Economia

Quando não respeitamos os direitos animais e da natureza, também acabamos vítimas dessas violações, seja pela proliferação de pandemias, seja pela redução da oferta global de água e comida

O Brasil é o quinto maior emissor global de metano por causa principalmente da pecuária. Foto: Agência Brasil

O olhar dicotômico da nossa cultura ocidental nos faz acreditar numa separação entre meio ambiente, seres humanos e animais. Nos faz olhar para a crise climática e não entender que estamos falando sobre a emergência de salvar nossas próprias vidas. Nos faz olhar para a exploração animal e seguir indiferentes como se pudéssemos ficar imunes às doenças acometidas fruto desta relação predatória. No entanto, na casa comum – como o Papa Francisco se refere à Natureza –, não existe meio ambiente, humanos e animais em “caixinhas” isoladas; estamos todos embrenhados numa relação indissolúvel. E é por isso que quando não respeitamos os direitos animais e da natureza, também acabamos vítimas dessas violações, seja pelos desdobramentos na saúde, pela proliferação de pandemias (como a Covid-19), pela redução da oferta global de água e comida.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) Organização das Nações Unidas (ONU) vem dando o alerta: é preciso frear o aquecimento global a 1,5 ou estamos condenando a existência da vida na Terra (2022). Com o atual aquecimento de 1,1°C as mudanças climáticas já estão causando perturbações em todas as partes do mundo. Secas severas, calor extremo e inundações recordes já ameaçam a segurança alimentar e os meios de subsistência de milhões de pessoas. Desde 2008, inundações e tempestades de grandes proporções forçaram mais de 20 milhões de pessoas por ano a deixarem suas casas. E as políticas atuais abrem caminho para um aquecimento global de +3,2°C até o final do século.

O clamor que antes ficava restrito aos fóruns ambientalistas, tem ecoado de forma mais vigorosa entre lideranças globais de diversos campos, como o Papa Francisco. Na Carta Encíclica Laudato Si’ (2015) o pontífice discorreu sobre o cuidado pela casa comum, a natureza que habitamos e somos parte integrante. Em julho deste ano, em mensagem aos participantes na Conferência Europeia da Juventude (2022), Francisco retomou o tema conclamando os jovens a iniciativas concretas, como a adoção de uma vida sem luxo nem desperdícios, para que todos possam habitar o mundo com dignidade. E afirmou ser urgente reduzir o consumo não só de combustíveis fósseis, mas também de muitas coisas supérfluas, assim como em certas regiões do mundo, consumir menos carne para ajudar a salvar o meio ambiente.

Admitindo a crise climática e ecológica, sob a liderança do novo presidente Gabriel Boric, o Chile pode ter primeira Constituição a autoproclamar Estado Ecológico (2022). Os direitos da natureza foram consagradosno texto da nova Constituição, finalizado pelos 154 membros da Assembleia Constituinte do Chile. O eixo central do documento é a compreensão da natureza como entidade viva, que não pode ser um simples objeto de apropriação pelo ser humano. Traz o reconhecimento de que é dever do Estado adotar medidas para “prevenir, adaptar e mitigar os riscos causados ​​pela crise climática e ecológica”. Há 50 normas ambientais e 17 referências ao termo "ecológico" no texto, desde o "direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado" à obrigação de o Estado "adotar uma administração ecologicamente responsável", proteger a "função ecológica da terra" e até determinar a "função social e ecológica" da propriedade. Na proposta, que passará por plebiscito em setembro, os animais são sujeitos de proteção especial, que o Estado deverá proteger, conhecendo sua senciência e o direito a uma vida livre de maus-tratos. Com a nova Constituição, o Chile admite que os indivíduos e os povos são interdependentes com a natureza e formam com ela um todo inseparável.

Atento a este chamado inadiável pela defesa da vida, as diretrizes para elaboração do programa de governo Lula-Alckmin nas Eleições 2022 também dá ênfase ao meio ambiente, com chamamentos para transição ecológica e energética, valorização da produção orgânica e agroecológica e proteção aos direitos dos animais. No discurso de 42 aos do PT, o presidente Lula chamou a atenção para o fato de que somos a espécie mais evoluída, no entanto, “nossa ganância e nosso individualismo estão destruindo o planeta”. Afirmou ainda que o ser humano é o “predador mais letal que já pisou sobre a face da Terra”, pois “levamos à extinção incontáveis espécies de animais, ao mesmo tempo em que domesticamos e condenamos outros ao sofrimento mais atroz”. Em vários oportunidade, o líder que poderá ser reconduzido à Presidência da República ainda no primeiro turno, tem afirmado que será preciso pensar em soluções de desenvolvimento econômico que deixem as florestas em pé.

De acordo com o IPCC, ao longo da próxima década as mudanças climáticas vão colocar entre 32 milhões e 132 milhões de pessoas na pobreza extrema. Com 1,5°C de aquecimento muitas geleiras em todo o mundo vão desaparecer por completo ou perder a maior parte de sua massa; um adicional de 350 milhões de pessoas enfrentará escassez de água até 2030; e até 14% das espécies terrestres estarão em risco de extinção. Se o aquecimento passar de 1,5°C, ainda que temporariamente, efeitos muito mais severos e até irreversíveis vão acontecer, como a morte massiva de florestas.

Temos que assumir que para sobrevivermos, será preciso mudanças radicais na nossa forma de viver. As medidas apontadas pelo IPCC passam pela redução drástica do transporte aéreo, abandonar os veículos com combustíveis tradicionais em favor dos elétricos, refundar a cadeia alimentar, reduzir o consumo de carne, repensar a forma como as casas são construídas. Precisaremos substituir as energias fósseis; trocar petróleo, gás e carvão por energia solar e eólica. O teletrabalho, tão popularizado durante a pandemia, deverá se tornar cada vez mais comum, evitando deslocamentos desnecessários.

Com relação aos desafios específicos que se impõe ao Brasil, acabar com a emissão de gás metano é o nosso calcanhar de Aquiles. O IPCC aponta que precisamos reduzir em 30% as emissões de gás metano até 2030. O Brasil é o quinto maior emissor global de metano por causa principalmente da pecuária, uma vez que 61% das emissões de gases do agronegócio vem da fermentação entérica do gado. Precisamos discutir isso em nível individual, pois nossas escolhas pessoais de alimentação impactam coletivamente a vida na Terra, mas, sobretudo, precisamos discutir a questão a nível de políticas públicas, para decidir qual projeto de alimentação vamos priorizar, com um sistema que não seja responsável pelo agravamento da questão climática que coloca em xeque toda nossa existência. Sabemos que onde pesa a mão do Estado é onde o setor cresce. Então precisamos decidir enquanto nação se vamos continuar investindo subsídios públicos em uma atividade de grande degradação ambiental, mas que só fornece um quinto das calorias consumidas pela população mundial, ou se vamos fomentar políticas públicas para difusão das proteínas de fontes vegetais.

Todos os anos, a indústria agropecuária recebe R$ 12 bilhões e 300 milhões em subsídios governamentais. A maior parte da produção vai para fora do país, não gera riqueza ou comida para as pessoas. Os lucros são concentrados apenas no agronegócio. Já a devastação ambiental e climática é socializada com todos, até mesmo com quem está na fila do osso e não tem acesso ao consumo desses produtos. Um relatório do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacional revela que a pecuária é o setor da economia brasileira com os maiores custos em termos de perda de capital natural: para cada R$ 1 milhão de receita do setor, se perdem R$ 22 milhões de capital natural e danos ambientais. De forma semelhante, estima-se que as operações de abate e processamento de animais custam ao país, em danos ambientais, 371% a mais do que a receita que geram.

A captura de CO2 também é outro desafio que se impõe ao Brasil. Precisamos plantar muito mais árvores e impedir o desmatamento. Para isso também será preciso discutir que a produção de carnes e outros produtos de origem animal requer extensas áreas e o uso maciço de bens comuns e escassos, como a água doce. A pecuária ocupa 75% das terras aráveis do planeta, principalmente para pastagem e produção de ração. No Brasil, a pecuária responde por 80% do desmatamento na Amazônia e 50% no Cerrado. Para alimentar as 11 bilhões de pessoas que habitarão o planeta em 2050, será preciso um aumento de 70% na produção de alimentos, se comparado aos padrões atuais. Ainda que se derrube até a última árvore, não haverá terras suficientes para produzir tanta carne.

Embora faça parte da cultura e contribua para o fornecimento de proteínas para a dieta humana, a indústria da proteína animal contribui para a redução da oferta global de água e alimentos, considerando a baixa taxa de conversão alimentar. Para cada quilo de proteína animal produzido, os animais consomem em média seis quilos de proteína vegetal proveniente de grãos e forragem. Mais de 40% dos grãos mundiais são dados para os animais na produção industrial de carne. Num mundo em que 2,2 bilhões de humanos não têm acesso regular à água (ONU, 2020) – item essencial para combater o coronavírus e outras doenças –, quase 90% da água doce consumida são usados na produção agrícola e, notadamente, na pecuária; para se produzir um quilo de carne são necessários 15 mil litros de água (média mundial). Comparativamente, para se produzir um quilo de trigo, são usados apenas 900 litros.

Ao destruir massivamente as florestas, a pecuária nos expõe a riscos de novas pandemias, cada vez mais frequentes e graves. Relatório da ONU de 2013 já indicava que ao menos 70% das enfermidades que apareceram a partir da década de 40 tiveram origem na exploração animal. A expansão agrícola e a interatividade entre animais humanos e não humanos fizeram com que novas doenças surgissem e se disseminassem rapidamente, como o HIV-1, doença da vaca louca, síndrome respiratória aguda grave, gripe suína, gripe aviária. A Covid-19 é mais um capítulo dessa história.

Somos quase 8 bilhões humanos extraindo recursos do meio ambiente de forma predatória, vivendo em aglomerados populacionais muito densos nas cidades e viajando muito e com mais rapidez. Atividades como o desmatamento e a caça invadem habitats e forçam o contato com animais selvagens que podem carregar infecções. Assim, se um vírus for transmitido de um animal para um humano, e depois se propagar entre humanos, há grandes chances de esse vírus infectar um número enorme de pessoas e circular em todo o mundo em um período muito curto de tempo. Foi o que ocorreu com a atual pandemia.

As pandemias não são infortúnios da natureza, mas sim efeitos programados da maneira como passamos a criar animais para consumo nos últimos quarenta anos. A indústria de proteína animal, tal como organizada pelo agronegócio, é uma fábrica de epidemias e pandemias. A ausência de diversidade imunológica e genética de bandos e rebanhos, cujo tempo de vida é ditado pelo ritmo da acumulação, contribui para a seleção de vírus cada vez mais rápidos e mortais (WALLACE, 2020).

As condições deste modo capitalista de produção de epidemias encontram-se de forma abundante no território brasileiro, seja no desmatamento da Amazônia, seja nas queimadas do Pantanal. A forma de uso do solo define se um espaço se torna produtor de doenças ou se atua como uma barreira agroecológica para a proteção da saúde humana e animal como um todo. Estima-se que no Brasil existem mais de quinhentos tipos de coronavírus silvestres diferentes em morcegos. Uma bomba relógio pronta para eclodir se o avanço em cima das florestas não retroceder. Ou seja, para garantir nossa existência na casa comum, só há um caminho: precisamos cuidar dos seres humanos e de todos os animais.

Vanessa Negrini é mestre e doutora em Políticas de Comunicação e Cultura (UnB). Coordenadora executiva do Núcleo de Estudos sobre Direitos Animais e Interseccionalidade (Nedai/Ceam/UnB). Coordenadora Nacional do Setorial de Direitos Animais do PT. Primeira suplente de Deputada Federal (PT-DF)

Referências

Francisco. (24 de maio de 2015). Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum. Acesso em 12 de julho de 2022, disponível em Vaticano: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

Francisco. (6 de julho de 2022). Mensagem do Papa Francisco aos participantes na Conferência Europeia da Juventude. Acesso em 18 de julho de 2022, disponível em Vaticano: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2022/documents/20220706-messaggio-conferenza-giovani.html

IPCC. (2022). Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change. Acesso em 18 de julho de 2022, disponível em https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/

Propuesta Constitución Política de la República de Chile 2022. (2022). Acesso em 18 de julho de 2022, disponível em Convención Constitucional: https://www.chileconvencion.cl/wp-content/uploads/2022/07/Texto-Definitivo-CPR-2022-Tapas.pdf

WALLACE, R. (2020). Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. (A. R. SILVA, Trad.) São Paulo: Editora Elefante & Igrá Kniga.