Sociedade

Hoje é o movimento migratório quem melhor expressa as contradições e o enfraquecimento dos valores que legitimam a relação entre Estado e sociedade

O fluxo migratório, ao se expandir, afeta determinado modelo de cidadania, aquele fundamentado na cultura nacional, que elegeu o indivíduo reconhecido pelo Estado como portador de direitos. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

O fenômeno migratório no século 21 tem promovido turbulências no mundo capitalista, colocando em xeque as instituições liberais e democráticas. Hoje é o movimento migratório quem melhor expressa as contradições e o enfraquecimento dos valores que legitimam a relação entre Estado e sociedade. É referência paradigmática diante dos desafios do século atual. Desafios que têm impulsionado, cada vez mais, a onda de mobilidade humana em todo o planeta, colocando homens e mulheres em confronto com as novas transformações no mundo, principalmente das relações produtivas baseadas em princípios de flexibilidade e vulnerabilidade social.

É nesse sentido que afirmamos que a mobilidade humana é constitutiva da dinâmica do desenvolvimento capitalista, e o Estado é a base jurídico-legal para a promoção e a execução das políticas de restrição e da confirmação da cultura nacional. É também o fenômeno migratório que tem desconfigurado o sentido de “pertença”, o sentimento de pertencer a uma comunidade política, o que tem provocado repercussão sobre a configuração objetiva da cidadania, enfraquecendo e comprometendo a sua circunscrição nacional. Sendo assim, o fluxo migratório, ao se expandir, afeta determinado modelo de cidadania, aquele fundamentado na cultura nacional, que elegeu o indivíduo reconhecido pelo Estado como portador de direitos.

Isso nos leva a repensar a relação entre Estado e direitos humanos, cidadania e migração, principalmente quando pensamos a cidadania para além do status jurídico-legal de uma nacionalidade e quando levamos em conta o aporte teórico e prático da dimensão subjetiva da qual a migração é uma rica fonte.

É essa dimensão subjetiva da movimentação migratória que tem desafiado a legitimidade das instituições liberais e democráticas, que sustentam a política de direitos e de cidadania restrita à circunscrição nacional.

A dimensão valorativa e normativa da cidadania e dos direitos humanos se torna parâmetro para que possamos avaliar as condições reais da relação Estado e indivíduos, o que nos permite analisar, com mais critério, a relação entre o universalismo dos direitos humanos e o particularismo de pertença, identificado pela inserção nacional da cidadania.

Esse é o problema levantado por Hannah Arendt, quando questiona a natureza ficcional dos direitos humanos; ou seja, o universalismo dos direitos humanos não tem fundamentação jurídico-legal e nem político-filosófica, pois está restrito ao critério da nacionalidade de acordo com o estatuto da cidadania de cada país.

Hannah Arendt enfatiza que o direito fundamental de cada indivíduo, antes de qualquer direito enumerado em declarações e positivado, é o direito a ter direitos, isto é, o direito de pertencer a uma comunidade disposta e capaz de garantir-lhe qualquer direito, pelo fato da sua humanidade. O argumento é de que o fato de o indivíduo pertencer à humanidade, por si só, deve ser a garantia do direito a ter direitos, é a condição humana de cada ser singular, que deve se tornar a fonte fundadora e legítima da universalidade dos direitos humanos (NASCIMENTO, 2017).

Entretanto, lembra a pensadora que pertencer a uma comunidade política vincula o ser humano aos demais, e estar fora de uma comunidade política significa, nesse caso, estar fora da própria humanidade, sem direito algum, como o homo sacer de Agamben. Celso Lafer afirma que a convergência entre os direitos humanos e os direitos dos povos baseava-se no pressuposto implícito de que o padrão de normalidade era a distribuição, em escala mundial, dos seres humanos entre os Estados de que eram nacionais – mas esse padrão foi colocado em questão pelas realidades históricas do primeiro pós-guerra (LAFER, 1998)

O impasse entre o universalismo dos direitos e o particularismo de pertença traz desafios à tradicional configuração da cidadania quando confrontada com a realidade global, que dá sinais evidentes do enfraquecimento do vínculo “naturalizado” dessa relação codificada na cultura nacional, que sempre manteve e reproduziu a linha divisória entre a inclusão e a exclusão.

Diante dos desafios, é possível afirmar que o acesso da população migrante a alguns direitos específicos definidos pela condição cidadã em base nacional não se traduz, necessariamente, em obtenção de status de cidadania. A inclusão do/a migrante torna-se um “dispositivo de sujeição que conduz à reprodução de uma multiplicidade de regimes de trabalho caracterizados por vários graus de coerção” (MEZZADRA, 2015, p.14).

A definição dos códigos de inclusão nos espaços da cidadania e os mecanismos de regulação da inclusão e exclusão são desafios que o Estado tem sido chamado a repensar diante da realidade migratória. Pensar a migração, diz Sayad, significa pensar o Estado, e é o Estado que pensa a si próprio quando pensa a migração (SAYAD,1998).

Entretanto, ao pensar a si mesmo, o Estado tem promovido a inclusão do migrante como excluído, como força de trabalho socialmente vulnerável e precarizada, ou seja, efetivamente um/a não cidadão/ã. Essa realidade problematiza e exige um modelo não nacional de direitos, que garanta e redefina a universalidade e a internacionalidade, de fato, dos direitos humanos, podendo assim contemplar os indivíduos migrantes, independentemente da cultura nacional de que passam a fazer parte. Nessa perspectiva, podemos problematizar os direitos subscritos na soberania nacional, que legitima o Estado a exercer a política de restrição fronteiriça e as práticas de discriminação.

O enfraquecimento da relação entre direitos humanos e cidadania é também enunciado pela crise do Estado social e pelas transformações do modo de produção capitalista. Mudanças que não apenas realçam a socialização conflitiva dos/as trabalhadores/as migrantes, mas também tornam a posição laboral num critério exclusivo de acesso à cidadania, mesmo que esta seja restritiva e não passe de um dispositivo de sujeição.

A inserção da população migrante no mercado de trabalho, em geral, torna-se a única garantia de acesso a alguns direitos, dentro das condições provenientes da categoria de migrante requeridas pelo país de destino. A codificação da pertença com base nacional, lembra Mezzadra, passa a operar circunstancialmente, atendendo às exigências laborais locais.

Os recentes estudos que têm identificado contradições e paradoxos da relação Estado, cidadania, direitos e migração vêm se deparando com as dificuldades de classificar as chamadas causas “objetivas” do fenômeno migratório. O que pode ser considerado como fator “objetivo” e unificador entre mulheres e homens migrantes é a reivindicação de “direito de fuga”, conclui Mezzadra, ou seja, o direito de revoltar-se diante da adversidade. Esse direito permite uma compreensão sobre a política da migração para além das políticas estatais ou das práticas humanitárias de assistência (MEZZADRA, 2015). Essa posição nega a “naturalização” e a essencialidade dos direitos.

As diferenças das quais os/as migrantes são portadores/as não constituem, portanto, elementos incompatíveis com qualquer tipo de concepção democrática de pertença, pelo contrário, constituem e confirmam a condição humana. Assim, garantir o direito a ter direitos significa pertencer a uma comunidade política com base no princípio filosófico-moral fundamentado simplesmente na nossa humanidade.

Mariangela Nascimento é professora na UFBA, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Núcleo de Apoio a Migrantes e Refugiados (Namir)/UFBA

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

________. Homo Sacero poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo. Ed. Forense Universitária, 1987.

________. Crises da República. São Paulo. Editora Perspectiva, 2004.

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BENHABIB, Seyla. The Rights of Others: Aliens, Residents and Citizens. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

BRITO, Renata R. Os Direitos Humanos na perspectiva de Hannah Arendt .Revista Ética & Filosofia Política, UFJF, v.9, n.1, junho\2006. Disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/filosofia/arendt/brito_dh_hannah_arendt.htm

COCCO, Giuseppe. Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização. São Paulo, Cortez Editora, 2000.

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LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt, São Paulo, Cia das Letras. 1998.

MEZZADRA, Sandro. Direito de Fuga – migrações, cidadania e globalização. EdUnipop,PT, 2012.

________________Multiplicação das fronteiras e práticas de mobilidade. In Dossiê: “Migrações e Fronteiras”- revista REMHU – Brasília, vol. XXIII, nº 44., 2015.

NASCIMENTO, M. A esfera pública na democracia brasileira: uma reflexão arendtiana. In: Hannah Arendt: entre o Passado e o Futuro. Nascimento M. e Correia, Adriano. (org.) JF: editora UFJF, 2008.

NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006

SAYAD, Abdelmalek. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Ed. USP, 1998.