Nacional

Os membros de uma Assembleia Constituinte devem ser representantes populares eleitos apenas e tão somente para elaborar a nova Carta Magna, votá-la e promulgá-la

Ato nacional de luta por uma Constituinte com Lula, em São Paulo, em 2/7/22. Foto: Reprodução/OTrabalho

A defesa da educação pública, da cultura, da pesquisa científica e da universidade sempre foi um desafio de grandes proporções num país que nunca superou o subdesenvolvimento. Mas na atual e difícil armadilha em que o Brasil foi emboscado, o desafio foi acrescido de entraves adicionais, legais e institucionais impostos sobretudo após o golpe de 2016. São travas que engessarão a ação de qualquer governo que vença as eleições. Superá-las exige um caminho de ruptura democrática para que um futuro governo progressista tenha mínimas condições de implementar um programa que recupere a universidade e a educação públicas brasileiras.

Os movimentos sociais, sindicais e democráticos – nos quais se incluem amplos setores da educação, da universidade, das ciências e da juventude estudantil – devem retomar a luta país afora para derrotar, agora eleitoralmente, Bolsonaro e sua política. E o caminho para tanto é o engajamento total na campanha para eleger Lula presidente!

É necessário reconhecer, contudo, que Lula eleito enfrentará enormes obstáculos (maiores dos que os encontrados em 2002), inclusive constitucionais, para reverter todo o estrago feito nos últimos anos, além de garantir a transformação do país rumo à conquista da soberania nacional, da justiça social e do desenvolvimento – do qual a universidade pública, gratuita, autônoma e socialmente referenciada é parte integrante e essencial. Parte desses entraves já existiam em 2002. Eles frustraram a realização de reformas estruturais, a despeito de avanços realizados nos governos petistas, e acabaram levando ao golpe de 2016. A situação piorou ainda mais após o golpe, com as inúmeras leis e emendas constitucionais regressivas, antissociais e antinacionais que começaram a ser implementadas na “Ponte para o Futuro” de Temer e aprofundadas com as “boiadas” passadas por Bolsonaro e seu Centrão.

A Constituinte 1988

Mas o problema vem de longe. A Carta de 88, a despeito de direitos econômico-sociais formalmente inscritos em vários de seus artigos, manteve intacta, nos capítulos da organização do poder de Estado, as instituições reacionárias, corruptas, antidemocráticas, guardiãs históricas dos interesses das oligarquias, do latifúndio, do financismo rentista e do grande capital, inclusive o internacional. São instituições especializadas na opressão ao povo, sobretudo o pobre e negro, num país com elites que jamais superaram seu passado atávico escravagista, autoritário, violento e colonizado.

Afinal, recordemos, foi exatamente por isso que a bancada parlamentar do PT votou contra a Constituição de 88 e declarou voto por meio de seu líder, Lula – ainda que assinando seu texto, obviamente, por ter participado do processo (Revista Perseu, pp. 184-5).

A Constituinte de 1988 nasceu da transição conservadora pactuada por cima pelas elites, que aceitaram encerrar a ditadura à condição de que o processo fosse controlado e seguro aos seus interesses. As regras dessa Constituinte foram impostas e tuteladas pelas instituições da própria ditadura, ainda intactas. A Carta foi assim elaborada pelos próprios deputados e senadores (eleitos, aliás, pelas mesmas regras casuísticas e antidemocráticas previamente existentes), com vasta maioria conservadora, fisiológica e oligárquica – dominada pelo “Centrão” da época.

Se essa maioria reacionária aceitou várias emendas populares que atendiam, ao menos formalmente, demandas sociais (fruto da pressão das lutas nas ruas dos anos 1980), ela só o fez porque sabia que garantiria na própria Carta, à mão de ferro, a preservação da organização do poder de Estado, que nunca foi de fato democrático em nosso país. Nos capítulos da ordem do poder, preservou-se, no frigir dos ovos, todas as instituições moldadas aos interesses das classes dominantes para seguirem sendo usadas como seus históricos instrumentos privados de controle sobre o povo e contra ele.

Por exemplo, manteve-se o monopólio dos meios de comunicação, o papel interventor das Forças Armadas – o famigerado artigo 142 –, incluindo aí as polícias militares e o aparato repressor (art. 143 e 144). Garantiu-se todos os instrumentos de preservação do grande latifúndio no campo, e o sistema de Justiça elitista, apodrecido e golpista que bem conhecemos. Manteve-se também a estrutura político-partidária, com sistema eleitoral manipulado pelo poder econômico e midiático: o voto do eleitor de estados mais urbanizados e populosos vale muito menos do que o dos representantes de rincões rurais; as candidaturas não são em lista-programáticas, mas pessoais (uninominal)1 e com financiamento bilionário das campanhas. Tudo isso garantiu a perpetuação da maioria oligárquica, conservadora e fisiológica, a qual se divide no Congresso (seu balcão de negócios) entre as “bancadas BBBs”: da bala, do boi, da Bíblia, além da dos banqueiros e da mídia (muito mais endêmicas e ecumênicas). A esquerda, unindo todas as agremiações ligadas a movimentos sociais, (PT, Psol, PCdoB, setores progressistas do PDT, PSB etc.), a despeito de muito mais representativa entre as massas populares, nunca conseguiu obter mais de 20% da Câmara (e bem menos do Senado). E nem conseguirá, se tais regras não forem profundamente alteradas e democratizadas.

Demandas sociais nunca foram plenamente implementadas

Uma vez preservadas as reacionárias instituições, que, ao fim e ao cabo, foram as responsáveis pela implementação das diretrizes constitucionais, parte das conquistas sociais cravadas na Carta de 88 nunca puderam de fato sair do papel. Outra parte, se saiu, o fez de forma limitada e encoscorada. Leis regulamentares para implementar tais conquistas ou nunca foram aprovadas ou acabavam limitando seu escopo.

Por isso, ainda que sejam formalmente obrigações constitucionais, as bandeiras sociais e democráticas – como a educação ou a saúde (SUS), pública, gratuita, universal e de qualidade, as reformas agrária e urbana (garantia da “função social da propriedade”) – até hoje não foram, nem de longe, concretizadas plenamente. Por isso, outro exemplo, boa parte das verbas constitucionais da seguridade social (contribuições do Estado às receitas da Previdência, garantidas nos artigos 194 e 195) nunca foram alocadas, desde a promulgação da Constituição em 1988  (FAGNANI, pp. 19-20). Por isso também, outras reformas estruturais, como as que garantiriam a tributação progressiva ou a soberania nacional – formalmente escritas na Carta – não saíram do papel. Nos mantemos assim dentre os campeões mundiais em desigualdade de renda e de regressividade tributária.

Nem mesmo as garantias democráticas previstas pela Constituição são respeitadas, muito menos zeladas, por tais instituições. O STF, o Judiciário, o TSE, o Ministério Público, o Congresso (para não falar das FFAAs) agem desavergonhadamente como raposas cuidando do galinheiro. Foi, aliás, o que testemunhamos no golpe de 2016, na farsa da Lava Jato ou na criminosa condenação sem provas e subsequente prisão política de Lula, parte nevrálgica da manipulação eleitoral que acabou levando um facínora e sua quadrilha à Presidência da República. Tal atitude está no DNA dessas instituições, que – desde o Brasil colônia – sempre cumpriram esse papel. Foram elas, para ficar apenas em dois exemplos, que avalizaram o envio da gestante Olga Benário à Gestapo, ou o próprio golpe de 1964.

120 Emendas Constitucionais

A preservação na Constituição das instituições reacionárias, herdadas do período pré-88, foi crucial à burguesia, não apenas para manter suas rédeas de poder e para (se dar o luxo de) evitar a implementação (plena, ao menos) de conquistas sociais e populares inscritas na Carta. Tal preservação foi essencial também para que ela pudesse, mais adiante, excluir por completo boa parte desses direitos sociais após sua inclusão na Constituição, neutralizando e mesmo anulando conquistas produzidas pelo enorme esforço das lutas populares.

Logo após a promulgação da Constituição, vários dos direitos sociais e econômicos começaram a ser dela apagados através de emendas constitucionais (ECs) propostas pelos governos e legislaturas congressuais – sobretudo nos períodos de FHC e do pós-golpe 2016. Ao todo, 120 ECs já foram aprovadas. A vasta maioria delas são regressivas, eliminadoras de direitos e garantias sociais ou contrárias à soberania nacional2. A tabela abaixo mostra apenas alguns exemplos mais relevantes de tais ECs.

Educação, universidade e cortes de verbas

As escolas e universidades públicas tornaram-se, de modo geral, um foco de resistência e mobilização desde o golpe de 2016. Mas isso não impediu o avanço, não só de cortes profundos nos fundos e verbas de pesquisa – o que hoje ameaça diretamente o sistema nacional de pesquisas do país –, mas também do sucateamento e destruição da infraestrutura conquistada até esse momento.

As várias ECs que desvinculam receitas de gastos sociais têm levado ao rebaixamento dos limites mínimos constitucionais destinados à educação, permitindo a governos reduzirem verbas abaixo de tais limites ao sabor das exigências do mercado financeiro. Trata-se de uma afronta ao princípio básico do desenvolvimento nacional, que pressupõe estabilidade de recursos ao menos à educação e à saúde, independentemente da fase do ciclo econômico.

A EC-95 é a última e mais perversa de tais desvinculações. Ela, em nome do congelamento por 20 anos de gastos públicos supostamente destinado a um ajuste (“austericídio” de fato) fiscal e ao pagamento de juros da dívida ao rentismo, desvinculou receitas (tributos) que a Constituição obrigava destinar à saúde e à educação.

O gasto mínimo com educação foi assim congelado no valor de 2017, que era o mínimo constitucional que o governo (Temer) tinha de cumprir (antes da PEC): 18% da Receita Líquida da União. Como naquele ano a recessão (2015-17) atingia seu auge, a Receita Líquida (e, portanto, esse 18%) já estava bastante rebaixada. No decorrer dos próximos 20 anos – como a EC-95 impede qualquer elevação real de gastos e como o PIB e a arrecadação de impostos crescerão naturalmente – o valor mínimo obrigatório à educação cairá como proporção das receitas tributárias. Projeções conservadoras apontam para o seu encolhimento de 18% para 11% até 2037 (DWEK et all, p.33).

Isso implica uma enorme queda de gastos educacionais em relação à (crescente) população e ao PIB. Para piorar, há uma parte considerável do gasto federal com manutenção e desenvolvimento do ensino que em 2017 ficou de fora do piso; podendo, portanto, ser reduzida ainda mais nos anos seguintes (idem, p. 32).

Esse “Teto de Gastos” não apenas impedirá novos investimentos (construção e manutenção de edifícios e laboratórios, ou aquisição de equipamentos) de universidades, e escolas públicas. Ele condenará o próprio funcionamento de tais estabelecimentos, incluindo pagamento de contas de luz, água, limpeza ou segurança. Reajustes nos salários de docentes, técnicos e funcionários (já em muito defasados) estão inviabilizados; para não falar dos imprescindíveis novos concursos.

O resultado desses tetos e cortes é que a dotação atual (2022) no Orçamento da União ao Ensino Superior ficou um terço menor do que seu valor de 2015. E para MEC (Educação) como um todo, a queda no custeio e investimento no mesmo período foi de 32%.

Autonomia e democracia

A autonomia das universidades e instituições de ensino se inscreve e só se viabiliza de fato no quadro geral da democracia e soberania nacional. Com a democracia em xeque, na atual situação de ameaças cotidianas às conquistas e liberdades democráticas aceitas (ou mesmo impostas) pelas próprias instituições (judiciais, policiais etc.), abrem-se possibilidades e precedentes de interferências externas ao funcionamento de universidades públicas, institutos federais etc. Nomeações ilegítimas (ou mesmo ilegais), como a indicação de reitores e gestores, ataques à liberdade acadêmica e científica, ou perseguições e assédios que visam minar os pressupostos da vida universitária e acadêmico-científica em geral. E sem universidades e escolas livres, democráticas e autônomas não é possível dialogar com a sociedade, absorver as demandas por ciência, saber, cultura mais profundas da nação para que se possa criar e oferecer as contribuições centrais, estratégicas e fundamentais ao desenvolvimento econômico e social que a grande maioria da população espera.

Além das ECs regressivas aprovadas nos últimos anos, a dominância reacionária do Congresso e demais instituições de Estado levaram à composição de um arcabouço legal frágil (ou mesmo desfavorável) à democracia e autonomia e ao financiamento da universidade pública. A LDB, por exemplo, não garante o pleno respeito aos processos eleitorais internos. Ademais, sobretudo após o golpe de 2016, escancarou-se e disseminou-se a ação arbitrária, desrespeitosa ao devido processo legal e reacionariamente politizada dos órgãos de Justiça, inclusive atentando à autonomia universitária – a revoltante e injusta perseguição que levou à trágica morte do saudoso reitor Cancellier (UFSC) é apenas um dentre tantos exemplos que passaram a multiplicar-se pelo país.

O ensino e a pesquisa frente ao engessamento orçamentário

Ademais, a total impossibilidade de aprovação pelo Congresso de uma reforma tributária progressiva, faz perpetuar-se uma enorme injustiça na distribuição da renda nacional, limitando a capacidade de financiamento do Ensino Público. Mais que isso, ela alimenta também a indústria do lucro fácil no ensino privado – quase sempre desrespeitosa no tratamento trabalhista e acadêmico-pedagógico de seu corpo docente, além de profundamente descompromissada frente às missões indissociadas de ensino, pesquisa e extensão. Pois desvia-se enormes montantes de verbas públicas, com incentivos fiscais e tributários indevidos, a grandes grupos corporativos, altamente financeirizados e multinacionailizados, cujo poderoso lobby não para de crescer.

A legislação cambial e de “Independência” do Banco Central (BC) é outra grave amarra. As leis 14.286/2021 e LC-179/2021, ambas aprovadas na calada da noite e sem qualquer debate público, farão com que o novo governo, eleito pela vontade popular, não tenha mais praticamente nenhum controle sobre a ação do BC. Seu presidente e sua diretoria, indicados por Bolsonaro e visceralmente ligados aos grandes banqueiros privados, ganharam agora mandato garantido até início de 2025 e terão poderes, antes só atribuídos ao Executivo e Legislativo, inclusive para permitir as completas aberturas à dolarização da economia e à (ainda maior) liberalização de fluxos especulativos. Assim, sem mais controle sobre a autoridade monetária e cambial (transferida agora aos bancos privados), o novo governo mal terá instrumentos de política econômica, fiscal e de desenvolvimento.

E sem eles, todos os programas e projetos sociais tendem a se tornar meras ilusões. Como ilusórios também serão a recomposição dos recursos e das condições de trabalho das agências de fomento à pesquisa e das universidades, de sua democracia e autonomia, além da tão necessária continuação da expansão – interrompida no golpe de 2016 – do ensino público superior ou da formação de uma nova geração de cientistas, pesquisadores, intelectuais de todas as áreas do conhecimento da cultura e das ciências.

Por que uma Constituinte é necessária?

Para ter em suas mãos as rédeas da política econômica e implementar programas sociais que permitam recuperar e transformar a nação – e nesse contexto, salvar a universidade pública – o novo governo precisará revogar todo esse conjunto de dezenas (talvez centenas) de leis e ECs que foram impostas desde 1988 (e particularmente desde 2016) para bloquear sua ação. Teria também de enfrentar instituições arraigadamente golpistas e antipopulares – o que só seria possível com uma reforma das instituições que as democratizassem. Teria de aprovar uma série de outras ECs e leis que regulamentem tanto matérias que nunca foram inclusas na Carta de 88 quanto as que até foram (ainda que vagamente) mas nunca lograram ser regulamentadas na legislação ordinária. Matérias que relacionada às grandes, urgentes e estruturais reformas: agrária, urbana, tributária, da mídia, das Forças Armadas, do sistema político, judicial etc.

Mas tais tarefas, muito mais que hercúleas, são impossíveis no quadro do atual Congresso (com as regras eleitorais vigentes) e das demais instituições que imporão a Lula o garrote representado, dentre outros, pelo infame “presidencialismo de coalização”. A maioria parlamentar é visceralmente contra qualquer reforma democratizante, que ameace privilégios e interesses seus e das classes dominantes com as quais está comprometida. A bancada pró-Lula (unindo todos os partidos progressistas) – por mais que nos esforcemos para que cresça nestas eleições – não terá em hipótese alguma nada que se aproxime da metade e muito menos dos três quintos necessários para aprovação (ou revogação), respectivamente de Projetos de Lei e de ECs.

Somente uma Assembleia Nacional Constituinte, Exclusiva, Originária e Soberana pode realizar tais tarefas, incluindo a reforma completa das próprias instituições de poder do Estado. Assembleia essa que nunca existiu na história do Brasil.

A história nos ensina

Nossas Constituições ou foram outorgadas (1822, 1891, 1937, 1967) ou escritas por quem não tinha mandato para isso (1946 e 1988): os parlamentares eram ilegitimamente investidos de poder constituinte e seus trabalhos eram limitados pelas instituições e regras pré-existentes.

A Constituição de 1946, por exemplo, embora tenha formalmente estabelecido direitos individuais, direito de greve e a novidade da estabilidade no emprego após dez anos, manteve a tutela do estado sobre os sindicatos e criou novos entraves ao uso da propriedade para o bem-estar social, retirando inclusive os princípios de progressiva nacionalização (dos bancos, seguradoras, mineradoras e das jazidas minerais) presente nas Constituições de 1934 e 1937. Era a expressão na época dos interesses da minoria, até porque mais da metade da população sequer podia votar, seja por ser analfabeta ou por dificuldades de participação.

Embora a Constituição de 1988 tenha sido escrita por membros formalmente representantes de colégios eleitorais mais amplos do que os de 1946, ela tampouco foi soberana. Tais membros eram de fato parlamentares eleitos por regras viciadas e antidemocráticas, previamente instituídas ainda durante o regime militar. A maioria deles (decorrência da constituinte não ser exclusiva), como se dizia à época, cumpria o papel de deputado (ou senador) pela manhã, de constituinte à tarde e de operador de... lucrativos negócios à noite. Ademais os próprios trabalhos constituintes eram tutelados pelos poderes e entulhos da ditadura – não apenas da mídia e do grande empresariado-latifúndio, mas também do próprio aparato jurídico-militar ainda em pleno funcionamento. Nenhuma ruptura democrática, popular e nacional poderia ser de fato realizada em tal terreno.

Por tudo isso, e partindo da própria experiência histórica brasileira, fica claro que os membros de uma verdadeira Assembleia Constituinte não podem ser os deputados e senadores correntes, nem tampouco quaisquer outros dignitários das demais instituições vigentes.

Como seria uma verdadeira Constituinte soberana?

Longe de termos aqui a pretensão de apresentar uma cartilha pronta, nem tampouco detalhes técnicos processuais (que certamente necessitarão ser elaborados mais adiante, com o auxílio inclusive de especialistas), sugerimos a seguir apenas algumas linhas gerais sobre como poderia se desenvolver uma Constituinte de fato popular e soberana. Partimos de experiências políticas e históricas recentes – cientes de que tal processo é determinado, não por tecnicalidades (jurídicas ou de outra ordem), mas pela própria dinâmica política e concreta do movimento das massas em luta por suas demandas e pela correlação de forças na sociedade.

Os membros de uma Assembleia Constituinte devem ser representantes populares eleitos apenas e tão somente para este mandato específico: elaborar a nova Carta Magna, votá-la por maioria simples e promulgá-la. Feito isso, encerram-se seus mandatos e a Assembleia é dissolvida.

Sendo originária, a assembleia terá o poder (e o dever) de recriar (desde as origens) as demais instituições e poderes de Estado: ao encerrar seus trabalhos, ela viabilizará a convocação de novas eleições (parlamentares, presidenciais etc.) conforme as novas regras constitucionais, que também definirão o estabelecimento das novas instituições, incluindo seus prazos e procedimentos transitórios.

A assembleia será soberana na medida em que seus trabalhos não sofrerão interferência, tutela ou supervisionamento de qualquer tipo dos demais poderes previamente instituídos (Judiciário, mídia, Congresso, FFAAs, grande capital etc.). Para tanto, por exemplo, a eleição da Assembleia Constituinte deve ser realizada com (campanhas de) financiamento exclusivamente público, unicameral, com voto em lista-programático, proporcional (voto de cada eleitor, independente de seu estado, vale o mesmo) e com representação de povos originários.

Há várias possibilidades quanto à forma de convocação da Constituinte. Sabemos que nenhuma delas será fácil (dada a oposição carnal da mídia e demais poderes) e todas exigirão crescente luta popular. Lula, durante sua campanha e – uma vez eleito – após, pode apresentar a proposta. Com o apoio da mobilização e pressão popular do início de seu mandato, ele pode abrir, não apenas o debate na sociedade, mas também o caminho para efetivamente garantir sua convocação.

A correlação de forças permite uma Constituinte progressista?

A luta em questão exige uma grande mobilização popular que vincule as demandas e reivindicações sociais concretas e urgentes (reposição de perdas salariais, emprego a todos, revogação das reformas trabalhista e previdenciária, verbas à Educação e Saúde públicas, reestatização da Eletrobras, volta do monopólio e controle de preços da Petrobras, desmilitarização da polícia e fim da chacina do povo negro e das periferias etc.) com a necessidade de uma Constituinte para garantir seu atendimento. Isso permitirá explicar às amplas massas o sentido e a urgência de uma Constituinte bem como popularizar a campanha por sua convocação imediata3.

Dado o quadro crítico e revoltante em que se encontra o sofrido povo trabalhador brasileiro, tal mobilização é latente e totalmente exequível. Mais que isso, ela é urgente e imprescindível.

E não se trata de algo novo, tampouco isolado. Movimentos similares têm ocorrido por toda América Latina, o caso mais recente foram as poderosas mobilizações populares no Chile. Lembrando que no passado recente ocorreram também grandes processos similares (alguns mais outros menos avançados) na Bolívia, Equador, Venezuela e Peru colocando em debate a via da constituinte como instrumento democrático de mobilizações e transformação democrática estrutural das sociedades. Na França, o candidato majoritário da esquerda, Mèlenchon, incluiu a proposta de uma Constituinte em seu programa nas eleições presidenciais e parlamentares deste ano.

A luta já começou: Constituinte com Lula!

No dia 2 de julho último um ato por uma "Constituinte Soberana com Lula Presidente" ocorreu em São Paulo, com mais de mil presentes, ativistas de movimentos sociais, juventude, sindicalistas e militantes do PT. O debate dentro do PT e entre a militância de esquerda começa a se desenvolver.

A enorme insatisfação popular frente às instituições esgotadas e falidas do país favorece a deflagração de uma campanha pela Constituinte. Mas, obviamente, ela seria em muito facilitada com o engajamento do PT, demais partidos de esquerda e dos movimentos sindicais e populares. As eleições gerais deste ano, aliás, são um importante ponto de apoio. O casamento das campanhas Lula Presidente e pela Constituinte, ao ajudar a apontar uma saída real e factível ao povo, criará uma simbiose mútua que fortalecerá a ambas. Ele permitirá liberar e impulsionar as forças sociais profundas que clamam por mudanças estruturais no país.

E serão essas forças, com Lula, que criarão as condições para a convocação de uma verdadeira Constituinte. Forças que, se colocadas de fato em movimento, também devem alterar consideravelmente a correlação de forças em favor das classes trabalhadoras, da democracia e da soberania nacional. O que permitirá, convocada uma Constituinte, arrancar enormes vitórias e conquistas populares e estruturais.

Alberto Handfas é professor do Departamento de Economia Unifesp

Everaldo de Oliveira é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo

Referências

Datafolha (https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2013/07/1304513-maioria-defende-constituinte-para-reformar-politica.shtml ), 01/07/2013.

DWEK, E., OLIVEIRA, A., ROSSI, P. (Coord.) Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, v. 1, 2018.

FAGNANI, E. (Org.) “Previdência: Reformar para excluir?” Dieese/Anpif, 2017.

“O PT e a Constituinte: 1985-1988”. Revista Perseu, Nº 6 - Ano 5. pp. 184-6. Centro Sérgio Buarque de Hollanda da FPA.