Nacional

O país passou pela Independência e pela República sem tratar das feridas deixadas pela escravização e pela colonização. Essas feridas continuam abertas, em pleno século 21

O primeiro Grito dos Excluídos, realizado em 7 de setembro de 1995, há 27 anos. Foto: Acervo Grito dos Excluídos

Este artigo foi escrito após 7 de setembro de 2022, dia em que o Brasil comemora o Bicentenário da Independência. Resolvi dar um tempo para observar a dimensão dos acontecimentos, após as “comemorações” e as diversas atividades. Considero importante refletir sobre as mobilizações políticas, principalmente as que ocuparam as ruas, que demostraram total reprovação às heranças excludentes da Independência proclamada em 1822. O distanciamento do Dia D permitiu-me também refletir sobre a ação e reação do atual presidente da República, que também ocupou as ruas e confrontou com a oposição.

A principal mobilização nacional no dia 7 de setembro é o Grito das Excluídas e dos Excluídos, que em 2022 realizou a 28ª edição com o slogan “Vida em primeiro lugar”, que se tornou permanente desde que a pandemia de Covid-19 e escancarou o descaso do governo federal com a saúde da população brasileira. Foi também destacada a frase: "200 anos de Independência. Para quem?". A intenção dessas chamadas por parte do Grito, envolvendo movimentos sociais, instituições e a população em geral, foi de demarcar que a independência aconteceu para poucos e o Brasil seguiu comandado pelos europeus (Matilde Ribeiro, 2022).

Ao longo da história as desigualdades são visíveis, e só tem aumentado – basta olhar na atualidade o número de pessoas desempregadas, subempregadas e informais; a situação de pauperização das mulheres, dos negros, dos indígenas; e a fome rolando solta.

Nesse sentido, este artigo abordará questões importantíssimas para a compreensão da realidade brasileira, a luz da história e do cotidiano, como: Invasão, Escravização e Abolição; Racismo; e 200 anos de Independência. Para quem?

Um pouco de história: Invasão, Independência, Escravização e Abolição    

O processo de chegada dos europeus em terras brasileiras, historicamente apresentado como um fato heroico, é afirmado como descobrimento. Uma das expedições realizadas pelos europeus resulta na Carta do Achamento do Brasil, escrita por Pero Vaz de Caminha, explicitando que: Águas são muitas; infindas. [...] querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente1.

Enuncia-se o que se concretizará na situação de colonização, focando dois aspectos – uma terra que “tudo dá” e a intenção de “salvar essa gente”. Iniciam-se, a partir da Carta de Achamento do Brasil, afirmações quanto às perspectivas patrimonialistas, tendo a apropriação das terras, a usurpação e escravização de seres humanos, como bens que passam a pertencer aos exploradores. Há o reforço a um posicionamento totalmente conservador, exploratório e colonizador, que sedimentou a visão do chamado “descobrimento do Brasil” (RIBEIRO, 2014).

Porém, adoto a construção dos setores progressistas da sociedade, que, em contraposição à visão do “descobrimento”, definem o começo de tudo como “invasão”. Importante se faz combater as falsidades e os apagamentos históricos, a considerar que nas terras brasileiras já viviam as/os indígenas e na sequência chegaram os africanos – que foram escravizados.

A análise crítica sobre a invasão relaciona-se com as formulações sobre os acontecimentos da Independência. Nesse processo, foi forjada a visão da Independência como um ato heroico protagonizado pelos europeus, sendo mantida a continuidade do colonialismo e da escravização, como base para a instalação de uma elite no comando político, com a exclusão e a concentração de poder na mão de poucos.

A crise do sistema colonial, encontrava-se em colapso e, em 9 de janeiro de 1822, estimulou a decisão do príncipe regente D. Pedro I de ficar no país, que declarou: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto! Digam ao povo que fico!” Esta, então, é a data considerada como o Dia do Fico, quando foi marcada a adesão do príncipe aos ideais libertários e que colaborou com luta pela independência.  No dia da Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I realizou viagem de Santos para São Paulo e às margens do Riacho do Ipiranga, onde bradou: “Independência ou Morte”, frase que também ficou conhecida como o Grito do Ipiranga.

Diante da nova realidade, em um país escravocrata e monocultor, o príncipe-regente realiza as adaptações necessárias para a instauração e funcionamento do seu governo. Assim, reestrutura o plano político, econômico, jurídico e cultural, realizando modificações, que, apesar de destoarem da realidade da Colônia e contemplarem apenas a elite dirigente, vão contribuir para a formação de uma nova realidade, porém mantendo o escravismo. Os negros escravizados e parcialmente os libertos foram totalmente excluídos do processo da independência e dos seus desdobramentos.

Os africanos escravizados não eram invasores, segundo Abdias do Nascimento (1980) eram imensidões de seres humanos que “nunca foram tratados como iguais pela minoria branca que completa o quadro demográfico do país, mesmo nos dias de hoje. Essa minoria manteve um exclusivo monopólio do poder, bem-estar, saúde, educação e renda nacionais” (p. 149).

No sistema imposto, a situação das mulheres escravizadas era de penúria, eram pau para toda a obra, a serviço da Casa Grande. Escravas/os não eram pessoas a serem consideradas, não tinham os direitos civis básicos e, em casos extremos, à própria vida. De maneira geral, incluindo homens e mulheres, segundo José Murilo Carvalho (2002) as atividades exercidas pelos escravos como carregadores, vendedores, artesãos, barbeiros, prostitutas, e resume que: “era tão grande a força da escravidão que os próprios libertos, uma vez livres, adquiriam escravos. A escravidão penetrava em todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade: a sociedade colonial era escravista de alto a baixo” (p. 20).

Alguns anos antes da abolição foram sendo efetivadas leis que trouxeram características emancipacionistas como, a Lei do Ventre Livre; e, a Lei dos Sexagenários, a lei de proibição do Trafico Atlântico. Constata-se que a abolição foi produto de um moroso e fragmentado processo de liberação dos escravos, sendo crescente a saga da exclusão.

Refletindo sobre as possibilidades de saídas da condição de escravização, Ricardo Lara e Jonaz Gil Barcelos (2020) recuperam que a escravidão não foi vivida de forma passiva por parte do negro escravizado, “que por meio de sua rebeldia colocou-se como um sujeito na luta, seja através das fugas, das formações de quilombos, dos assassinatos, dos suicídios, dos infanticídios, e de tantas outras formas de insubordinação” (p. 211). As fugas e denúncias de castigos corporais e longas jornadas de trabalho abalavam o domínio escravista e provocavam a autoridade senhorial.

A partir de 1887, as fugas de escravos, a radicalização do movimento abolicionista, o início da chegada de trabalhadoras/es imigrantes. Com o passar do tempo, manter o trabalho forçado mostrava-se mais caro que o assalariado, considerando que seu preço aumentou após o fim do tráfico. Nesse contexto, a abolição como uma necessidade urgente foi acelerada também pela combinação da inserção do Brasil na economia mundial vigente com a escravização e a chegada dos primeiros imigrantes europeus. Os imigrantes tornaram-se os principais trabalhadores, substituindo aos poucos os negros escravizados. Vieram para o Brasil um grande número de italianos, portugueses, alemães e espanhóis.

Para Renisia Felice e Deborah Silva Santos (2010), no período pré-abolição, a escravidão foi se reconstituindo e os negros livres formaram coletivos heterogêneos, com pessoas de “várias origens, habilidades, graus de aculturação e cores, podendo sofrer com incapacidades legais e ultrajes, sujeitas não só à coerção legal e ilegal como também a serem tratadas com desprezo, mas seu status era infinitamente melhor que a dos cativos” (p. 219).

A Abolição da Escravidão ocorrida em 13 de maio de 1888 (por meio da Lei Áurea – nº 3.353) e a forma elitizada de estruturação da ideia de nação brasileira caracterizam a doutrina da supremacia racial e do racismo. A abolição foi a primeira manifestação coletiva a mobilizar pessoas e a encontrar adeptos em todas as camadas sociais brasileiras. Mas após a assinatura da lei, não houve uma orientação destinada a integrar os negros às novas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado, isto é, no capitalismo em sua fase inicial e na sequência com muitos avanços, com muitas contradições.

Carvalho (2002) indica que a abolição foi a única revolução social vitoriosa no Brasil, mesmo considerando “a contradição essencial da antiga formação social brasileira, na Colônia, no Império e na República Velha, mesmo quando citado, o trabalhador escravizado foi ignorado como categoria explicativa do passado pré-1888” (p. 20).

Em tempos posteriores a abolição, com a instalação das primeiras indústrias, segundo Lara e Barcelos (2020), era muito difícil a aceitação dos negros “nas cidades, nas fábricas e manufaturas, confirmando a existência de práticas segregacionistas que colocavam o negro no patamar mais baixo da escala social, fazendo deles uma força de trabalho reserva da reserva” (p. 213).

Os mandantes da elite souberam planejar como seria o pós-Abolição, negando aos ex-escravos terras e acesso a moradia, educação e tudo que pudesse significar qualidade de vida. Houve a predileção para a entrada de imigrantes que foram chegando aos poucos e instalando-se de maneira ampla. A equação final é que a abolição aboliu, mas não incluiu; isso significou que o poder político da época deixou à deriva os ex-escravos. A Abolição da Escravidão, embora almejada pelos que viviam a condição de escravizados e seus aliados abolicionistas, foi um projeto desenvolvido pela elite da época: a Abolição da Escravidão não veio acompanhada de medidas de inclusão dos ex-escravos/as como cidadãos; tampouco contou com políticas voltadas à educação, moradia e trabalho, objetivando a inserção social.

Com a consolidação da abolição, extinguiu-se a monarquia. Um ano após a Abolição da Escravidão deu-se a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, quando foi organizado um golpe militar. D. Pedro II e a família real partiram, então, para a Europa em exílio. Os latifundiários conquistaram de vez o direito de opinar e influenciar na Constituição. Em 1891, nasciam a Constituição e uma nova forma de perpetuação dos mais ricos no poder: o chamado voto de cabresto, em que os coronéis ditavam as leis diante de um novo texto constitucional.

É importante registrar que o país passou pela Independência e pela República sem tratar das feridas deixadas pela escravização e pela colonização, confirmando mais uma vez que os interesses dos “poderosos” não estiveram voltados ao conjunto da população, e sim para as elites e seus seguidores. Fundamental ainda é constatar que essa ferida continua aberta, em pleno século 21.

Os processos históricos a luz do racismo

É importantíssimo frisar que a escravidão não nasceu do racismo, pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão. Distintos interesses sustentam as relações sociais, nas quais a luta pela superação do racismo e do machismo passa pela supressão das classes, devendo fundir raça e classe. Nesse sentido, a questão racial deve ser vista como centro da estruturação social, a transformação em direção a uma sociedade mais justa e igualitária, não necessariamente suprime o racismo, mas deve trazer implícito que nenhuma luta que almeja promover mudanças substanciais nas relações sociais possa prescindir dessa difícil construção.

Ao longo dos 200 anos pós-Independência, ocorreram mudanças significativas no desenvolvimento do país – que deixou de ser rural, agrário e escravista e se transformando em urbano e industrial. Desde o início da industrialização, agregou intensamente a mão de obra imigrante, em detrimento dos locais, entre eles os negros, os indígenas e as mulheres. No processo de desenvolvimento, ocorrem avanços e retrocessos – sociais, econômicos, ambientais, raciais/étnicos, de gênero e de democracia. As instabilidades ocorrem a partir da má-distribuição da riqueza e da concentração de poder, o que faz do Brasil um dos países mais desiguais do planeta.

Do ponto de vista dos direitos humanos, inclusão social e racial, o Brasil não tem grandes motivos para comemorar seu passado institucional – a colonização, a escravização, a Independência, a Abolição da Escravidão e a República, entre outros.  Esses eventos e situações foram tratados pelas elites sem dar importância para o conjunto da população, mantendo a escravização combinando com o genocídio das/os indígenas e a subalternização das mulheres.

O historiador João José Reis (2000) alega que, “se o Brasil aprendeu a não ter vergonha do lado negro de sua cultura, se o samba virou símbolo de identi­dade nacional, não aconteceu, em paralelo, um esforço do país em promover social e economicamente seus cidadãos negros e mestiços” (p. 96). Com isso, a cor da pele passa a ser um critério determinante de valor social, que seleciona a entrada no merca­do de trabalho, impõe baixo nível de escolaridade, enfim, define que lugar o ser humano ocupa na estrutura social.

As formulações de Reis (2000) relacionam-se com elaborações de Mário Theodoro (2022), nas quais é enfatizado que a desigualdade é profunda e contínua, pois o racismo, como fator de organização e estruturação das relações sociais, gera: “a pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade, que são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil e têm raízes na questão racial” (p. 15).

No processo histórico brasileiro, sempre houve a contestação as disparidades sociais-raciais. Porém, no século 21, já no desenvolvimento da terceira década, completados 134 anos da Abolição da Escravidão o racismo ainda está vivíssimo, mesmo com incessantes vozes chamando por justiça racial, social, econômica e política. É nesse contexto que se desenvolveram as mobilizações por liberdade de direitos, com forte ênfase na condição de escravização da população – o que credencia o movimento negro como uma das primeiras organizações sociais desde a colonização.

As amarrações dos fatos históricos, com a reação da sociedade por meio da pressão para formulação de leis e referências que visem o enfrentamento às discriminações, desigualdades e a superação do racismo, lançam luzes sobre a Constituição Federal Brasileira (CF), de 5 de outubro de 1988, denominada como Constituição Cidadã, que expressa: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei” (Artigo 5º). Visando a promoção do bem de todos, prevê-se uma sociedade “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Importante formulação se deu com a definição de que a “lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais” e reconhece o direito dos quilombolas às suas terras (Artigo 68 – Ato das Disposições Transitórias).

Mesmo com limites e morosidades na implementação das medidas definidas, a CF é uma das mais avançadas do mundo. Essas são as críticas mais gerais em relação ao Estado brasileiro, elaboradas pelos movimentos sociais e demais setores organizados. A ênfase das críticas enfatiza que o conjunto das necessidades humanas da população negra (abarcando os aspectos das desigualdades e discriminações históricas) deve ser reconhecido como importante, tornando-se conteúdo para as políticas públicas.

Um importante documento auxiliar a CF é o Estatuto da Igualdade Racial – Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que expressa legítimas demandas da população negra e se constituindo numa importante medida para que as desigualdades raciais sejam reconhecidas e abordadas em diferentes esferas de governo.

Do ponto de vista formal, na Constituição e no Estatuto, foram apresentados avanços no que se refere à questão racial e também assegurados os princípios dos direitos humanos, relações de gênero, com a consideração da pluralidade racial, étnica e cultural do povo brasileiro. Apresenta-se a necessidade de ampliação das questões econômicas, sociais e raciais, que compõem o complexo leque de problemas nacionais.

Dando vazão à perspectiva de ampliação dos radares dos direitos humanos, Dalmo de Abreu Dalari (2008) demonstra que houve avanço na conscientização das pessoas e dos povos, ampliando a crença de que “para superar as resistências, cada um de nós deverá ser um defensor ativo de seus próprios direitos humanos. E, por imperativo ético, mas também para defesa de seus próprios direitos, todos deverão ser defensores dos direitos humanos de todos” (p. 11).

Têm sido crescentes os protagonismos sociais e políticos do Movimento Negro e organização de Mulheres Negras, em âmbito nacional. Expressando-se a partir de diversas correntes de pensamento e de ação política, visando à superação do racismo e do machismo, os pontos de convergência são os confrontos institucionais e no cotidiano.

É extremamente importante que para entender a realidade nacional é necessário o aprofundamento dos conhecimentos sobre os processos de colonização e de escravização. E, ao buscar conhecer esses os processos históricos torna-se perceptível a condição de vinculação com a realidade atual, uma vez que passado e presente se interligam, pois os negros, os indígenas e, entre eles, as mulheres são os mais pobres entre os pobres.

Necessário se faz, também, na busca do estabelecimento do antirracismo, conhecer melhor a junção dos efeitos do racismo e do capitalismo. A via antirracismo (que em épocas passadas não era assim denominada), desde a abolição, é feita pelo Movimento Negro e organização de mulheres negras, mas devemos entender que é uma tarefa de toda a sociedade, pois a superação do racismo e da desigualdade trará resultados positivos para todas/os brasileiras/os.

 200 anos de Independência. Para quem?

O início desse item parafraseia a chamada do Grito das Excluídas e dos Excluídos em 2022, dada a sua contundência2. Antes de avançar na exposição e reflexão sobre as manifestações populares realizadas no dia da Independência, é interessante buscar informações sobre o os posicionamentos do presidente da República nas manchetes das primeiras páginas dos principais jornais do país:

- Em 7 de setembro: “Bolsonaro chega a Dia D de sua campanha com ataques ao STF” (O Estado de S. Paulo); “Bolsonaro busca o uso eleitoral do Sete de Setembro, adversários reagem (O Globo); e, “Bolsonaro faz do 7 de Setembro aposta eleitoral e provoca STF” (Folha de S. Paulo);

- Em 8 de setembro: “Bolsonaro faz comício para multidões, fustiga pesquisas e ignora o bicentenário” (O Estado de S. Paulo); “Bolsonaro faz do 7 de setembro um ato eleitoral, rivais acusam abuso de poder (O Globo); e “Bolsonaro captura 7/9 com ameaça, machismo e comícios” (Folha de S. Paulo).

As manchetes do jornal expressam posturas e atitudes autoritárias, retrógadas e reacionárias do atual presidente da República, não respeitando um momento público carregado de simbolismos que denotam posicionamentos coletivos de nacionalidade.

Compreende-se que para fazer valer justiça histórica, em 2022, o “Bicentenário da Independência do Brasil” contribuiu para evidenciar as trilhas da construção de um país que foi saqueado em suas riquezas e podado em sua autonomia e potencial de desenvolvimento, devido às posições e aos fazeres da elite, que sempre arquitetou formas de garantir não apenas a sua sobrevivência, mas a condição de manter as estruturas políticas, econômicas e institucionais em suas mãos.

É importante resgatar que entre as motivações que levaram à escolha do dia 7 de setembro para a realização do Grito das Excluídas e dos Excluídos está a de fazer um contraponto ao Grito da Independência. O primeiro Grito foi realizado em 7 de setembro de 1995, há 27 anos. Consolidando-se como um momento de luta por direitos, uma manifestação popular carregada de simbolismo, que integra pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos.

A proposta do Grito é superar um patriotismo passivo em vista de uma cidadania ativa e de participação. O Dia da Pátria – 7 de Setembro, além de festivo e de celebrações, tornou-se também referência de consciência política de luta por parte do movimento social3. Essa atividade tornou-se um alento para os setores progressistas e de esquerda, como demarcação de um campo de luta contra os ditames elitistas da instituição da Independência do Brasil, a partir de ações de enfrentamento importantes contra o discurso oficial do Estado brasileiro, denunciando as várias formas de desigualdades e apontando qual o real papel do Estado diante de tanta exclusão.

Nos 27 anos de existência – O Grito tem garantido coerência, diante de um projeto coletivo e continuado, que fincou bandeira em defesa da democracia com o propósito de dar voz à maioria da população que foi excluída de uma participação ativa no desenvolvimento da sociedade – como foi o caso dos africanos escravizados e seus descendentes, dos indígenas, das mulheres, das/os trabalhadoras/es, vitimadas/os pela desumanização, desrespeito e apagamento histórico.

Cada vez mais, as entidades e os movimentos de defesa e promoção de direitos vêm investindo na atividade como forma de denunciar o modelo de desenvolvimento e crescimento econômico que resulta em desigualdade social, miséria, violência e devastação ambiental4. Tem sido fortalecido o sentido do Grito das Excluídas e dos Excluídos como uma sedimentada manifestação em todo o território nacional. As vozes coletivas são sempre muito contundentes, demonstrando reivindicações de soluções imediatas para um dos piores momentos da crise econômica e social do país. Os manifestantes repudiaram as ameaças golpistas do atual governo federal.

O jornal O Grito dos Excluídos e das Excluídas (edição de set./out. de 2021) traz uma sessão com a pergunta: “O que nos motivou a gritar em 2021?”. São diversas as respostas, das quais quatro serão destacadas: A cultura do ódio disseminada pelo governo federal e por seus aliados que ataca e provoca o desmonte dos direitos sociais, a carestia e a fome que atingem as camadas empobrecidas da população.

Em 2022, ocorreram demarcadas manifestações de protestos, contestações e chamamentos para mudanças, diante do tom festivo e agressivo imposto pelo governo federal. Por fim, o Grito das Excluídas e dos Excluídos mantém o louvável posicionamento de lançar luzes às persistentes lutas da classe trabalhadora, pela vida com dignidade, direitos e justiça. As relevâncias democráticas são construídas a partir de contingências históricas e políticas, portanto, a efetiva mudança é possível.

Questões do agora e do futuro

Diversos passos políticos cujas informações fidedignas foram silenciadas, ocultadas ou negadas devem ser reafirmados e relembrados pelo valor histórico e transformador, como as lutas: pela libertação das/os escravas/os (o abolicionismo); pelo voto das mulheres; pelos direitos das/os trabalhadoras/es; pelas políticas públicas – educação, saúde, trabalho, moradia; pelo fim do racismo, machismo e LGBTfobia entre tantas.

As desigualdades históricas e o atual momento de crise econômica, social, política, cultural e sanitária tornam os pro­cessos organizativos da sociedade civil complexos, causando a necessidade de firmeza de propósitos, redefinição e ressignificação de estratégias de luta e continuidade da ação política, entre ou­tras medidas visando romper barreira em âmbitos local, regio­nal, nacional e internacional.

São necessários a reanimação política criativa e o reposicionamento das forças populares e progressistas, que historicamente lutam contra o modelo capitalista. Como oposição aos agravos e desmandos nesse país em continuada crise, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil – outro mundo é preciso, outro Brasil é necessário, elaborado pela FPA – Fundação Perseu Abramo, em setembro de 2020 apresenta a formulação de que há a extrema urgência de no Brasil ser retomado o caminho de atenção às necessidades da classe trabalhadora, voltando-se ao investimento na melhoria de qualidade dos serviços públicos, em especial os de educação e saúde. Assim, os serviços e os gastos com seu custeio poderão não “apenas melhorar a qualidade de vida do povo que deles depende, mas também gerar renda e empregos em grande escala. Ademais, tais investimentos são fundamentais para a soberania nacional, a segurança sanitária e a autonomia científica e tecnológica” (FPA, 2020, p. 44).

As contradições e construções históricas nacionais e internacionais estão “postas sobre a mesa”. Portanto, após o dia 7 de setembro de 2022, passando pelo Bicentenário da Independência, as instituições, pessoas e coletivos progressistas e de esquerda devem na prática de ações políticas, enfatizar a defesa das necessidades e dos direitos da classe trabalhadora, da reconstrução e do desenvolvimento do país. Necessário se faz reforçar as lutas cotidianas para garantia de direitos democráticos e justiça social, fortalecendo a utopia de ampliação das conquistas, e, acima de tudo, investir em mudanças estruturais.

Matilde Ribeiro é doutora em Serviço Social recebeu título de Doutora Honoris Causa pela Fundação Universidade Federal do ABC (UFABC). Professora no Instituto de Humanidades/Área de Pedagogia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) em Redenção/Ceará. Ex-ministra da Secretaria Especial de Política Promoção da Igualdade Racial (Governo Lula 2003/8).

 

Referências

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