O fascismo histórico – na Itália dos anos 20 e na Alemanha dos anos 30 do século passado – traz consigo, como caráter constitutivo e como método, o permanente exercício da violência para alcançar seu projeto de poder. Na disputa pela hegemonia cultural, elabora simbolicamente, no caso italiano, com o futurismo de Marinetti a estética da violência, o elogio da guerra. A estética da morte.
A escória da sociedade brasileira que encontrou seu porta-voz no delinquente que hoje ocupa a Presidência da República dá forma a esse discurso na campanha de 2018. “Vamos fuzilar a petezada do Acre!” dizia no palanque, empunhando um fuzil simbólico. Hoje, converte em prática aquilo que anunciava sem pudor diante de uma sociedade previamente preparada pelos oligopólios de comunicação para naturalizar a violência, a ignorância e o preconceito como formas de relação social inevitáveis.
A reação do governo federal aos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, no Vale do Javari, Amazonas, Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu, Paraná, como antes a morte de Marielle Franco, no Rio e Mestre Moa do Katendê, na Bahia, expressa, mais que a indiferença diante do ato violento, a cumplicidade diante do crime.
É urgente a necessidade de uma resposta massiva e organizada da sociedade – e das Instituições – em repúdio à naturalização da “cultura” do cancelamento, da eliminação, do assassinato dos opositores como parte inevitável do conflito político-eleitoral no Brasil.
Cabe neste momento aos movimentos culturais, aos criadores de música, literatura, teatro, dança, dos materiais audiovisuais, peças de entretenimento, posts, memes, produzir conteúdos capazes de mobilizar a sociedade “Por uma Cultura de Paz e Democracia”. E deixar claro que a sociedade brasileira não abandonará as ruas e rejeitará com firmeza a guerra civil que o energúmeno deseja provocar, ao armar suas milícias por meio dos CACs e outros expedientes legalizados pelo próprio governo ou mesmo ilegais ao gerar e disseminar pelas redes sociais um clima envenenado pela intolerância e pelo ódio.
Não é suficiente esperar pelo “normal funcionamento das instituições” para deter o avanço do neofascismo. Não se conhece registro histórico a respeito. É flagrante o processo de aviltamento das instituições brasileiras desde o golpe de Estado de 2016. A mobilização da sociedade civil será indispensável para fazer frente à ofensiva do atual ocupante do Palácio do Planalto contra as eleições de outubro e para assegurar sua realização. A sociedade vai tomando consciência de que o delinquente não está preocupado com a possibilidade de fraude nas urnas eletrônicas. Ele é contra a realização das eleições.
Considerando o recorte que escolhi para enquadrar essa reflexão será útil, sem dúvida, voltar o olhar para últimos anos do conflito social no Brasil, particularmente no âmbito da disputa cultural, simbólica.
Estamos devendo uma abordagem mais atenta das ilusões das esquerdas, particularmente do Partido dos Trabalhadores – pela relevância e o significado das posições que assume ou deixa de assumir frente ao país –, a respeito de como encaramos durante aqueles anos (2003-2016) a necessidade de travar no quotidiano a batalha contra os valores culturais conservadores.
Valores tecidos em torno da defesa do direito absoluto à propriedade e à exploração do trabalho, modelados durante 300 anos de escravidão e seus derivados – o individualismo, o consumismo, o machismo patriarcal, o racismo, o autoritarismo, a intolerância, o preconceito, o atalho, a trapaça – cultivados e disseminados na sociedade.
Reproduzo aqui parte de um diálogo ocorrido durante o governo Dilma, que considero elucidativo do caráter limitado do processo reformista que protagonizamos naqueles anos. Minha interlocutora era embaixadora de um país amigo, ela própria apoiadora da experiência que conduzíamos, com as dificuldades conhecidas, desde 2003.
“O que pretendem as esquerdas brasileiras com seu governo? Converter o Brasil num grande shopping center?” Levantei como contra-argumento: o Brasil era tão atrasado que o governo popular ainda batalhava para pôr de pé políticas públicas duradouras capazes de garantir três refeições por dia aos seus cidadãos mais pobres, compromisso assumido por Lula durante a campanha de 2002. Ao mesmo tempo, tomar as iniciativas adequadas para criar um mercado interno de massas, capaz de dinamizar o processo produtivo e retirar o país da estagnação econômica. A pergunta, todavia, pela pertinência, permaneceu ecoando nos ouvidos a cobrar algo que nos faltava.
O desfecho dos acontecimentos de 2013 e do golpe de 2016 demonstrou que não basta garantir as três refeições diárias asseguradas por Lula e, ainda que precariamente, o atendimento à saúde e à educação públicas, proporcionar emprego e remuneração digna, com a política de elevação do salário mínimo. Uma vez alcançados esses objetivos, outras demandas de natureza semelhante bateriam às portas daquele ensaio de Estado de bem-estar social nascente.
Onde guardamos – e por que guardamos? – o discurso político capaz de explicar aos próprios beneficiários situados na base da pirâmide, que a inclusão social não era obra dos desígnios divinos, mas de uma vontade política organizada, que depois de 22 anos de lutas alcançou o poder de Estado? E que essa inclusão seria apenas uma etapa do processo de transformação mais profunda de uma ordem radicalmente injusta que herdamos de cinco séculos de história?
Uma das respostas possíveis é: não sedimentamos ao longo do percurso, na consciência popular um corpo de valores alternativos àqueles que julgávamos combater. Não construímos, nem na formulação teórica, nem na prática quotidiana das lutas uma ampla e sólida cultura democrática, capaz de sustentar um programa de desenvolvimento inclusivo, ambientalmente sustentável e socialista para o país.
O bombardeio implacável movido pelos oligopólios de comunicação, em particular a Rede Globo, contra o projeto popular de desenvolvimento com inclusão social cumpriu um papel central na disputa de valores culturais na sociedade brasileira, sem ser incomodado. Não fomos capazes de nos contrapor aos valores conservadores, seja em volume de produção de conteúdos, seja na velocidade adequada à cobertura reacionária e totalizante da indústria do entretenimento. Do noticiário, à telenovela, dos enlatados, das séries aos cultos religiosos.
Faltou ousadia aos governos populares. Hoje, ao examinar o período dos governos Lula e Dilma, todos fazemos a mesma pergunta: por que não regulamentamos, quando detínhamos força política para tanto, os artigos 220 a 224 do capítulo V da Constituição Federal que tratam dos meios de comunicação? A resposta mais ouvida é: não detínhamos maioria num Congresso conservador, composto por parlamentares aliados ou reféns das empresas de comunicação para fazê-lo.
De todo modo, resiste a constatação: não fizemos o que estava ao nosso alcance, no Executivo, para democratizar os meios de comunicação. Utilizando apenas a legislação existente, consagrada na Constituição, evitando, portanto, os bloqueios de um parlamento na qual éramos minoritários.
Não é demasiado reconhecer a insuficiente compreensão das organizações populares sobre a necessidade de construir suas redes contra hegemônicas de comunicação. Mas é grave não reconhecer nossa omissão frente às tentativas das organizações populares de manter as redes comunitárias de comunicação. E mais ainda, nosso silêncio quando elas foram alvo da repressão do aparato estatal, nominalmente a Polícia Federal, contra as rádios comunitárias. Precisamente quando buscavam espaço para veicular seu discurso em defesa das políticas públicas implementadas por nossos próprios governos...
Aparentemente cedemos à arrogância e ao deslumbramento dos que tomam o triunfo passageiro em uma batalha – pela vitória em uma guerra inteira. Como se a luta de classes numa das sociedades mais desiguais do mundo resolvesse com essa vitória institucional todas as contradições e imprimisse ali seu ponto final.
Essa ilusão nos levou a subestimar um fator indispensável na disputa pela hegemonia cultural nas sociedades contemporâneas da periferia do sistema capitalista: a necessidade de suprir o déficit informacional histórico em uma nação culturalmente colonizada. O que naquele momento significava assumir como prioridade a descentralização do investimento público nas redes de comunicação como forma de democratizá-los e converter em realidade o preceito constitucional que define os três âmbitos da produção e circulação de informações: o espaço público, o mercado privado e o espaço estatal.
Não extraímos todos os desdobramentos possíveis do riquíssimo processo de participação popular – por meio dos grupos culturais populares excluídos do mainstream, esboçado pelas Conferências de Cultura que abriram espaço para a manifestação da vigorosa diversidade cultural de nossa gente. Homenagens merecidas aqui a Sérgio Mamberti e Márcio Meira que, como secretários do MinC, puseram sua sensibilidade e talento a serviço do estímulo e da articulação das culturas populares.
Vinte anos passados, mais um golpe de Estado e a prisão da maior liderança popular do país, chegamos mais uma vez às portas da disputa eleitoral com evidentes chances de vencer.
Permanece, contudo, como desafio para um provável governo de reconstrução nacional liderado por Lula e para os movimentos culturais a modelagem dos mecanismos capazes de traduzir em organizações duradouras – ou seja, economicamente sustentáveis –, as resoluções resultantes da vontade política expressa pelas conferências realizadas na experiência anterior e sua indispensável atualização. E entendê-las – para que sejam efetivas – como inseparáveis das políticas de inclusão social, políticas educacionais, de desenvolvimento sustentável, de direitos humanos etc. Utilizar-se, para isso com inteligência e criatividade de duas conquistas maiúsculas da resistência da cultura brasileira ao neofascismo: a derrubada dos vetos às leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.
Para concluir seguem duas ideias para o debate engajado nessa campanha que vai sacudir o país nos próximos dois meses:
Dificilmente o atual mandatário vai se desvencilhar da imagem de promotor da escalada de ódio. Seja por falta de tempo hábil, seja pela convicção mesma que o neofascismo traz consigo de que a luta política deve ter sempre o ódio como combustível primordial. A frente antifascista que vem sendo costurada por Lula pode focar a realização de atos de rua da campanha Lula-Alckmin centrados na Defesa da Democracia e de uma Cultura de Paz.
A reconstrução das políticas públicas de cultura proposta por Lula passará não apenas pela recriação do MinC, mas pela redefinição do financiamento das políticas públicas de cultura, mirando-se no exemplo do que o FNDE significou para a educação, como hipótese. E na descentralização dos mecanismos públicos de financiamento ao acesso a bens e serviços culturais por meio de sua integração com todas as políticas de governo: economia, segurança, comunicação, sustentabilidade socioambiental, saúde, educação, moradia, etc. Nenhuma delas poderá prescindir de uma área específica de cultura capaz de projetar no simbólico as conquistas obtidas em cada uma delas, como um fator permanente de formação cidadã.
Passa por aí o caminho de reconstrução da democracia, de uma cultura de paz e da revolução cultural necessária.
Pedro Tierra é poeta, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo