Cultura

Elifas Andreato desenhou a fisionomia da música popular brasileira. Com seu traço, deu uma cara a ela. Aos seus artistas, cantores ou compositores

I.

Despedi-me do espaço mágico pensando na cor das palavras. Onde encontrar palavras para narrar aquele encontro? De onde emanava a força seminal que emergia dele? Tudo fora marcado pelas cores, pela imaginação criadora de um bruxo sublime que se movia entre papéis, cavaletes, traços, esboços, pincéis, sonhos... e pesadelos. Votado há décadas a refletir e retratar a fisionomia do seu país, a beleza, a dor e a resistência de sua gente à opressão e à tirania. Levava comigo protegido por um canudo de papelão um pequeno tesouro que recebi de suas mãos. Era o exemplar de um cartaz impresso em papel couché, traçado com a simplicidade de um clássico: estendido sobre a mesa contemplo na base de um recorte retangular, o rosto de Elis Regina – uma paixão partilhada – sob a máscara de um palhaço, aplicada sobre o fundo negro, iluminada desde o alto pelo círculo brilhante da lua... Não estou seguro se deixei com ele uma cópia do poema “A Segunda Morte de Elis Regina”ou se apenas comentamos essa identidade de afetos. Mas me recordo que Elifas havia instituído para si próprio um compromisso: fazer do 19 de janeiro um marco da memória coletiva para confirmar e estender às gerações seguintes a passagem de uma das mais importantes vozes da história da canção popular brasileira. Uma voz identificada com a resistência à ditadura e à censura que sufocavam a criação e a difusão cultural do Brasil durante os anos de chumbo. Mas havia também, para além do reconhecimento da dimensão política, no sentido mais elevado, da resistência cultural cantada ao longo da vida por Elis, uma dimensão profunda de identificação e afeto estampada nas capas de discos ou nos cenários concebidos por Elifas para espetáculos que ela protagonizou. Recupero aqui para o leitor alguns versos do poema “A Segunda Morte de Elis Regina”(incluído no livro Inventar o Fogo, 1986), que buscam capturar o significado da súbita ausência e do vazio que nos tragou:  (...)“Nesta manhã o Arrastão não trouxe aos meus ouvidos tua voz de mar dilacerada. Chegou apenas o sal (do mar? das lágrimas?) retido aqui e ali nas malhas desta súbita solidão.”   (...) “E o morro cantou, extraviado de toda alegria, a tristeza mais funda        tristeza de amar – porque tristeza, Elis é só o que se tem pra cantar...   Estão paradas as esquinas do meu país,     Elis, partiu-se a corda do violino que nos velava e os negrinhos sem estrada ou paradeiro deixam cair dos viadutos flores inventadas em papel e sonho sobre o cortejo.”   (...) “Cantou o país,     Elis, incerta canção, a meio caminho entre teus lábios mudos e o nosso coração.   De dor em dor como em degraus, de boca em boca, tua voz recuou até submergir na sombra maior do silêncio.” É possível dizer que, de algum modo, Elifas Andreato desenhou a fisionomia da música popular brasileira. Com seu traço, deu uma cara a ela. Aos seus artistas, cantores ou compositores. Do labor silencioso de suas mãos nasceram flores, estrelas no rosto de Clara, Clementina, Elis, nos pés de Martinho da Vila, nos olhos de Chico, Gil, Milton, Paulinho da Viola, Adoniran. No rosto concentrado de Rolando Boldrin, caipira alheio ao tempo, picando fumo, resgatado da tela de Almeida Júnior, todos amigos seus... uma imensa galeria que cumpre um objetivo inseparável da grande arte: produzir espanto, comover para fazer pensar. A obra gráfica de Elifas Andreato, mais do que registrar, confere sentido às lutas que os criadores da cultura brasileira com seu labor travaram contra o obscurantismo e a bestialidade da tirania, sem perder um traço característico da formação social e cultural do nosso povo: uma irremovível crença de que, apesar de uma história marcada pela violência, podemos ser melhores e mais dignos, capazes de superar a miséria que nos rodeia e derrotar a elite escravocrata que nos oprime. Podemos mesmo, aqui e ali desembarcar, ainda que por um breve tempo, ao longo da história, em momentos de liberdade. E então construir com nossas mãos, dias e noites de esperança, alguma prosperidade, beleza e alegria. Ainda não é possível mensurar a extensão dessa perda para o país, para a cultura, portanto, para a alma do Brasil, como a definia Celso Furtado, ao lembrar que “A economia dá conta do desenvolvimento material do país. É a cultura que dá conta do nosso desenvolvimento espiritual”.  Esse é o Brasil – o Brasil de Elifas Andreato – que desejamos recobrar na luta contra a expressão medonha do neofascismo, que travamos hoje.

II.

Busco com esse breve exercício recompor – dentro dos limites impostos pela distância e por minha própria percepção – alguns significados da trajetória de Elifas Andreato para a resistência cultural da minha geração. Afinal, “O que somos nós, senão bandeiras?” lançadas de uma a outra geração ao longo da história? Elifas recortou seu perfil na circunstância histórica de um país – e seus artistas – duplamente submetido. À opressão política sobre o conjunto da sociedade que, não raro levou à morte dos opositores, e à perseguição violenta do Estado sobre a atividade criativa e simbólica. Uma expressa pelo aparato militar-policial, outra, pela ferocidade da censura e pelas exigências de pasteurização da criatividade impostas por uma indústria cultural retardatária. Contrapor-se a esse duplo condicionamento era o desafio permanente dos trabalhadores do simbólico, dos criadores de cultura portanto, ao longo de todo o período da ditadura civil-militar. Operário da Fiat Lux, empresa fabricante de fósforos, Elifas veio de Rolândia, do barro vermelho do norte do Paraná para a metrópole. Com o tempo entendeu as oportunidades que surgiram em razão do seu talento, como estímulos para aperfeiçoar seu potencial criativo, o que o levou a aproximar-se dos movimentos que combatiam o regime militar até convertê-lo num militante da resistência cultural. Concebia e confeccionava como um artesão, cartazes para os movimentos e sindicatos ao longo dos anos da resistência contra a repressão brutal da ditadura (1964/1988). Sua mão invisível estava nas páginas, às vezes nas capas das edições do Opinião e do Movimento, tabloides da imprensa alternativa ou da revista Argumento que combatiam a desinformação sistemática imposta pelos generais. Não poucas vezes censurados antes de sair das redações, em outras, apreendidos nas bancas de jornal. De algum modo Elifas conseguiu expressar nas artes visuais sob uma tirania tropical, num país distante e absurdo o “Encargo social” concebido por Maiakovski para, nas letras, desafiar a “velha poesia” e responder aos imperativos da Revolução de Outubro. Alcançou fazer de sua arte, dotada de um elevado padrão estético, uma tradução visual impactante de anseios coletivos naquele momento histórico. Elifas soube associar ao recorte de classe impresso em sua obra como um caráter, desde suas raízes, uma peculiar sensibilidade às expressões do “nacional-popular” – no sentido de Gramsci –   características da resistência cultural brasileira daquele período, para contrapor-se, mobilizando uma estética inovadora, ao ambiente sufocante que prevaleceu durante os anos de chumbo. A sensibilidade do artista conferiu-lhe uma capacidade de encontrar soluções estéticas criativas para escapar, nem sempre com sucesso, é verdade, aos controles da censura, proteger sua liberdade de criador de peças inesquecíveis, manter-se fiel à resistência democrática e depois da derrota da ditadura, até o fim da vida, confirmar seu compromisso com os oprimidos. Derrotada a ditadura, nos anos da reconstrução democrática, produziu experiências inesquecíveis como o Almanaque, publicação de bordo da TAM. Cada edição era um mergulho inteligente, bem-humorado na história, na cultura, no pensamento desse território que foi sua paixão permanente: o Brasil. O povo brasileiro.

III.

Durante os anos de chumbo, poucos gestos de coragem obtiveram a repercussão do culto ecumênico celebrado na Sé, nos últimos dias de outubro de 1975, para denunciar o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelo DOI-Codi do II Exército, então comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o reverendo evangélico Jayme Wright oficiaram a cerimônia. Sobel havia se negado a sepultar o corpo de Herzog na área destinada aos suicidas, no cemitério israelita de São Paulo. Um gesto que, em si mesmo, contestava a versão de “suicídio” que a ditadura tentava impor às redações dos jornais e à sociedade. A edição do jornal Movimento foi sumariamente censurada. Na capa, desenhada por Elifas, estava impresso o rosto do jornalista que se apresentara na Rua Tutoia com Tomaz Carvalhal 1030, onde operava o DOI-Codi, o endereço da morte, atendendo à intimação do II Exército. Dias depois a fotografia macabra de um homem com os joelhos dobrados pendurado pelo pescoço dentro da cela, circulava pelos meios de comunicação. A expressão artística de Elifas Andreato contribuía naquele momento para traduzir “em tempo real” o drama de Wladimir Herzog e conferia sentido simbólico àquela morte para além do assassinato de um homem cujo papel social – informar – se nutria de uma conquista fundamental das sociedades contemporâneas, desde a Revolução Francesa: a liberdade de expressão. Mais tarde, a tela 90x90cm doada ao Sindicato dos Jornalistas de S. Paulo, em 1981, para guardar a memória do assassinato do jornalista lançava aos nossos olhos a luz crua, implacável de Guernica com que Picasso denunciou e estigmatizou a violência do nazismo e do fascismo franquista durante o século 20. A inspiração foi recolhida por Elifas para expor o corpo brutalizado de um prisioneiro. A tela evoca, no seu abandono, um deus morto repousado no colo da pietá. Mas aqui, flagrado no momento mesmo do suplício, o colo não é o da piedade da mãe diante da dor do filho, é a própria cadeira do martírio. No cartaz do espetáculo “Mortos sem sepultura”, peça escrita por Sartre nos anos 40, para denunciar o nazismo, montada e dirigida por Fenando Peixoto, no teatro Maria Della Costa, naquele período, Elifas estampou o “pau-de-arara”, herança das técnicas de suplícios dos tempos da escravidão, instrumento predileto atualizado pelos torturadores que operavam as oficinas da morte, nos subterrâneos do regime (1964/1988) e encontrável ainda em muitas delegacias de polícia nos subúrbios do país, pronto para ser acionado contra negros e pobres. No final daquela noite, caminhei por uma rua, até onde me socorre a memória, entre Monte Alegre e Cardoso de Almeida, no Baixo Perdizes. Tomei um táxi para o aeroporto. De regresso à minha casa, em Goiânia, onde vivia, enquadrei o desenho e o fixei na parede, na cabeceira da cama de minha filha, Ana Terra, para que, de alguma forma a iluminasse. Iluminou.

IV.

Em 2019, quase quatro décadas mais tarde, nos falamos por zapp.  Pedi-lhe autorização para utilizar a reprodução de algumas telas como páginas de abertura dos contos de “Pesadelo: narrativas dos anos de chumbo”. Respondeu apenas: – “Escolha”. E ainda se dispôs a orientar o companheiro Rogério Chaves, nosso inestimável coordenador editorial, na busca das peças escolhidas para obtê-las em alta resolução e assegurar a qualidade da impressão. O resultado se materializou na primorosa coedição da Autonomia Literária/ Fundação Perseu Abramo, 2019. A trajetória de Elifas Andreato sintetiza, de algum modo, num plano elevado, como poucos, a realização da arte como expressão profunda da experiência humana, por obra do trabalho, da sensibilidade, do talento e do compromisso do artista capaz de condensar num esboço, num desenho, numa tela as múltiplas dimensões dos dramas e esperanças de seu povo. Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo