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A comunicação bolsonarista se empenha em conversar com recortes da população com bordas mais ou menos definidas que podem oferecer votos e sustentação política

Campanha bolsonarista constrói um esgoto comunicacional que se escora em aspectos da comunicação política atualizada para a era das redes sociais cada vez mais segmentadas. Foto: Tânia Rêgo/ABr

Quando se comenta que declarações escabrosas de Bolsonaro são dirigidas apenas a seus próprios apoiadores, um público cativo que sustenta a duras penas sua aprovação e intenção de voto na casa dos 25%, o que fica declarado é o eixo de uma estratégia de comunicação, adotada desde antes de 2018. O atual ocupante do Palácio do Planalto raramente se dirige à população brasileira como se todos fizessem parte de um mesmo país, reunindo um mínimo de preocupações, medos e desejos em comum. Ao falar para seus apoiadores, Bolsonaro os retrata como se representassem toda a população do país.

A execução dessa estratégia serviu como um corta-luz eficiente para justificar milhões de votos, depositados na urna levando em conta apenas algumas promessas impossíveis de cumprir e ignorando que mal havia um plano de governo para o país. Porém, esse tipo de comunicação também compreende e atua em um ambiente da comunicação em que se dirigir a uma noção ampla de “povo” ou conversar unicamente com “trabalhadores” ou “mais necessitados” já não encontra necessariamente um público ouvinte que acredita que aquela conversa é com ele.

A comunicação bolsonarista se empenha em conversar com frações, recortes da população com bordas mais ou menos definidas que são capazes de oferecer votos e sustentação política. Essas partes são tratadas como se representassem toda a população, suprimindo do discurso todos os que não estão ao lado do bolsonarismo. O próprio conjunto dos que ainda espremem apoio a Bolsonaro e afirmam votar nele nas próprias eleições nunca foi monolítico – por isso mesmo, ações públicas e declarações feitas para gerar atenção e repúdio não servem para todos nesse grupo.

É necessário fracionar dentro do recorte de apoiadores e tentar garantir que cada mensagem converse com aqueles que se sentirão representados, sem atingir outros públicos, também próximos, que podem entender declarações e ações diárias como omissão, ofensa gratuita, preguiça ou falta de identificação – nesse último caso, um grande calcanhar de barro que ainda não erodiu.

O antropólogo Orlando Calheiros apontou esse cuidado no Twitter há alguns meses, indicando como grupos online de apoio a Bolsonaro, nesse caso grupos de Whatsapp, são extremamente dependentes de perfis que atuam como porteiros de informações, despejando mensagens que ressaltem aspectos que podem ser compreendidos como positivos para aquele conjunto de pessoas e ignorando ou inventando razões para outras ações de Bolsonaro. Parte das vezes, a justificativa é que se trata de uma “guerra política” na qual Bolsonaro seria impedido de poder agir pelos outros poderes da República, uma história repetida mesmo antes da posse presidencial.

A comunicação em frações que o bolsonarismo tenta estabelecer e dominar é um sistema de partes interdependentes. Uma das partes é baseada na eficiência em segmentar diversos públicos que ainda podem oferecer algum tipo de apoio e ofertar benesses diretamente e apenas a esse público. Ampliação de benefícios públicos, mudanças ou questionamentos de leis, apoio declarado a causas bastante específicas e respaldo a discursos de ódio disseminados socialmente são ferramentas para conversar com um público específico, um segmento que se entende como tal e consegue se ver representado em ações ou mensagens.

Um segundo movimento constante é aquele de bloquear que aspectos dissonantes da imagem de Bolsonaro ou de seus filhos e apoiadores alcancem públicos para os quais essa quebra de expectativas possa ser demais. Ignorar o que foi dito, criar redes de justificativas que diluem o impacto do que é realizado ou tentar desculpar esses atos como parte necessária de supostos embates públicos para que se “transforme o país” são ações constantes, realizadas por intermediários que estabelecem pontes com segmentos diversos.

No atual governo, a expectativa de uma comunicação institucional normalizada foi frustrada semana após semana. A comunicação regular de quem já detém o poder executivo, e as responsabilidades que vêm junto, deu lugar a um comportamento aparentemente desgovernado de oposição em campanha constante. Outra parte do sistema é essa manutenção de uma comunicação de guerra constante, que invalida completamente (e de certo modo justifica) a própria possibilidade de uma comunicação em que se assume o impacto do próprio poder e a responsabilidade pelos rumos do país.

Nesse aspecto, a comunicação segmentada e fracionária também é friamente matemática – não é necessário convencer a maior parte absoluta da população a ceder um voto de confiança no candidato vencedor. Garantir a desconfiança e multiplicar o impacto do ódio de classe, bloqueando apoio a possíveis adversários eleitorais, pode ser o suficiente para ampliar ou sustentar o volume de ausências, votos brancos e nulos. O resultado disso em 2018 foi o número de votos capaz de garantir uma vitória eleitoral ao candidato que se apresentava como novo e “transformador”, mesmo que em grande parte respondesse a desejos e pulsões que muitas vezes não são tornados públicos.

Essa comunicação de guerra pode conseguir até certo ponto se desprender das expectativas geradas em torno de um governo no poder e se concentrar em girar suas ferramentas de ataque, com um adversário sempre em metamorfose, escolhido de acordo com a conveniência do momento.

O que a campanha bolsonarista construiu e ainda constrói, nesse comportamento de comunicação de uma campanha que nunca terminou, é um esgoto comunicacional que se escora em aspectos de uma comunicação política atualizada para a era das redes sociais cada vez mais segmentadas. Sua tentativa de criar uma versão própria de um algoritmo de entrega de conteúdos, com ênfases manipuladas e travas que limitam mensagens conforme o viés que se deseja, busca fixar pontes de contato com públicos, que efetivamente se entendem como grupos sociais específicos com preocupações, anseios e interesses prioritários segmentados. Não deixam completamente de ser “povo brasileiro”, “trabalhadores” ou, em diversos casos, “necessitados”. Mas as prioridades pelas quais se entendem e se estabelecem no mundo parecem ser outras.

Rodrigo Campanella é doutor em Comunicação Social pela UFMG, consultor em comunicação e desenvolvimento digital