Economia

Desafios da integração regional na América Latina, tendo em vista a perspectiva de que o Brasil voltará a atuar de forma construtiva em relação ao seu entorno

Publicação da série Textos para Discussão - Economia e Desenvolvimento (pdf aqui)

A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados. Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem, hoje, situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país. O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina.”

Pronunciamento do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão solene de posse no Congresso Nacional (01/01/2003)

O Brasil reitera com veemência e firmeza a decisão de associar seu desenvolvimento econômico, social e político ao nosso continente. Podemos transformar nossa região em componente essencial do mundo multipolar que se anuncia, dando consistência cada vez maior ao Mercosul e à Unasul.

Pronunciamento da presidenta da República Dilma Rousseff, na sessão solene de posse no Congresso Nacional (01/01/2011)

Apresentação

O objetivo deste texto é o de suscitar o debate sobre os principais desafios da integração regional na América Latina no atual momento histórico, tendo em vista a perspectiva de que o Brasil voltará a atuar de forma construtiva em relação ao seu entorno. A discussão tem início com o diagnóstico sobre as consequências da opção feita pelo governo brasileiro nos últimos anos não só de se isolar, mas também de contribuir ativamente para a fragmentação política da América Latina e sua desintegração econômica e comercial. Em seguida, o texto considera o quadro internacional específico de rivalidade sino-americana em que a região se insere e a necessidade da liderança brasileira para fomentar o processo de integração na pluralidade política da América Latina. São apresentadas, em seguida, medidas para retomar e modernizar instituições regionais, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a União das Nações Sul-americanas (Unasul) e Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Finalmente, articulam-se alguns elementos da integração regional à agenda da recuperação econômica pós-pandêmica e à construção de uma nova trajetória de desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável para o Brasil e região, como: comércio, financiamento, infraestrutura de transporte e energia, meio ambiente e transição energética e defesa.

1. Diagnóstico e principais desafios da integração latino-americana

Pelas suas condições geográficas e culturais, o destino do Brasil está irrevogavelmente atrelado ao da América do Sul, Latina e Caribe. Desde a cooperação da Amazônia à necessidade de um mercado energético regional, cabe aos governos articular a circunstância territorial com suas prioridades políticas. Está na Constituição Federal que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. A prioridade da política externa continua sendo a América do Sul, mas a agenda deve ser renovada.

Os grandes objetivos do país e do governo Lula, como a garantia da inclusão social, a diminuição das desigualdades, a defesa da biodiversidade e de alternativas ambientalmente sustentáveis, bem como o desenvolvimento tecnológico e da competitividade logística, podem ser mais adequadamente consolidados se realizados de forma articulada com os países vizinhos. O Brasil não é uma ilha e não deve estar isolado.

No período recente, observa-se a condução da política externa brasileira em direção contrária ao dos seus princípios. O Brasil se retirou de importantes espaços regionais, como a Unasul e Celac, que visavam a concertação política e apostou pela fragmentação, desintegração e divisão da América do Sul e América Latina. Os resultados desta aposta foram um Brasil mais ausente e uma região mais desarticulada para encarar importantes desafios, como a crise climática, a Covid-19, a insegurança alimentar, a desintegração econômica. Portanto, é necessário que o Brasil resgate sua vocação regional e seja atuante na defesa de temas de interesse do país e da região como um todo.

Durante os governos Lula e Dilma, foram feitos esforços importantes na região cujos resultados foram benéficos ao Brasil. Propõe-se para o futuro imediato, que o Brasil volte a fomentar a Integração na Pluralidade. Também por ser baixa a possibilidade de predominância absoluta de governos de uma mesma orientação político-ideológica na América do Sul nos próximos anos, os espaços para o diálogo e a concertação regional devem ser fortalecidos considerando fortemente a diversidade política e a pluralidade de agendas.

Deve haver um esforço sistemático para que participem todos os países, como ocorreu na primeira Cúpula de Presidentes da América do Sul em 2000 e na assinatura do Tratado Constitutivo da Unasul em 2008, ambos ocorridos em Brasília. Atualmente, o contexto é de forte polarização multinível (dentro do Brasil e de nossos vizinhos, entre os países da América do Sul, e entre as principais potências globais). Uma região fragmentada politicamente e desintegrada economicamente exigirá um grande esforço de concertação que deve incluir agendas de setores que não se beneficiaram com o Mercosul e a Unasul nas décadas passadas.

A pandemia não criou novas tendências regionais, mas acentuou movimentos de desintegração econômica e fragmentação política que vinham desde meados da década de 2010. O caso da participação do Brasil na Celac é ilustrativo da crise da integração regional e do autoisolamento brasileiro. A última Cúpula de Presidentes havia sido realizada em janeiro de 2017 e quando veio a pandemia a organização não conseguiu dar respostas a tempo. As discussões sobre as respostas conjuntas à pandemia só ocorreram em setembro de 2021, quando o México liderou sua reorganização e conseguiu realizar nova Cúpula Presidencial, da qual o Brasil foi o único país da América Latina e Caribe que não enviou representantes.

A desconstrução da governança regional prejudicou a América do Sul durante a pandemia. Fomos uma das regiões do mundo que mais sofreu em termos de saúde pública e a que tem enfrentado mais dificuldade para recuperar-se economicamente com inclusão social. Em ambos os casos os efeitos negativos sobre a saúde poderiam ter sido amenizados com o Conselho Sul-Americano de Saúde (CSS) e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags) e a recuperação econômica seria mais eficiente com uma agenda compartilhada que envolvesse, por exemplo, investimentos regionais em infraestrutura.

Desde 2017, a agenda de governança regional que incluía a totalidade dos países, cujo maior exemplo era a Unasul, foi substituída por iniciativas fracionadas, como o Fórum Prosul e o Grupo de Lima, com ausência de institucionalidade e pouco (ou nenhum) resultado concreto. Houve significativa redução dos temas a serem tratados no âmbito regional (dos 12 Conselhos Setoriais da Unasul a 6 Áreas Temáticas do Prosul) e dos países participantes (12 países da Unasul para 8 países do Prosul), e a baixa institucionalidade não garantiu mecanismos de continuidade dos compromissos. O acervo da integração não foi preservado e, por começar do zero, a consolidação das agendas de trabalho só ocorreu 1 ano e meio após a criação do Prosul.

Em resumo, o diagnóstico atual é de uma América Latina e Caribe fragmentados politicamente e desintegrados economicamente. A possibilidade de superar esse cenário é hoje mais provável em virtude das recentes vitórias eleitorais de forças progressistas no Peru, no Chile, na Colômbia e em Honduras. Mas há, igualmente, uma renovada demanda pelo retorno do Brasil ao cenário regional, como força aglutinadora e com capacidade de diálogo com todos os governos do hemisfério, sem exceções.

2. Rivalidade sino-americana e a necessidade de o Brasil liderar a integração regional

O Brasil tem todas as condições de liderar o processo de integração latino-americana, em um esforço conjunto com os países vizinhos. Na América do Sul, o país aglutina características favoráveis para a liderança regional: fronteira com 10 dos 12 países da região; responde por 55% do seu PIB; é uma democracia multiétnica das mais plurais do mundo; tem uma população e um mercado consumidor de grande porte; e riquezas naturais, como minérios estratégicos, petróleo, abundância de água e uma biodiversidade incomparável. O imenso potencial energético só aumentou com o processo de transição para a economia de baixo carbono. O país é uma superpotência agropecuária, tem a economia mais diversificada da região, o maior parque industrial e um razoável desenvolvimento tecnológico.

O contraste entre as potencialidades e a realidade é chocante. Nos últimos anos, o Brasil não apenas foi incapaz de protagonizar a liderança na integração latino-americana, como tem fomentado o desmonte de espaços regionais, optou por voluntariamente isolar-se e tem perdido espaço como parceiro comercial dos países da América do Sul – exatamente aquela região em que o comércio do país tem maior intensidade tecnológica e gera melhores empregos.

A contração tem múltiplas causas. Há fatores externos, como a queda do crescimento econômico da região e o crescimento comercial da China; e internos, como a perda de competitividade da indústria nacional, algo que se agrava profundamente com o esvaziamento dos espaços de mediação e coordenação regional, marcados pela saída da Unasul, da Celac e a paralisação do Mercosul.

Em um cenário geopolítico de rivalidade hegemônica entre EUA e China, há em marcha um processo de redução da interdependência entre essas economias que gera incertezas sobre o futuro da economia globalizada. O que se dá em paralelo a mudanças tecnológicas da quarta revolução e da transição a uma economia de emissões líquidas zero.

É muito comum encontrar nas discussões atuais sobre a inserção internacional do Brasil e da América do Sul a avaliação de que estamos mais uma vez em face de uma nova escolha estratégica. Tendo em vista a ascensão da China nos últimos anos como potência econômica, comercial, tecnológica, militar e financeira é corrente a referência sobre a reedição da nova Guerra Fria. Nos moldes da ordem que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, dois polos estariam se consolidando em torno de EUA e China.

Nesse contexto de desafio à hegemonia dos EUA, a reação da principal potência mundial tem sido a de buscar meios de conter a ascensão do seu maior concorrente, sobretudo no domínio da alta tecnologia. Essa postura tem se mantido mesmo com a última mudança de inquilino na Casa Branca. Se o contraste entre as políticas externas de Biden e Trump já se faz sentir na área ambiental, de direitos humanos, de saúde e na revalorização do sistema multilateral de comércio, a percepção da ameaça militar e tecnológica chinesa é suprapartidária e encontra forte amparo na sociedade estadunidense.

A transição para a próxima geração de redes móveis 5G, por exemplo, expõe com clareza esse misto de frustração, ansiedade e incerteza que tomou conta dos EUA. O que se agrava pela maneira com que a China vem debelando os efeitos da crise sanitária da Covid-19 e pela retomada, já a partir de 2021, da trajetória de crescimento econômico que apresentou nas últimas décadas.

A rivalidade sino-americana se impõe como nova encruzilhada estratégica para a América do Sul e o Brasil deve voltar a liderar a integração regional. A partir da compreensão desse quadro internacional mais geral, a retomada de uma agenda de integração na América Latina é também fundamental. Isso implica, para o Brasil, promover o aprofundamento das relações do Mercosul, garantindo coesão interna, e, a partir daí, ampliar para o resto da América do Sul, para a América Latina e Caribe.

3. Defender o Mercosul, reconstruir a Unasul e consolidar a Celac

Parte importante do legado da integração regional foi desconstruído nos últimos anos. A retomada deve considerar as ações anteriores e os princípios que guiaram a política externa, mas deve estar em acordo com os desafios atuais.

É fundamental garantir uma governança adequada para a integração para que tenham continuidades com os ciclos de governos dos países. Isto implica necessariamente a reconstrução de institucionalidade que inclua todos os países da América do Sul para o tratamento de questões do interesse estratégico brasileiro imediato e da América Latina e Caribe como espaço de concertação e de relacionamento com grandes potências e blocos, como os Estados Unidos, União Europeia e China.

Mantendo sua participação ativa na OEA, o Brasil deve reconhecer que a América do Sul possui dinâmicas próprias que demandam o tratamento de temas particulares, como direitos humanos, democracia e processos eleitorais, em espaços institucionais adequadamente desenhados. A seguir, os principais pontos para defender e modernizar Mercosul, Unasul e Celac.

Defender e superar a paralisia do Mercosul

Após mais de trinta anos da assinatura do Tratado de Assunção, que criou o Mercado Comum do Sul, é momento de reforçar este que é um dos principais instrumentos da política externa brasileira. Mais do que olhar para o passado, para que possa ser fortalecido, o Mercosul deve ser ampliado para atender os desafios do futuro. Nas últimas três décadas, a união aduaneira, ainda que imperfeita, dentro dela o comércio intrabloco cresceu substantivamente. Quando se criou o Mercosul em 1991 era de apenas 5 bilhões de dólares. E com os governos Lula e Dilma passou de menos de 20 bilhões de dólares (em 2002) para mais de 50 bilhões de dólares (em 2010), atingindo mais de 60 bilhões de dólares (no auge em 2011). Com Temer e Bolsonaro o comércio do bloco regrediu para menos de 30 bilhões de dólares (em 2020). Preservar a tarifa externa comum é tarefa central e perfeitamente compatível com os esforços de dotar o bloco de maior competitividade, maior integração às cadeias regionais e globais de valor, e maiores fluxos comerciais.

O Mercosul enfrentou, ao longo desse período, muitos desafios e passou por momentos difíceis, mas também acumulou significativos avanços, que transcendem a área econômico-comercial e se estendem às esferas social, cultural e política. Adotou-se o Plano Estratégico de Ação Social e assegurou-se a livre circulação de pessoas e o direito de residência em qualquer país do bloco. O Protocolo de Ouro Preto permitiu o aperfeiçoamento das estruturas institucionais do bloco. A constituição do Fundo para a Convergência Estrutural (Focem), destinado a corrigir as assimetrias entre os Estados-Partes, é um elemento-chave para o êxito dos objetivos da integração regional e financiou projetos cruciais dos menores países do bloco com recursos não reembolsáveis. A associação dos demais países sul-americanos ao Mercosul são importantes fatores de ampliação do projeto de regionalismo, que permitiu ao país fazer da América do Sul uma grande área de livre-comércio. Nesse sentido, está pendente e deve-se completar a adesão da Bolívia como membro pleno ao bloco.

O Mercosul deve continuar a ser o veículo para uma relação equilibrada com outros países e regiões. É importante levar adiante a reavaliação das negociações do Acordo de Associação com a União Europeia, com vistas a criar as condições para a sua ratificação. Nosso olhar deve se voltar também para o comércio Sul-Sul, ampliando as parcerias com a Aliança do Pacífico, a África e a Ásia.

É por meio do fortalecimento do Mercosul que o Brasil poderá recuperar as exportações industriais e de alto valor agregado, mas também é preciso fazer com que o agronegócio ganhe com o Mercosul. Pode-se construir uma agenda que apoie maior exportação de origem agrícola processada no Mercosul para terceiros mercados. Para negociar com China e Europa é necessário um Mercosul forte e coeso. O futuro do Mercosul pressupõe um bloco aberto a uma agenda de negociações externas robusta, porém essa agenda deve ser pautada por uma estratégia clara para alcançar acordos equilibrados. A agenda externa é, portanto, necessariamente conjunta, reforçada como união aduaneira e articulada de forma estratégica. Para permitir, por exemplo, negociações equilibradas com grandes economias, como China, e alcançar acordos benéficos para todas as partes envolvidas.

O Mercosul é uma verdadeira política de Estado para o Brasil, que conviveu com governos de diferentes matizes políticos, de modo a que o bloco poderá continuar a ser ponto de partida da estratégia brasileira de inserção no mundo, voltada para a promoção da paz, segurança, democracia e desenvolvimento sustentável com justiça social. Com essa orientação, o Brasil poderá assumir a presidência pro tempore no primeiro semestre de 2023.

Recuperar e modernizar a Unasul

A Unasul é um dos legados da política externa do governo Lula. Seu Tratado Constitutivo foi assinado em 2008 por todos os presidentes da América do Sul e ratificado por todos os parlamentos, institucionalizando a integração e cooperação regional autônoma. Contava com Secretaria Geral em Quito, 12 Conselhos Ministeriais (defesa, infraestrutura, saúde, entre outros) e a participação e apoio da totalidade dos países até 2017, com governos de distintas orientações ideológicas.

Teve papel decisivo para articular políticas regionais de saúde, planejar a integração infraestrutural e distensionar crises internas e entre países da região. Com o avanço da direita e extrema-direita e o aprofundamento da crise na Venezuela, a fragmentação política na região aumentou e vários países saíram da Unasul em 2018 (Colômbia) e 2019 (Brasil e outros). O Grupo de Lima de 2017 e o Fórum Prosul de 2019 tentaram ocupar o espaço da Unasul na governança regional; porém, ambos fracassaram.

O processo de integração regional deve ser analisado pela perspectiva sistêmica e estratégica, de forma que possa estar blindada dos embates ideológicos. O Brasil é o principal interessado e beneficiário da integração e deve liderar diferentes iniciativas, ao mesmo tempo em que promove ganhos coletivos para a região.

A fragmentação política e da governança regional torna a região mais vulnerável à presença de interesses extrarregionais e aos efeitos negativos das disputas de grandes potências (EUA, China, Rússia). A Unasul, com cúpula presidencial, conselho de chanceleres e conselhos ministeriais setoriais, conseguiam dar respostas rápidas a crises políticas e em outros temas sem a ingerência extrarregional. Entre 2000 e 2015, as principais crises políticas regionais internas, ou entre os países, foram equacionadas adequadamente por dentro da governança de integração. A Secretaria Geral da Unasul contava com apenas sete funcionários internacionais (40 no total) e seu orçamento era mínimo, nunca passou de 11 milhões de dólares anuais distribuídos entre os doze países.

Durante a crise da H1N1 havia reuniões virtuais semanais entre todos os ministros da saúde e houve rápida e efetiva cooperação entre os países. Já na crise da Covid-19, a América do Sul foi a região mais desarticulada do mundo, tanto para tratar dos temas de saúde pública (teve mais mortes), como da agenda de recuperação econômica. O Conselho Sul-Americano de Saúde (CSS) da Unasul não se reúne desde 2017 e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), cuja sede ficava na Fiocruz (RJ), fechou as portas em 2019.

O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) viabilizou cooperação inédita entre as forças armadas dos 12 países sem participação de potências hemisféricas e extrarregionais. Nesse espaço, como em todos os principais conselhos da Unasul havia destacada liderança brasileira, em sentido propositivo. A posição brasileira prevaleceu: minutas do estatuto de CDS e de seus planos de ação foram preparadas pelo Ministério da Defesa do Brasil. O CDS construiu consenso para uma agenda autônoma voltada para a soberania sobre os recursos naturais, a transparência e a confiança mútua com gastos de defesa e a formação de uma base industrial de defesa, além da criação da Escola Sul-Americana de Defesa (Esude).

O Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) incorporou a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), produziu importantes relatórios públicos e manteve grupos de trabalho sobre informações geográficas, desenvolvimento das regiões de fronteira, ferrovias, hidrovias, comunicação, entre outros, além da atualização semestral de carteira com mais de 500 projetos de infraestrutura até dezembro de 2017. Desde então, todos os grupos foram paralisados e apenas um projeto de infraestrutura que envolve mais do que dois países da América do Sul segue ativo (o corredor bioceânico entre o Mato Grosso do Sul e os portos do norte do Chile).

O Conselho Eleitoral da Unasul (CEU) foi importante para fortalecer a democracia e aumentar a confiança entre os nossos países realizou dezenas de missões eleitorais em oito países da região (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela) com participação de especialistas e observadores dos órgãos eleitorais dos doze países. O CEU foi fundamental, por exemplo, para o reconhecimento por parte do governo Maduro das eleições parlamentares de 2015, vencidas pela oposição. Em 2019, pela primeira vez desde a criação do CEU, não houve missão da Unasul para acompanhar as eleições na Bolívia. O controverso informe da OEA foi decisivo para a crise democrática na Bolívia. Nesse e em outros temas, a Unasul é a institucionalização da governança regional autônoma.

O Conselho Sul-Americano sobre o Problema Mundial das Drogas conseguiu que os doze países da região consolidassem pela primeira vez na história uma posição única da América do Sul, que tratava do tema de forma abrangente (incluindo saúde pública e não restrito à política de repressão). A Unasul avançou nos temas de Cidadania Sul-Americana, permitindo inclusive a livre circulação em todos os países da região apenas com documento de identidade nacional, sem necessidade de passaporte.

O Brasil saiu da Unasul por mensagem de twitter do ex-chanceler Ernesto Araújo sem passar por debate legislativo ou cumprir o rito completo estabelecido no Tratado Constitutivo da Unasul (que inclui a quitação de todas as dívidas com a instituição). A denúncia brasileira ocorreu dois dias antes da data prevista para que o Brasil assumisse pela primeira vez a Presidência pro tempore da organização. As tentativas de ocupar a omissão brasileira na governança regional por parte do Peru (Grupo de Lima), Colômbia (saída coordenada da Unasul) e Chile (Fórum Prosul) fracassaram.

Portanto, a partir do diagnóstico aqui apresentado e da experiência histórica recente, a mensagem geral é que a Unasul é fundamental para o desenvolvimento econômico da América do Sul e também para a estabilidade e soberania regional (incluindo a dissuasão da presença agressiva de potências extrarregionais no entorno estratégico brasileiro). A partir dessa mensagem geral, o Brasil pode ganhar muito com a institucionalização da integração regional e é quem mais está perdendo com a fragmentação. Os vizinhos também se beneficiariam com a rearticulação política regional e a renovação da liderança brasileira para a reconstrução da Unasul e a retomada da governança regional em infraestrutura, saúde, defesa, educação, ciência e tecnologia, democracia, segurança cidadã, desenvolvimento social, economia e finanças, energia, entre outros temas.

A retomada imediata da Unasul deve ser fator de estabilidade política e econômica da região. Todos os países devem participar e dialogar no espaço regional, independente da atual orientação político-ideológica dos governos. As iniciativas fracionadas (Grupo de Lima, Fórum Prosul) não funcionaram para lidar com a crise da Venezuela, não funcionaram para a ação coordenada em relação à saúde pública durante a pandemia e não funcionam para construir uma agenda regional de recuperação econômica pós-pandemia. Não existe vácuo de poder; quando o Brasil não atua em prol de uma agenda regional, outros países, inclusive de fora da região, ocupam esse espaço.

Retornar imediatamente à Celac e fortalecê-la como espaço de cooperação regional

O Brasil deve retornar imediatamente à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) com o intuito de fortalecê-la como espaço de diálogo e cooperação e concertação entre todos os países da América Latina e do Caribe. A Celac é um espaço privilegiado para fortalecer a coesão regional, inclusive no relacionamento com terceiros. Assim como o Brasil, a América Latina e o Caribe devem ter uma postura de não alinhamento ativo e equidistante entre Estados Unidos, China e União Europeia. Os Fóruns Celac-China e Celac-União Europeia são valiosos instrumentos para o fortalecimento de uma agenda extrarregional positiva.

O governo Bolsonaro retirou unilateralmente o Brasil da Celac. Este ato de autoisolamento só trouxe prejuízos ao país. O Brasil é mais forte quando atua em conjunto com os vizinhos, que também esperam a liderança brasileira para defender a paz e atuar para reformar a governança global em vários níveis.

A prioridade da política externa do Brasil é a América do Sul e a Celac é o instrumento para incluir América Central, México e Caribe em agendas comuns. O Brasil deverá apoiar os esforços da Argentina no exercício da presidência pro tempore do bloco e fomentar o debate regional para institucionalizar a Celac como organização internacional.

4. Integração regional como elemento dinamizador do desenvolvimento econômico no pós-pandemia

Anteriormente o texto apresentou um diagnóstico e desafios da integração regional no atual momento histórico, o quadro internacional específico em que a região se insere e a necessidade da liderança brasileira para o processo de integração e, em seguida, destacou a importância de se consolidarem e modernizarem instituições como o Mercosul, a Unasul e Celac. Esta seção do texto destaca, de forma sintética, alguns dos principais elementos da integração regional que poderão contribuir de forma decisiva à agenda econômica de recuperação pós-pandêmica e de construção de um desenvolvimento econômico para o Brasil e região.

Do ponto de vista comercial, a América do Sul é de especial importância. Na recuperação pós-pandêmica, a articulação regional deverá ser uma fonte de dinamismo econômico importante para o Brasil e região. Para o caso brasileiro, em particular, há condições estruturais que fazem com que a demanda da região por produtos brasileiros seja maior do que as compras do Brasil de seus vizinhos. Em particular pelo grau de industrialização brasileiro, que, mesmo sofrendo nos últimos anos, ainda logra assegurar exportações de maior valor agregado na América do Sul. É por essa razão que é comum que se diga, na América Latina, que o Brasil é o país que teria maiores benefícios imediatos com a retomada da integração regional. Uma vez que em um novo governo o Brasil supere a posição atual de autoisolamento e construa as condições políticas para retomar o processo de integração regional, o Brasil seria o país com claro e imediato benefício econômico e que, portanto, deve também constituir instrumentos para que os países vizinhos também se sintam beneficiados pela integração regional, o que contribuiria para dar sustentabilidade ao processo.

Nos últimos anos, o Brasil voltou a exportar menos para a América do Sul do que para a União Europeia ou para América do Norte. Entre 2004 e 2017, 17% das exportações do Brasil se destinaram à América do Sul. Esse valor caiu para 15% em 2018 e apenas 12% em 2019. Essa queda é uma das dimensões da desintegração econômica e também produto da fragmentação política e do autoisolamento brasileiro apresentados anteriormente.

Apesar dessa trajetória de queda recente, a região continua relevante para o saldo comercial brasileiro e poderá recuperar maior protagonismo. Nos últimos 10 anos (entre 2012 e 2021) o saldo comercial com os países da América do Sul foi positivo em quase 80 bilhões de dólares, ou 26,7% do saldo total acumulado com o mundo (dos quais, pouco mais de 30 bilhões de dólares – 10,3% do total com o mundo – foram acumulados intraMercosul). Sendo que nos últimos 5 anos, mesmo durante época de fragmentação, acumulou-se um saldo positivo superior a 42 bilhões de dólares, ou 17% do acumulado com o mundo (dos quais, 15 bilhões de dólares – 6% do total – com o Mercosul).

Ademais, decompondo o saldo comercial e observando-se o componente das exportações (sem descontar o vazamento de demanda para importações), para se ter uma referência de magnitude para o efeito acelerador do investimento nas atividades exportadoras, os fluxos acumulados seguem substantivos, mesmo em trajetória de deterioração. Nos últimos 10 anos acumularam-se fluxos exportadores da ordem de 330 bilhões de dólares, ou 15% do total de exportações acumuladas para o mundo, (sendo que, desse montante, mais de 190 bilhões de dólares – 8,7% do total para o mundo – foram intraMercosul). E nos últimos 5 anos, acumulam-se exportações em mais de 150 bilhões de dólares, ou 13,4% do total com o mundo, (dos quais mais de 87 bilhões de dólares – 7,6% do total – com Mercosul).

Permitir o aprofundamento da deterioração comercial na região, ademais dos fluxos de divisas, seria especialmente grave quando se leva em conta a composição das exportações para as diferentes regiões. O comércio intrarregional é muito mais intensivo em manufaturas: do total exportado pelo Brasil para a América do Sul, mais de 80% são de produtos industrializados, para Europa 35%, para a China menos de 3%. Um mesmo valor exportado pelo Brasil para a Argentina gera, em média, cinco vezes mais empregos do que para a China. Com destaque para a atuação regional das indústrias de veículos, produtos da indústria química e, em menor medida, mas ainda presentes: máquinas e eletrônicos.

Além disso, são nos mercados regionais onde as empresas médias e pequenas têm maiores condições de sucesso na exportação, se receberem os incentivos adequados. Enquanto os grandes mercados, como China e EUA, são de acesso de grandes produtores do agronegócio ou mineradoras. As exportações para os vizinhos permitem maiores condições de acesso aos produtores menores, de modo que as agendas de integração comercial devem também incorporar essa perspectiva.

Para a China, maior parceiro comercial do Brasil, mais de 90% das exportações são concentradas em apenas quatro produtos: petróleo, soja, ferro e celulose. O Brasil, que vem perdendo mercado na região, em especial para produtos da mesma China, ainda assim mantém um espaço privilegiado para desenvolver suas relações comerciais. O que novamente aponta para reforçar a necessidade de se reconstruírem os blocos de articulação política e econômica, como o Mercosul e Unasul. São espaços como estes, se melhorados e reforçados, que poderão construir condições para que se recuperem fluxos comerciais no pós-pandemia, que as cadeias regionais possam se fortalecer, que os micro, pequenos e médios empresários possam participar do Mercosul, que agendas de acesso a mercados para o agronegócio sejam contempladas nos fóruns regionais e que também sejam espaços de intermediação desses interesses extrarregionais, para o enfrentamento desses desafios da região de forma coordenada.

O financiamento do desenvolvimento é um desafio histórico das economias periféricas. Na medida em que o Brasil deve trabalhar para defender o Mercosul e reconstruir a Unasul, é importante avançar também no fortalecimento das condições de acesso a financiamento externo e, em paralelo, construírem-se instrumentos para que os países da região também se beneficiem da liderança brasileira na retomada da integração regional. A integração requer um processo em que todos os países possam desfrutar de prosperidade econômica. É a partir dessa concepção que o Brasil deve promover, por exemplo, instrumentos financeiros e monetários para promover a integração regional:

· Fortalecer os espaços multilaterais de financiamento do desenvolvimento. O Brasil é membro do Banco Mundial e FMI, entidades fundadas em Bretton Woods e vinculadas à hegemonia americana construída no pós-guerra. Não está entre os maiores acionistas dessas instituições, dada a resistência dos países desenvolvidos em reformar suas governanças e permitir maior participação de economias emergentes, mas é membro histórico e pode ter relevância em debates internos. O Brasil é o segundo maior acionista do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entidade que é produto da Guerra Fria, sua fundação é de 1959, quando a América Latina pôde fazer uma negociação exitosa com os EUA e conseguiu formar o banco com a maioria do poder acionário nas mãos de América Latina e Caribe, apesar de os EUA terem poder de veto em algumas decisões. O Brasil também é membro da CAF, banco que inicialmente se funda pelos países andinos e nos últimos anos se ampliou para ser um banco da América Latina e também membro do Fonplata (que atualmente é também administrador fiduciário do Focem), formado por Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, ou seja, duas instituições genuinamente latino-americanas. Finalmente, o Brasil é acionista fundador e ator central no Novo Banco de Desenvolvimento (NBD – o banco dos Brics), em que se busca fomentar uma arquitetura financeira internacional capaz de incorporar de forma mais equilibrada o papel das economias emergentes no mundo. Dessa forma, o Brasil está bem posicionado globalmente, pois participa tanto das instituições lideradas pelos EUA, como as lideradas pela China e também as exclusivamente regionais. Nos últimos anos o Brasil assumiu postura irrelevante nessas instituições, mas tem plenas condições de construir protagonismo, liderar agendas no tema do financiamento do desenvolvimento regional e ampliar a capacidade financeira dessas instituições em paralelo ao fortalecimento do multilateralismo.

· Constituição do Banco do Sul. Considerando os desafios específicos da região e suas necessidades de financiamento, a constituição de uma instituição para apoiar o financiamento do desenvolvimento regional, sem a participação de países de outras regiões, e que complemente a arquitetura financeira internacional, na qual o Brasil já participa e possui posição relevante, poderá fortalecer a estratégia de desenvolvimento brasileiro e a integração regional. Para constituir o Banco do Sul, há caminhos possíveis. Seria o caso de avaliar, em conjunto com os países vizinhos, a conveniência de retomar os acordos já firmados nos anos 2000 e trabalhar para se fundar uma estrutura de capital totalmente nova (algo que tomaria ao menos 2 a 5 anos). Ou (alternativamente) considerar a fusão entre o Fonplata e a CAF com nova capitalização para poder equilibrar a governança do banco de forma proporcional ao tamanho dos países-membros, de modo a consolidar o capital e carteiras dessas instituições, de um lado potencializando a capacidade financeira e de outro fortalecendo uma governança regional renovada.

· Fundo brasileiro para integração regional e reconstrução sustentável da América Latina e o Caribe. Na linha de fortalecer os instrumentos de financiamento e marcar a liderança brasileira no processo, além do esforço de capitalizar instituições relevantes para o financiamento do desenvolvimento, propõe-se constituir uma linha de crédito de financiamento reembolsável direcionada a projetos prioritários definidos pelo Brasil, a ser administrada por bancos multilaterais em que o Brasil tem maior influência. Seria um instrumento para a integração e símbolo de uma nova agenda da política externa brasileira. O enfoque em projetos relevantes para a integração regional e com impacto na reconstrução sustentável do pós-pandemia darão mais força ao fundo. A proposta reforçaria a condição do Brasil de liderança da integração regional e daria maior capacidade política na direção dessas instituições. Como opção de fonte de recursos, como exemplo hipotético, 2 bilhões de dólares das reservas internacionais (0,5% do total), convertidos na modalidade de uma facility, de modo a dar maior rentabilidade (menor liquidez) que os investimentos atuais das reservas. Não “consumiria” as reservas, apenas alocaria uma parcela ínfima dos ativos internacionais, que atualmente estão em ativos de alta liquidez, em uma facility de baixa liquidez (porém que remunera mais) e, em cofinanciamento com bancos multilaterais de rating elevado, o risco financeiro e de execução seriam baixos. Caberia ao Brasil definir a regra de elegibilidade, conforme suas prioridades de política, e, ainda, deverá entregar carta de não objeção por projeto. A elegibilidade poderia ser definida por projetos de infraestrutura que contribuam diretamente para a integração (poderia revisitar a carteira IIRSA-Cosiplan), combate à mudança do clima, ou cadeias regionais de valor nas indústrias que geram tecnologia, empregos verde e ampliação de acesso a bens públicos no esforço do pós-pandemia. O banco multilateral teria a responsabilidade de originação dos projetos e os projetos seguiriam as políticas operacionais, de licitação e salvaguardas ambientais e sociais do banco.

· Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). Aprimoramento e recuperação da liquidez do Fundo. O Focem é um fundo que financia programas para promover a convergência estrutural, desenvolver a competitividade, promover a coesão social, em particular das economias menores e regiões menos desenvolvidas e apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do processo de integração. Trata-se de um mecanismo solidário de financiamento próprio dos países do Mercosul e tem por objetivo reduzir as assimetrias do bloco. Os fundos são destinados aos países, e entregues em caráter de financiamento não reembolsável para financiar até os 85% do valor elegível de projetos. Desde 2016, o Brasil suspendeu novos aportes ao Focem, enfraquecendo a integração regional e as reduções de assimetrias entre os parceiros do Mercosul.

· Instrumentos monetários e a meta de uma moeda comum. Fortalecer e modernizar o Sistema de Pagamentos em Moedas Locais (SML) do Mercosul, administrado pelo Banco Central do Brasil (BCB) em parceria com outros BCs para fomentar a capacidade de comércio regional com uso de moedas locais, sem a intermediação de uma moeda extrarregional. Além disso, o Brasil, por meio de decisão do BCB, unilateralmente anunciou em abril de 2019 paralisar o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), o qual já foi de muita importância comercial em décadas anteriores, em particular em momentos de restrição de liquidez. No CCR, em síntese, os Bancos Centrais dos países signatários (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana) se comprometem a aceitar débitos e créditos provenientes de operações comerciais. Os débitos e os créditos de todos os países são compensados multilateralmente a cada quatro meses, de forma a liquidar apenas os saldos resultantes. Se outorga liquidez transitória entre BCs, permitindo cancelamentos de obrigações mútuas entre superavitários e deficitários ao longo de um período, de modo a não liquidar de forma imediata em moeda forte. Estes mecanismos, além de reduzir os custos das empresas (e estimular o comércio intrarregional) reduzem as necessidades de divisas.

Esse tipo de instrumento, atualizado, pode ser utilizado com incentivos para permitir que os micro, pequeno e médio empresários alcancem mercados regionais. A modernização desse tipo de instrumento poderá apoiar a expansão do comércio e estimular a demanda por infraestrutura; sua maior e melhor utilização permite ampliar a eficiência da gestão de liquidez internacional; serviria como garantia e blindagem tanto para exportadores quanto para importadores envolvidos; poderia também apoiar a recuperação de pagamentos suspensos de operações de crédito à exportação do BNDES.

A atualização de um instrumento monetário como o CCR é algo que poderia ser implementado de imediato e depende da liderança do Brasil, por ser o país com a moeda regional mais relevante, ter maior importância no comércio regional e por seus mercados financeiros mais profundos. Propõe-se que a sua implementação aprimorada, em uma região que poderia progressivamente avançar em sua trajetória de desenvolvimento econômico inclusivo, de forma mais interdependente e articulada em sua infraestrutura, comércio, estrutura produtiva e financeira, o que permitiria considerar a futuro a formação de uma moeda comum, complementar e que não necessariamente substitui as moedas nacionais, como a consolidação de um processo de integração.

Dada a realidade histórica da integração sul-americana o caminho europeu é um caminho ainda distante, sem embargo a região poderia avançar em direção a opções de uma moeda virtual comum, não única, que não substituiria moedas nacionais. Poderia, em realidade, ser um caso mais próximo aos esquemas de financiamento de curto prazo, particularmente sistemas de pagamento regionais, do que um caso de uma moeda única que é produto de um longo processo de convergência de variáveis macroeconômicas. O CCR e o SML são experiências importantes de uso de sistemas regionais de pagamento. Aproveitando a herança do CCR, a ideia de uma moeda sul-americana poderia ser discutida como uma tentativa de se avançar um pouco mais e constituir uma moeda virtual comum (que não substitui moedas nacionais), de unidade de conta e eventualmente liquidando contratos, nesse sistema de pagamentos de BCs. A infraestrutura é chave na articulação da integração ao crescimento econômico. A agenda de infraestrutura é fundamental para o aumento da competitividade econômica sul-americana e para a retomada do crescimento, e deve liderar as transformações necessárias para o combate à mudança climática com desenvolvimento social. As exportações brasileiras para os países vizinhos geram mais e melhores empregos, são mais diversificadas e mais acessíveis às pequenas e médias empresas do que as exportações para outras regiões. Com uma governança regional estável e fortalecendo os instrumentos de financiamento, será possível recuperar o planejamento da infraestrutura regional e consequentemente o comércio intrarregional. Reavaliar carteiras de projetos e retomar o esforço do Cosiplan serão fundamentais, e será necessário reorganizar a expertise regional para essa tarefa, considerando os novos desafios da infraestrutura regional na recuperação pós-pandêmica e sustentável.

A integração regional é central para a transição energética justa, no entanto, necessita liderança dos governos e estabelecimento de instituições estáveis que permitam a convivência e participação das empresas públicas e privadas existentes na pluralidade da região. O posicionamento estratégico do setor de energia nas próximas décadas dependerá de como os países se incorporam neste processo. O posicionamento regional é central para o posicionamento global. Assim, entre as diferentes motivações para a integração energética o processo da transição justa enfatiza três:

i) Urgência de uma maior integração elétrica para mitigação e adaptação climática eficientes. Um mercado elétrico sul-americano é essencial para utilização eficiente dos recursos renováveis na região visto a complementaridade regional destes recursos. E sistemas mais eficientes são centrais para garantir custos mais baixos e mais estáveis para a população e para as indústrias.

ii) Necessidade de desenvolver cadeias de valor regionais para a indústria associada à transição energética. Em um cenário energético de zero emissões líquidas, haverá uma transformação do valor econômico e geopolítico dos recursos naturais e tecnológicos. A transição energética é uma transformação da indústria em geral, pelo lado da demanda de energia, e especificamente para os setores da indústria associados à geração de energia. Neste momento há um processo de reposicionamento das cadeias de valor associadas a estas mudanças. Um reposicionamento regional permite uma melhor negociação na correlação de forças geopolíticas e aumenta a possibilidade de inclusão de valor agregado na economia. Este posicionamento, em muitos lugares, já está acontecendo de forma regional, dadas as características estratégicas desta indústria e as necessidades de coordenação logística e de infraestrutura. Há que fortalecer a transição como estratégia para fortalecer a indústria.

iii) Adaptação da infraestrutura (transmissão, transporte, portos, rios) para adoção e para a logísticas dos combustíveis sustentáveis. Há que se investir em adaptar as infraestruturas regionais do ponto de vista da integração energética para impulsionar e não bloquear o comércio dos países. Isto inclui tanto o comércio de produtos diretamente ao setor de energia (como por exemplo hidrogênio), como de outros produtos cujos processos de produção e transporte deverão ser descarbonizados, como aço, fertilizantes e minérios.

Nessa agenda será, portanto, central a consolidação de mercados e de instituições regionais legítimas para gerir os diferentes interesses envolvidos nos contratos de energia e no uso das infraestruturas associadas. Seja para garantir o uso e modernização das infraestruturas existentes, seja para o investimento em novos projetos. A integração das cadeias de valor associadas à transição energética através de programas de incentivos industriais regionais (como programas de conteúdo local regional, capacitação do mercado de trabalho e rede de centros tecnológicos), planejamento e fundos para investimento em infraestrutura sustentável.

A infraestrutura de transportes também é elemento dinamizador do crescimento. É preciso especial atenção ao planejamento de projetos de infraestrutura de transportes que poderão facilitar o intercâmbio brasileiro com a América do Sul e também com a Ásia, a partir de portos no Peru e no Chile. Os corredores bioceânicos são instrumentos centrais e devem ser complementares entre si para a competitividade do agronegócio brasileiro, em particular a produção localizada no centro-oeste e que requer novas rotas de infraestrutura regional. O dinamismo exportador do agronegócio no centro-oeste amplifica de forma substantiva as condições de sustentabilidade financeira de projetos de infraestrutura de transportes de integração. Algo que poderia, além de facilitar o acesso a mercados do agronegócio, potencializar atividades econômicas nas regiões de fronteira e novas cadeias produtivas regionais.

A dimensão da defesa na integração regional e o desenvolvimento tecnológico. É fundamental voltar a investir em uma identidade sul-americana de segurança e defesa baseada na cooperação, que possa ela própria servir como elemento de construção de confiança com os seus vizinhos e de fator de dissuasão extrarregional. Uma América do Sul mais coesa em matéria de defesa ajuda a transmitir visão estratégica sobre o lugar do Brasil no mundo, como força positiva nos esforços em manutenção da paz e como fator de estabilidade no seu entorno. Ao se deparar com as tensões relativas à rivalidade sino-americana, o Brasil deve atuar para que a região procure equilibrar suas relações militares, tecnológicas, econômicas e comerciais com os diferentes parceiros externos, extraindo deles benefícios que interessem ao Brasil, sem ter que optar por caminhos excludentes.

O caráter pacífico da política externa brasileira não implica, contudo, precarizar nossos meios de defesa. A inserção soberana do Brasil no mundo requer forças armadas bem aparelhadas. A capacidade militar não se restringe a volumes destinados à aquisição de material e à sofisticação dos armamentos. A constituição de uma base industrial de defesa no Brasil, com ramificações regionais, deve ser objetivo permanente nessa área, de maneira a garantir grau necessário de autonomia material e, sobretudo, tecnológica.

O aumento do desmatamento da Amazônia e do Cerrado brasileiro, somado à crise climática, é um dos maiores desafios a ser abordado. Seu enfrentamento requer um estreito diálogo com os governos subnacionais e com os países vizinhos, destacando principalmente a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), para pensar o desenvolvimento sustentável das regiões.

Múltiplos aspectos associados à integração e com implicações ao desenvolvimento econômico. Em matéria de cultura e educação, por exemplo, o espaço regional é privilegiado para aprofundar os laços do Brasil com a região e potencializar as oportunidades de um desenvolvimento econômico regional mais próspero através da formação de capital humano. Além disso, os temas apresentados são de natureza transversal, de modo que a integração deve estar presente na agenda dos governos subnacionais, das Universidades e da sociedade civil em geral. O que torna importante recuperar os instrumentos de participação cidadã no processo de integração e fortalecer as instâncias de governos subnacionais, como a Rede Mercocidades e o FCCR (Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul).

Preparado no âmbito do Grupo de Trabalho de América Latina no NAPP de Política Externa, com a contribuição de dezenas de participantes, os nomes indicados sistematizaram essas contribuições e não representam necessariamente as opiniões e pontos de vista das instituições a que estão, ou estiveram, vinculados

Pedro Silva Barros, Julia Borba Gonçalves e Audo Faleiro