançam mão da ameaça externa à estabilidade social para decifrar o caos, que, como sempre, traz com as vertiginosas inovações tecnológicas a exclusão de inúmeras categorias do setor produtivo.

No final do século 19, a Abolição da Escravatura veio sem nenhuma indenização por 350 anos de trabalhos forçados, reforma agrária para distribuir terras aos ex-escravizados ou programas de qualificação da mão de obra dos libertos, para que pudessem participar do ciclo de industrialização e urbanização. Amanhã, os motoristas de ônibus, caminhões e aplicativos serão descartados por veículos autônomos com inteligência artificial, sem que as empresas e o Estado se encarreguem da sorte das multidões que serão deixadas ao Deus-dará. O livre mercado, com a distopia das desregulamentações e os avanços geométricos da aplicação empírica do conhecimento científico, só garante o futuro para 1% da população. Notoriamente, o neoliberalismo fracassou para 99% da humanidade. “As novas tecnologias têm efeitos colaterais, não se esgotam no oba-oba”, admitem as cabeças sensatas. O diagnóstico, porém, não sensibiliza os investidores na Bolsa de Valores.

No Brasil, o presente antecipou o futuro. Milhões estão condenados à insegurança alimentar, sem emprego, sem renda, sem dignidade. Vagam nas cidades à procura do Spartacus-coletivo que organize a revolta do desamparo para vencer o Império da ganância e da falta de empatia. “O Reino de Deus está entre vós”, disse Jesus; contudo, a fé se esvai entre os que deixaram de pertencer ao Reino de César. A pantomima de uma rebeldia a favor invade a sociedade civil com narrativas fakes sobre Gramsci e a Teoria Crítica. Steve Bannon, guru ainda vivo de Donald Trump, e Olavo de Carvalho, guru falecido de Jair Messias, derramam ódio com mentiras escabrosas em cascata.

Educação sexual nas escolas vira ensino da homossexualidade para crianças. A invenção olaviana das “mamadeiras de piroca” repercute nas redes. Imigrantes que buscam melhores condições de vida, esbarram na xenofobia. Azar, se engrossam a informalidade em troca da subsistência. O ressentimento impede a percepção do que, de fato, rasga a identidade nacional e viola a soberania do país - as privatizações da Eletrobrás, do Pré-Sal, da Petrobrás, a contrarreforma trabalhista e previdenciária, as emendas parlamentares sigilosas. Programas sociais e assistenciais como o Bolsa Família são banidos, por incrementar a dependência do Estado nas camadas que habitam a linha da pobreza e da miséria. O controle público (não-estatal) dos meios de comunicação é desqualificado como um emburrecimento da mídia. A “ideologia de gênero”, desde priscas eras excomungada pela Santa Madre Igreja, é encenada como enfraquecimento da família, noutros termos, do patriarcado.

Imaginação ao poder

Em hostes da extrema-direita, a regra é a demonização dos oponentes da opressão e da exploração. Eis os culpados pelas mazelas produzidas no capitalismo, com os desvios nos cânones clássicos do liberalismo onde a concorrência cede lugar aos monopólios / oligopólios e as falhas estruturais do Consenso de Washington são o passaporte para a barbárie. Nas intervenções do Instituto Liberal, do Instituto Millenium, do Instituto Mises Brasil ou do Instituto de Estudos Empresariais, nas monótonas edições do Fórum da Liberdade, se ouve o endeusamento das virtudes mercadológicas que existem nas nuvens, não na realidade concreta. Zero de autocrítica pela crise que explodiu nos EUA em 2008, fruto do descontrole dos negócios imobiliários. Até as revistas que honram a memória da Société du Mont-Pèlerin, tipo The Economist, criticaram o libertarismo econômico.

O neoliberalismo se alia ao neoconservadorismo para dispor de base social para implementar a necropolítica, que é a alma da hegemonia das finanças. O movimento Tea Party, do Partido Republicano no hemisfério Norte, é seu porta-voz oficioso. Abraça o obscurantismo contra os postulados do iluminismo, encarnados na razão e na ciência. Combate com fúria o feminismo, a liberação sexual, a equanimidade racial, os direitos LGBTQIA+ e o ambientalismo representado por mártires (Irmã Dorothy, Chico Mendes, Bruno Pereira, Dom Phillips). Pelas frestas, é possível vislumbrar no fundo do palco mais ou menos claro a vigilante luta de classes, “numa operação ideológica que requenta, além de mal e porcamente reciclar, a marmita nazista”, dispara I. C. Costa. A aliança com o neofascismo é o corrimão que conduz ao estágio superior – o Estado iliberal.

O marxismo cultural, que incomoda os nostálgicos da ortodoxia soviética e, por óbvio, a extrema-direita que equivale ao bolsonarismo, segue válido atualmente. Tenta apreender os motivos que levaram à derrota do projeto revolucionário e a ascensão da forma histórica do fascismo, na Itália e na Alemanha. Depois da Conferência de Yalta (1945), que dividiu a Europa em zonas de influência das potências vitoriosas na Segunda Guerra, as questões de “ação” e “organização” com vistas ao socialismo foram jogadas para debaixo do tapete, pela ex-URSS. Os esforços então para a formação de uma teoria social crítica se concentraram em novos horizontes. Com o que receberam especial atenção temas relacionados à “consciência” e à “cultura”, revigorando o legado de Marx e Engels.

“O caráter excludente da aventura neoliberal ensejou o surgimento de movimentos sociais, muitos dos quais retomaram os temas políticos e culturais que haviam emergido em 1968. Houve momentos em que as esquerdas possuíam ideias, mas não tinham base social. Hoje, em muitos casos, elas têm bases sociais, mas não possuem ideias para enfrentar o capitalismo triunfante. É preciso discutir as condições de gestação de um novo pensamento de esquerda, que deve fazer face aos desafios postos pela hegemonia do pensamento conservador”, anotou em idos de 1998 o saudoso Marco Aurélio Garcia, no Prefácio à tradução brasileira do belo livro Arguments for a New Left, da pesquisadora Hilary Wainwright, do International Centre for Labour Studies, na Universidade de Manchester.

Com efeito, apenas com imaginação e engajamento é possível responder ao desafio político e teórico representado pela “nova direita” ao projeto emancipador da “nova esquerda”. O relâmpago do Maio de 1968 exigiu criatividade dos governantes no exercício do poder. Janeiro de 2023 exigirá a institucionalização de modalidades de democracia participativa com mobilização popular para a reconstrução da nação – o povo no Orçamento da União e na atividade política. O marxismo cultural, pesadelo do neoconservadorismo / neoliberalismo / neofascismo, tem algo a contribuir para os próximos rounds desse embate civilizatório no continente latino-americano. A caravana passa na América Latina: Venezuela, Argentina, Bolívia, Peru, Chile, Colômbia e Brasil, com acúmulo de forças no Uruguai, Equador e Paraguai. Os cães ladram, mas a esperança é maior que o medo.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul