Política

A “imaginação em pane” da sociedade civil nas últimas décadas potencializou a importância dos tribunais para oficializar as reformas regressivas neoliberais

O capital financeiro atrai parcelas significativas da magistratura para a cosmovisão das classes dominantes. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

A supremacia do capital nasceu nas fábricas, com a démarche da industrialização. “As forças subalternas, que deveriam ser manipuladas e racionalizadas segundo esse propósito, resistiam”. Os altos salários foram um antídoto para formatar o seleto operariado “com uma nova e original qualificação psicotécnica e psicofísica”, escreve Antonio Gramsci, em Americanismo e Fordismo. A especialização forneceu mão de obra à categoria, e remuneração maior. O adendo salarial balanceou sacrifícios pelos métodos e ritmos no cumprimento de metas.

Nos Estados Unidos, o incentivo favoreceu a expansão do comércio interno. Se a disseminação das modernas técnicas depreciava os proventos com a lei da oferta e da procura, o ciclo de inovações restabelecia o “ágio”. Torneiros mecânicos estavam no topo da cadeia alimentar fabril. A aristocracia proletária é um momento da hegemonia das classes industriais.

A diferenciação dos salários depende do agregado ao custo de formação profissional. Economistas, contadores e administradores se distinguem nos cuidados do Tesouro. Mas o contexto histórico-social e político, quer dizer, o arcabouço cultural da dominação de classe na sociedade influi na oscilação do valor dos salários. É o que explica um cientista com doutorado, pesquisas acadêmicas e publicações em instituições de prestígio internacional perceber um salário inferior aos pesos pesados do funcionalismo, o Judiciário e o Ministério Público (MP), cujo requisito ao ingresso nos quadros é a graduação e dois anos de experiência em advocacia.

O paradoxo se deve à relevância adquirida pelos tribunais para esboçar o desenho constitucional do processo de neoliberalização, no país. Afinal, a organização do projeto de Estado-mínimo exige a participação ativa do setor público. O mercado moderno não atua sozinho. A gramática “liberista” promove a reeducação da sociedade civil. Contradições à parte, tal realizou-se após a Constituição de 1988, e, favorecido pela unipolaridade no mundo com a extinção da URSS, recebeu impulso nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A correlação de forças facilitou a rápida proliferação de dispositivos legais para a toga, a aristocracia da era neoliberal, conquistar o podiumdos vencimentos públicos. A reflexão aborda aspectos do enigma.

A filosofia do dinheiro

A história inicia pelo que Georg Simmel intitulou “filosofia do dinheiro”. Fruto de uma sociedade argentária, o amor doentio e obsessivo ao numerário desafia o idealismo das vocações. Já não bastam o prestígio social e a gratificação pessoal, pelo desempenho profissional. A teia da ambição tóxica, em que os fins justificam os meios, sequestrou o imaginário na contemporaneidade. O egocentrismo reflete A Nova Razão do Mundo (Boitempo), descrita por Pierre Dardot e Christian Laval, no ensaio sobre a sociedade neoliberal: “O neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”. A condição de juiz e promotor não restou imune; aprendeu a se mover na “biopolítica” que enquadra as práticas e os sentimentos individuais aos vários procedimentos do poder.

Por detrás dos extorsivos benefícios às castas, se acham as afrontas patrimonialistas ao espírito republicano e as espertezas corporativas no manejo do Orçamento. O objetivo-mor é confirmar la distinction, na célebre expressão de Pierre Bourdieu ao analisar os gostos e os julgamentos éticos das diferentes classes sociais. Recompensas monetárias dão o selo de distinção social aos “eleitos” pela competência “meritocrática”, à semelhança da teologia calvinista ou neopentecostal. Na exegese do ex-presidente do Tribunal de Justiça (TJ/SP), ao arrazoar os “auxílios” (alimentação, moradia, e o escambau), os mimos ocorrem “para que o juiz fique um pouquinho mais animado, não tenha tanta depressão, síndrome do pânico, AVC. Não dá para ir toda hora a Miami comprar um terno novo”. Eis aí o mode de viedos dândis do Estado de Direito.

Não obstante, a pantomima dinheirista tropeça nas bourdieusianas “identificações equivocadas”, como legitimidade / “legalidade” ou veracidade / “cumplicidade”, análogas à grosseira confusão Kafka / “kafta”. Foram vergonhosos os elogios do mecanismo judicial aos mitômanos de Curitiba –que agora clamam, aos garantistas, pelos direitos básicos vilipendiados no verão passado. Vale citar o ex-juiz incompetente e parcial que afirmou gostar de ler biografias. Instado a citar uma, o “conje” esqueceu de todas. Ou o ex-procurador do PowerPoint para forjar “provas” penais inexistentes, das quais ele duvidava 48 horas antes. Atores da mise-en-scène estão obrigados a ressarcir o Erário em R$ 2,5 milhões pela perdulária “farra das diárias”, cobra o Tribunal de Contas da União (TCU). O próprio presidente agradeceu a intervenção contaminada do aparato judicial para chegar ao Palácio do Planalto, anota Pedro Serrano (Carta Capital, 07/09/2022).

Não faltou o prócer do TRF-4 para aplaudir a sentença, que não lera. Juristas redarguiram o teatro de mentiras e ineptas convicções na peça acusatória, que fechou as cortinas do espetáculo com a injusta prisão do candidato favorito à Presidência, na época. Ao Norte, acionistas das grandes petroleiras com sotaque estadunidense comemoraram a fraude que enxovalhou a soberania popular. O corregedor da Justiça/DF que pediu aposentadoria ao discordar do “tom” no discurso de posse do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, criticado por “inflamar e não agregar”, ilustra a dificuldade da plateia em entender o enredo dramatúrgico. A “sobriedade” reatualiza a proverbial tibieza dos liberais na escalada nazifascista, na Europa. Enquanto, na coxia, predadores conspiram na Web outro coup d’État contre le peuple.

A presunção de brilhantura e, ora, de pseudo equidistância baseia-se em concursos para peneirar os “melhores”. Mas a seleção não faz o que promete. A mescla de ignorância e má-fé dos felizes concursados, sobre a Carta Magna e os abusos no cargo, ficaram patentes nas inúmeras ilegalidades da Lava Jato. Um membro foi exonerado e o coordenador, forçado a pagar indenização simbólica pelo lawfare contra um inocente, Luiz Inácio Lula da Silva. A “guerra híbrida” que se utiliza da judicadura e dos meios de comunicação para eliminar governantes progressistas cruzou o Paraguai, o Equador, a Bolívia, o Brasil e a Argentina. O atentado à vice-presidenta Cristina Kirchner é um subproduto do ódio que a guerrilha legal alastra no tecido social.

Restrições de vagas à carreira são funcionais para se pleitear créditos pelo “acúmulo de trabalho”, avaliado pela pilha de processos e não pela produtividade. Os dois meses de férias são eclipsados da tortuosa narrativa para não atrapalhar a alegação infundada. As castas servem – e se servem – do Estado, de costas para a empatia com as desigualdades estruturais da nação subtraída, inscrita no mapa da fome, da ONU. Não se trata de desqualificar servidores com devoção republicana, mas focar aspirações em desarmonia com o decoro no serviço público.

O arrivismo pequeno-burguês molda a subcultura do imperativo neoliberal da “desregulamentação”. Sinecuras inventadas em unidades federativas, para engordar as contas correntes, espargem uma equalização pecuniária para o regozijo geral, em cascata. Não despertam a decência de um repúdio coletivo; recrudescem o esprit de corps com traços dinásticos. A exemplo da minoria abastada, os interesses voltam-se exclusivamente para si. A filosofia do dinheiro não resulta em eticidade. O egocentrismo faz do umbigo, o avalista. O entorno desmancha no ar. Assim como as escolas de preparação dos policiais militares não prescindem de aulas sobre “direitos humanos”, a magistratura e adjacências não prescindem de aulas sobre o “imperativo categórico” kantiano, para agir com base em princípios éticos que possam ser considerados “lei universal”.

A fonte de inspiração

O aburguesamento do habitus de juízes e promotores aproxima-os do círculo dos poderosos, que dista bastante da vivência com a diversidade étnico-social no terreno público (praças e parques). A inspiração é construída, por imitação, em condomínios fechados, escolas particulares seletivas, clubes grã-finos, viagens internacionais, restaurantes caros e carros importados para expor nas ruas a distinção social. Olhos nos helicópteros que, às centenas, cruzam o céu das metrópoles a negócio ou lazer, livre de engarrafamentos. Em casa, não raro, os livros são objetos de decoração na sala. A estética de nouveau riche recende o elitismo da revista Caras. A “elite” lúmpen (trapo, em alemão), apoia a utilização das fake news para perpetuar os privilégios.

Conforme o site Metrópoles, o núcleo trapilho compõe-se de proprietários das marcas Havan, Shoppings Multiplan, Valeshop, Grupo Sierra, Grupo Coco Bambu, Construtora W3 Engenharia, Mormaii e outras mais. Money is not everything. No WhatsApp, com linguajar chulo, quadrilheiros instigam o golpismo se acaso a “Frente Juntos Pelo Brasil”, liderada pelo PT, vencer as eleições. O rumor de botas suscitou reações negativas entre os consumidores.

Réplicas (kitsch) de Estátuas da Liberdade em lojas de varejos são sintomas da servidão voluntária de empresários saudosos do velho entreposto comercial, subordinado às potências estrangeiras. Na Terra brasilis, as privatizações do patrimônio público atestam a subserviência dos reacionários inimigos da “revolução burguesa”: inacabada, porque não logrou solucionar “a questão agrária, a questão democrática e a questão nacional”, na análise de Florestan Fernandes. Cabe, portanto, aos movimentos e partidos contra-hegemônicos completar a tarefa.

O nacionalismo que traveste os iracundos de verde-amarelo é entreguista, lesa-pátria, racista, machista, LGBTfóbico. Hostiliza o legado de Getúlio Vargas. Refuga projetos solidários de nação para erguer uma verdadeira República, que repudie as iniquidades. A burguesia brasileira tolera a democracia quando é inevitável. Odeia o povo até ao extrair a mais-valia. Na esteira do agronegócio pop, se lixa para o mercado interno. Compromete-se com um único valor, a acumulação, um fetiche comparável à renda e ao consumo para efeitos de distinção social. Esse é o centro gravitacional da “classe média baixa-alta”: dívidas da baixa e preconceitos da alta.

A preocupação das classes possuidoras concentra-se nos fundos estatais excedentes. A emenda do Teto de Gastos Públicos é o preço da violência: (a) na educação, que abrange o incerto futuro da juventude e o desenvolvimento da ciência, tecnologia e pesquisa; (b) na saúde, que envolve toda a corrente produtiva para o fortalecimento do SUS. Para não mencionar o cruel desmonte do Minha Casa, Minha Vida e o redirecionamento dos recursos da Caixa Econômica Federal (CEF) às construções de luxo, dada a alteração decorrente do impeachment nas prioridades governamentais. A traição misógina arremeteu contra a soberania do povo, sem que o Judiciário se levantasse para barrar a dissimulação com o álibi das contábeis “pedaladas fiscais”.

A luta de classes está presente no desgoverno que manifesta lealdade à “casa-grande” (os bancos, o rentismo), e esvazia os parcos órgãos ministeriais da “senzala” (o trabalho, a cultura, a agricultura familiar, o controle das áreas de preservação). Está presente na atitude de avestruz da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que se recusou assinar o Manifesto Pela Democracia, da USP. Idem, nas decisões judiciais e nos adereços de cifrões que não param de inchar os bolsos das excelências. Vêm de longe os fios que submetem sentenças à vontade de endinheirados. Não à toa, a parlamentar Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, adverte que a suspensão do piso salarial da Enfermagem por um ministro da Suprema Corte “atende a interesses privados”.

Como no esquete do Porta dos Fundos, louva-se virtudes (literárias, gastronômicas) dos sudestinos – “pena que não sabem votar”. Ou a extrema-direita não manteria um terço do eleitorado, com óbvia inserção no consórcio da beca. Escaneia-se a ausência de um projeto nacional-desenvolvimentista, de corte popular. Espelha-se o programa de três séculos de escravidão, revitalizado por think tanks sobre Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman. Para o que os tribunais e as castas da burocracia estatal têm de endossar os regramentos neoliberais. Nisto, consiste o trunfo rentável das aristocráticas categorias do Direito. Por instinto, contingentes de deslumbres temem por seu destino particular diante do acelerado esboroamento do neoliberalismo.

A meritocracia está nua

A ponta do iceberg ressurge na deliberação do deboche: a correção de 18% nos contracheques, de R$ 39,3 mil para R$ 46,4 mil, autenticada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A mídia global classificou o acinte como uma providência para contemplar a própria Corte, dada a unanimidade do colegiado. Contudo, o percentual acrescido nas folhas de pagamentos não é capaz de provocar qualquer impacto na cotidianidade dos ministros. Parece que sancionaram o reajuste para garantir o apoio das corporações ao STF e ao TSE. Alvos do ataque das bolhas neofascistas e, em simultâneo, do mandatário à testa do Executivo na luta incessante pela imposição de um regime de exceção, com a volta da censura e da tortura. A maioria das novelas não passa na televisão. A proeminência do Judiciário na cimentação do status quo financista também não.

Leonardo Avritzer, no artigo “Judicialização da política e equilíbrio de poderes”, em Dimensões Políticas da Justiça(Civilização Brasileira): “O artigo 102 instituiu a revisão constitucional como princípio, ancorando-a na tradição política. O artigo 103 fez da OAB e entidades da sociedade civil, autoras das ADIs. O inciso 58 do artigo 5°, que define a ação popular, garante a qualquer cidadão ser uma parte legítima contra o Estado, na defesa da moralidade, do patrimônio histórico e cultural e do meio ambiente”. Logo, o papel dos magistrados se expandiu.

Em tese, as prerrogativas dos juízes são diques de contenção para a barbárie do neoliberalismo e do neofascismo, desde que sublinhem, de ofício, o viés humanista da Constituição cidadã para coibir os retrocessos civilizacionais. Está sob sua jurisdição a tessitura econômica e social para celebrar uma sociabilidade não discriminatória e uma governabilidade não refém dos ricos. A separação formal entre a Justiça especializada (trabalhista, militar e eleitoral) e a Justiça comum (federal e estadual) não dissipa condicionamentos de classe de quem julga.

Discípulos da deusa Thêmis tendem a fazer do contrassenso um escudo narcísico. Simulam nulas intenções de desonra além-muros, como se estivessem sitiados na defesa da Justiça. Sitiado está o senso de injustiça pelas artimanhas dos altos salários, que violam a ética pública. O “negacionismo forense” é o verbete que falta no Dicionário dos Negacionismos no Brasil (Cepe), organizado por José Szwako e José Luiz Ratton. A autoconsciência do juízo, em tela, é uma implosão existencial. Implica admitir que “a meritocracia está nua”, qual o rei no conto, o que desnudaria os arranjos “malandros” situados no hiato da retidão e da delinquência. A imagem retórica cultivada a duras penas na publicidade institucional se quebraria em mil pedaços.

Urge, pois, uma ressimbolização dos hábitos corporativos para cumprir a missão de funcionários afirmativos da liberdade, a contento. A sedutora estabilidade vitalícia (votada pela esquerda na Constituinte) foi equivocada, gerou a sensação de uma unção divina acima do bem e do mal. O argumento de proteção à sintaxe dos “donos do poder” perdeu-se, com a validação nas relações de concordância, subordinação e ordem dos mesmos – na confraria.

A teoria do conhecimento do liberalismo clássico, ainda predominante, contribui para a alienação. O individualismo metodológico enfatiza os atributos dos indivíduos: propriedades, objetivos, crenças, práticas. As coletividades seriam o somatório atomizado de pessoas, libertas de injunções. O estorvo está em que, “onde se vê a árvore, não se vê a floresta”. No caso, se vê somente a “folha”. Uma tal epistemologia não consegue apreender a totalidade do real e deixa, do lado de fora, o construto fundamental ao entendimento das circunstâncias culturais e sociais, que encomendam a aristocracia de toga. A chave do enigma é o conceito dialético de “luta de classes”.

Compreende-se que os atos pour mettre en cause o Judiciário não se transformem em bombas midiáticas, ao revés de lamúrias esporádicas. Sem a visibilidade dos holofotes da mídia não se cria o “escândalo político”, demonstrou John Thompson, em Political Scandal (Polity Press), obra que angariou o destacado Prêmio Amalfi nas ciências sociais. O cinismo e a hipocrisia escondem os estratagemas do esquema de dominação e superexploração, em curso.

Conclusão

A “imaginação em pane” da sociedade civil nas últimas décadas potencializou a importância dos tribunais para oficializar as reformas regressivas neoliberais. O Consenso de Washington (1989) induziu a tolerância sobre os subterfúgios para enricar os salários, que condensam figuradas gorjetas para a legalização do monetarismo e a expropriação dos direitos da população. A modernização conservadora precisa constitucionalizar as novas regulações no âmbito do Estado, aprofundando as reformas trabalhista, previdenciária, tributária e a dependência externa.

A autorização tácita do Grande Irmão, o capital financeiro, que controla com rédea curta os media fazedores de escândalos, atrai parcelas significativas da magistratura para a cosmovisão das classes dominantes. “Larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição” (Mateus, 7:13). As críticas em favor de um “humanismo cívico” na direção de uma República democrática, no espaço por definição das disputas políticas (repita-se a sociedade civil), pretende acordar a consciência do sono dogmático das inebriantes benesses. Ex nihilo nihil fit / Nada surge do nada.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul