Economia

É urgente se construir um estilo de desenvolvimento sustentável economicamente, socialmente e ambientalmente, e bem distribuído no território brasileiro

Publicado na série Textos para Discussão – Economia e Desenvolvimento (pdf aqui)

I. É urgente transformar o estilo de desenvolvimento

O ponto de partida da discussão que se faz neste documento é a necessidade urgente de se construir um estilo de desenvolvimento sustentável economicamente, socialmente e ambientalmente, e bem distribuído no território brasileiro. Mesmo antes da pandemia de Covid-19 se instalar no Brasil, seu estilo de desenvolvimento já estava baseado em frágeis pilares sociais, econômicos e ambientais

Do ponto de vista econômico, observava-se um baixo dinamismo econômico, uma vez que o período imediatamente anterior à pandemia (2014 a 2019) foi o sexênio de menor crescimento médio desde a década de 1950, com taxa de crescimento interanual média de -0,4%, segundo dados do Ipeadata. O pilar social apresentava uma crescente deterioração da situação social, já que a população em situação de extrema pobreza passou de 9 milhões em 2014 para 13,5 milhões em 2018, segundo dados do IBGE. E a distribuição de renda no país, medida pelo coeficiente de Gini, passou de 0,514 em 2014 para 0,538 em 2019, indicando um aumento da desigualdade de renda. Na dimensão ambiental, o Brasil vinha seguindo uma trajetória de crescente degradação e mais intensiva em emissões do que o resto do mundo. No Brasil, as emissões de dióxido de carbono cresceram 4,6% em 2016 em comparação com 2011, muito acima da taxa média global no período, de 2,6%, segundo dados do Banco Mundial.

Em suma, a “normalidade” pré-pandemia não foi capaz de resolver as grandes questões do desenvolvimento. O contexto de flagrantes brechas econômicas, sociais e ambientais de desenvolvimento foi determinante para que a chegada da Covid-19 ao Brasil se traduzisse em uma crise sanitária, social, econômica e humanitária de grandes proporções. Em 2020, o país sofreu uma das maiores contrações econômicas de sua história, acentuou as vulnerabilidades sociais e aprofundou o desmatamento e a degradação do meio ambiente. É mais urgente do que nunca criar um estilo de desenvolvimento em cujo centro estejam a sustentabilidade e a igualdade.

II. O aquecimento global aprofunda os problemas do desenvolvimento brasileiro

Segundo o Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, da sigla em inglês), órgão que periodicamente revisa o que sabemos sobre o clima, é inequívoco (ou seja, não há mais dúvidas de) que o aquecimento global já está em curso e que sua principal causa é a ação humana. A mudança do clima já está acontecendo no mundo e no Brasil e seus resultados são catastróficos. Das estiagens que esvaziam os reservatórios de hidrelétricas e aumentam a conta de luz, dos incêndios que consumiram 26% da área do Pantanal destruindo a pesca e a lavoura, dos ciclone-bomba em Santa Catarina que geraram mais de 275 milhões de reais em danos às intensas chuvas e enchentes no Acre, Sul da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, estamos vendo neste início de década amostras de eventos que se tornarão mais frequentes e mais intensos. Não à toa, muitos países têm declarado que estamos sob uma emergência climática.

Os custos de não enfrentar a emergência climática são inaceitáveis. Esses eventos trazem enormes custos, muitas vezes irreparáveis, que vão desde a perda de vidas humanas até quebra da produção agrícola e animal, destruição da infraestrutura e das habitações e a inviabilização da atividade produtiva. As perdas econômicas já superaram 333,3 bilhões de reais no Brasil devido a desastres climáticos no país, como inundações, secas, vendavais, dentre outros. Segundo Relatório Stern, um dos principais relatórios que quantifica o impacto econômico da mudança climática e da ação climática, a perda econômica de não atuar sobre a mudança do clima varia entre 5% e 20% do PIB ao ano, sendo que nos países em desenvolvimento a perda será ao menos de 10% ao ano. Para colocar a magnitude do impacto em perspectiva, a pandemia de Covid-19 levou a uma contração econômica de 4,1% em 2020, com graves e severos impactos sociais, incluindo o aumento do desemprego, da pobreza e da extrema pobreza. No entanto, essa contração é muito menor do que aquela prevista nos cenários de aquecimento global infrene.

A emergência climática agravará cada vez mais os problemas estruturais do desenvolvimento brasileiro. A fome, a insegurança alimentar e a miséria vão disparar, porque haverá uma redução de oferta (quebras de safra e redução da produtividade agrícola ligadas a intempéries climáticas) combinada com um efeito de elevação dos preços dos alimentos. No Brasil, se prevê uma redução de 11 milhões de hectares de áreas cultiváveis até 2030, influenciando negativamente a produção e a produtividade, segundo o Painel Brasileiro sobre Mudança do Clima (PBMC, análogo nacional do IPCC). Estes impactos serão regressivos, ou seja, impactarão mais os grupos da sociedade de menor renda, porque serão especialmente sentidos nos itens básicos da dieta dos brasileiros, como mandioca, feijão e arroz.

Se não for contido, o aquecimento global agravará as vulnerabilidades externas da economia brasileira. A reprimarização da pauta exportadora brasileira, além das vulnerabilidades econômicas tradicionalmente estudadas (por exemplo, exposição às flutuações do mercado externo, tanto em preço como em quantidade, dentre outros), se tornará vulnerável a um novo patamar de riscos associados às intempéries climáticas. Culturas-chave para o mercado externo, como soja, café e algodão, serão fortemente impactadas pela perda de áreas agricultáveis, secas e demais eventos decorrentes da mudança climática, inclusive com risco de desaparecimento por completo de certas regiões do país.

Se não for freada, a emergência climática gerará gargalos na oferta de energia elétrica, com impactos pervasivos sobre todos os setores e grupos sociais e impondo retrocessos para a já frágil indústria brasileira. No Brasil, 65% da eletricidade produzida é gerada por hidrelétricas, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). As bacias das regiões Sul e Sudeste são de grande importância para a geração hidrelétrica, correspondendo a 80% da capacidade instalada brasileira, conforme o PBMC. A energia produzida pelas hidrelétricas será severamente impactada com a diminuição da vazão em função do aumento da frequência e da intensidade de secas prolongadas. A falta de eletricidade impactará residências, hospitais, escolas e, especialmente, a indústria. Não há indústria sem fornecimento estável e seguro de energia.

As desigualdades se agravarão também, os impactos da mudança climática tendem a ser mais severos sobre os grupos mais vulneráveis, principalmente afrodescendentes, indígenas e mulheres.

O desmatamento da Amazônia aumentará a intensidade dos seus impactos sociais e econômicos desses eventos climáticos extremos, pois ele contribui para a interrupção dos “rios voadores”. As árvores da Amazônia funcionam como verdadeiras bombas d’água (fenômeno chamado “rios voadores”) que, por meio de sua evapotranspiração, bombeiam diariamente 20 bilhões de litros de água da Amazônia para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Caso essa fonte de água deixe de existir, poderá colocar em risco a produção agrícola, o abastecimento de água para consumo urbano (residencial e industrial), a geração hidrelétrica etc. em diversas regiões do país.

Em suma, por meio de diversos canais de transmissão, o aquecimento global desenfreado aprofundará problemas sociais e econômicos do estilo de desenvolvimento brasileiro, incluindo a fome e a miséria, as desigualdades e a vulnerabilidade externa. Nas palavras do grande economista latino-americano Raul Prebisch: “Não estamos diante de novos problemas, mas de problemas velhos que têm se tornado mais graves”. Evitar essas consequências já poderia por si só ser motivação suficiente para frear o aquecimento global urgentemente. Afinal, que fique claro: não conter o aquecimento do clima, pode significar o colapso dos sistemas físicos e biológicos que dão suporte à civilização humana tal qual a conhecemos.

III. Contexto de mudanças paradigmáticas: a agenda ambiental como plataforma de desenvolvimento

Transformar o estilo de desenvolvimento é urgentemente necessário, não apenas porque os custos da inação são muito altos e porque a janela de oportunidade para manter o aquecimento global dentro dos limites internacionalmente acordados – e evitar ultrapassar os limites planetários – é estreita. A razão mais importante é que existem numerosas oportunidades para que uma nova geração de políticas pró-sustentabilidade e pró-igualdade seja propulsora de um novo ciclo de desenvolvimento econômico, em linha com uma recuperação transformadora com sustentabilidade e igualdade. Em outras palavras, a agenda de proteção ambiental e de política climática, se desenhada corretamente, pode ser configurada de modo a se tornar uma alavanca para o desenvolvimento do país, em linha com um Grande Impulso (ou Big Push) para a Sustentabilidade.

O momento para se desenhar uma proposta de desenvolvimento, em favor das pessoas e em cujo centro estejam a sustentabilidade e a igualdade é único na história. Para além de reconhecer os riscos e os custos da inação está em curso uma mudança paradigmática de percepção da política climática não mais como entrave, mas sim como motor de desenvolvimento. Embora propostas para enfrentar simultaneamente a crise econômica e a crise climática não sejam novidade, no presente momento essas propostas têm se traduzido em pacotes de “recuperação verde” em diversos países do mundo, da ordem de 1,8 trilhões de dólares mundialmente. As principais economias do globo estão se movendo nessa direção, o que já tem provocado reações similares em outros países no mundo todo. A União Europeia (UE) aprovou o Nova Geração UE (Next Generation EU), o maior e mais amplo pacote de estímulos apresentado pelo bloco até o momento (750 bilhões de euros) e que tem ênfase na melhoria da sustentabilidade na agricultura, financiamento para energias renováveis e apoio à comercialização de veículos elétricos. Nos Estados Unidos, foi proposto o Plano Biden-Harris de reconstruir melhor (build back better) com 2 trilhões de dólares ao longo de oito anos, com foco em infraestrutura sustentável. A China também tem apostado fortemente na Civilização Ecológica e anunciou investimentos na ordem de 2,3 trilhões de dólares até 2030. Países em desenvolvimento, incluindo Camboja, Chile e Costa Rica, também têm apresentado propostas nessa direção.

Embora esses estímulos verdes sejam um passo importante na direção correta, eles têm sido insuficientes para uma mudança de estilo de desenvolvimento. Ainda há riscos importantes de flexibilização de regulações e políticas ambientais sob o pretexto da recuperação econômica. Por outro lado, pode-se esperar um aumento do peso dos estímulos verdes à medida que cada vez mais eles estarão dedicados a ações de recuperação de longo prazo ao invés do enfrentamento emergencial no curto prazo. Líderes de todo o mundo têm à sua frente uma oportunidade histórica para se transformar estilos de desenvolvimento rumo a economias mais igualitárias e inclusivas, mais resilientes diante de ameaças de pandemias, dos impactos das mudanças climáticas e de muitos outros desafios que o futuro guarda.

Essas evidências apontam para uma conjuntura histórica única, entre o tamanho do desafio posto em combater as mudanças climáticas e a oportunidade brasileira de estabelecer-se como um país protagonista da sustentabilidade, aproveitando suas riquezas sociais e ambientais para se desenvolver com base na construção de capacidades produtivas nacionais, aliando tecnologias na fronteira do conhecimento com práticas e conhecimentos tradicionais e ancestrais.

IV. A Transição Ecológica para o Brasil

É preciso compreender que a transição para uma economia de baixo carbono e sustentável deve ser o núcleo duro e parte indissociável de uma estratégia de desenvolvimento do país, em cujo centro esteja o objetivo de garantir a dignidade humana e promover o bem-estar da população brasileira em toda sua diversidade.

Em primeiro lugar, é preciso alcançar emissões líquidas zero, o que somente será possível se houver mudanças estruturais profundas em todos os grupos da sociedade e em todos os setores produtivos. Em segundo lugar, é preciso ter um governo federal líder e indutor dessa agenda para que ela se torne uma plataforma de desenvolvimento.

O governo federal deve ser o protagonista e grande articulador de uma estratégia nacional de desenvolvimento com sustentabilidade social, ambiental e econômica para o Brasil, estabelecendo as condições para a implementação de um conjunto coordenado de políticas e de investimentos, regidos sob uma clara e explícita orquestração do Estado em aliança com a sociedade civil e o setor produtivo.

Os efeitos econômicos da transição de baixo carbono são significativos. Segundo estudo Nova Economia para o Brasil, realizado pelo World Resources Institute (WRI), uma economia verde fará o Brasil crescer mais nos próximos dez anos cerca de 2,8 trilhões de reais acima do crescimento esperado na ausência de políticas para a descarbonização. Já um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) junto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aponta que a descarbonização total da economia do Brasil poderá gerar 7,1 milhões de empregos líquidos no país até 2030, acima do esperado.

No entanto, é preciso ter claro que a transição de baixo carbono em si não trará automaticamente consigo benefícios sociais e econômicos de desenvolvimento. A principal condição para que a transição de baixo carbono possa se traduzir em uma agenda de desenvolvimento é que a realização dessa profunda transformação se dê a partir da construção e do fortalecimento de capacidades produtivas, tecnológicas e inovativas locais e nacionais. E para isso é chave o papel do Estado. Essa condição contrasta com um cenário de descarbonização passiva, no qual o país importa as tecnologias, as práticas e os equipamentos de baixo carbono, bem como a mão de obra especializada, transferindo para o exterior os empregos, a renda e a arrecadação de impostos que são gerados a partir de sua produção.

Uma segunda condição é dirigir explicitamente os benefícios sociais dos investimentos de baixo carbono para as populações vulneráveis ou historicamente marginalizadas. Novamente, o Estado tem papel chave para o atingimento dessa segunda condição.

1. Objetivo

O objetivo central da transformação de estilo de desenvolvimento é promover e assegurar a dignidade humana e o bem-estar de toda a população brasileira, sem deixar ninguém para trás. A grande direção de transformação desejada deve ser a melhoria das condições de vida das pessoas (gerações atuais e futuras). Ter uma economia forte e competitiva e um meio ambiente saudável são condições e meios para que esse objetivo central seja alcançado.

As propostas detalhadas a seguir visam contribuir para melhorar as condições de vida das pessoas, ao asseverar que as pessoas tenham: mais saúde, acesso à moradia digna e sustentável para todas e todos, acesso à infraestrutura de adaptação e resiliência aos eventos extremos, oportunidades de conseguir postos de trabalho decentes ligados aos empregos verdes, mais renda, ao acessarem empregos decentes, formais e com maior remuneração e igualdade.

2. Diretrizes

As propostas apresentadas norteiam-se pelas seguintes diretrizes: 1) Transição justa: “esverdear” (ou seja, reduzir emissões de gases do efeito estufa e de poluentes em geral, adotar práticas que não agridem o meio ambiente e as pessoas, recuperar o meio ambiente deteriorado etc.) a economia de forma justa e inclusiva; 2) Inclusão produtiva como caminho para a igualdade; 3) Inovação para geração de capacidades tecnológicas e produtivas locais (reindustrialização verde); 4) Valorização da sociobiodiversidade como um ativo ou uma riqueza do país; 5) Sustentabilidade ambiental.

3. Como chegar lá?

Em primeiro lugar, devemos compreender a centralidade dos investimentos como peça-chave de qualquer estratégia de transformação. Sem investimentos, não há mudança: sem eles, a infraestrutura de transporte, de energia e de saneamento básico, as habitações, as fábricas, o comércio e o campo permanecerão como estão. Os investimentos de hoje explicam a estrutura produtiva de amanhã, que por sua vez determina a competitividade, a produtividade e o tipo de inserção no comércio internacional. Além disso, eles também determinam a capacidade de geração de empregos de qualidade e em pé de igualdade entre mulheres e homens, brancos e negros, e se a atividade econômica será contaminante ou ecológica. Em suma, o estilo de desenvolvimento que prevalecerá no futuro depende crucialmente do tipo de investimento que é realizado hoje.

São necessários três aspectos principais para essa transformação: escala mínima e coordenação de investimentos e financiamento. O estilo de desenvolvimento não será transformado se os investimentos ocorrerem no conta-gotas, aos pouquinhos, marginalmente em algumas áreas aqui e acolá. Somente será possível transformar o estilo de desenvolvimento se houver um grande impulso (big push) com um conjunto expressivo de investimentos for mobilizado. No Brasil, estima-se que o potencial para os investimentos de baixo carbono seja da ordem de 1,3 trilhão de dólares até 2030 em setores como energias renováveis, infraestrutura urbana (mobilidade, edificações, resíduos etc.) e indústria.

Com isso em vista, de forma transversal a todos os setores estratégicos, propõe-se um grande Programa de Reindustrialização Verde para construir as capacidades produtivas, tecnológicas e inovativas locais e nacionais. Nesse sentido, missões específicas para a Finep, a Embrapii e o BNDES serão sustentáculos para financiar com juros equalizados e com recursos não reembolsáveis para projetos de maior risco ou prioritários. Essas capacidades serão a base para a geração de 7 milhões de empregos verdes e decentes para a população brasileira. No entanto, os setores considerados “verdes” têm gerado empregos majoritariamente masculinos no Brasil. Por essa razão, será colocada em prática uma governança clara, que estabeleça papéis e coordene os diversos atores da sociedade, sob a égide do protagonismo orquestrador do Estado brasileiro.

V. Missões: áreas estratégicas como foco de investimentos e políticas públicas

As missões apresentadas abaixo se combinam para formar um Plano Nacional da Transição Ecológica de longo prazo, que no curto prazo se traduziria em um PAC para a Sustentabilidade.

Missão 1: Do desmatamento ilegal zero à economia da sociobiodiversidade

Os mais de 33 mil quilômetros quadrados desmatados na Amazônia desde 2019 e os mais de 8 mil quilômetros destruídos no último ano no Cerrado são uma aberração e uma arma apontada contra o desenvolvimento brasileiro. Hoje, vergonhosamente, 46% das emissões do país vêm de atividades com queimadas e desmatamento. O desmatamento desenfreado coloca em xeque uma economia de aproximadamente 5 trilhões de reais, referente ao Centro-Oeste, Sul e Sudeste, onde se concentram expressiva fatia do agronegócio, polos industriais e 64% da população brasileira, ao colocar em risco os “rios voadores”, que bombeiam diariamente 20 bilhões de litros de água para essas regiões.

O ponto de partida é: zerar o desmatamento ilegal e promover o desmatamento líquido zero, com recomposição de áreas degradadas e reflorestamento, interrompendo a destruição da Amazônia e dos demais biomas e permitindo a manutenção dos ecossistemas e da natureza. O caminho já conhecido nos governos do PT da redução do desmatamento deverá servir de base para se ampliar e retomar fiscalização (recobrando também o ritmo de multas por crimes ambientais) e proteção da Amazônia, Pantanal, da Caatinga e do Cerrado. Somado a isso, estão a reestruturação do Ibama e do ICMBio como instituições guarda dos biomas brasileiros, da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Fundação Palmares responsáveis pela demarcação de terras indígenas e quilombolas e por políticas de proteção desses povos e de várias outras comunidades tradicionais que detêm amplo conhecimento da sociobiodiversidade brasileira. A retomada dos 3,3 bilhões de reais parados no Fundo Amazônia, a construção de um orçamento decente do Ministério do Meio Ambiente, o fortalecimento do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) e a criação de uma política pública de pagamento de serviços ambientais que remunerem os povos indígenas e comunidades tradicionais que protegem a floresta e a sociobiodiversidade.

Ademais, a instauração de um processo decisivo de regularização fundiária, do acesso equitativo à terra e de demarcação de áreas. Em suma, é preciso estabelecer de forma definitiva o Estado de direito na Amazônia e em todo o território nacional, implicando também na capacidade do Estado de tirar o Brasil da lista de países que mais matam ambientalistas e geram conflitos no campo, como as invasões de garimpeiros e grileiros em terras indígenas. Para isso, deve haver uma federalização da política ambiental, com responsabilidades compartilhadas entre os entes federativos. Os municípios que mais protegerem seus ecossistemas terão um repasse de recursos privilegiado por meio da universalização do ICMS ecológico. Também deverá ser instaurada uma política de tolerância zero com a ilegalidade, de modo que o acesso a todos os benefícios à produção no campo, tais como Seguro Agrícola e Plano Safra, seja condicional à regularidade ambiental plena.

O segundo ponto é estabelecer um novo estilo de desenvolvimento que assegure dignidade aos povos do campo, das águas e das florestas, enquanto mantém a floresta em pé. Para manter a Amazônia em pé e simultaneamente acabar com a miséria e a pobreza na região, será necessária uma forte estratégia de agregação de valor aos produtos que podem ser extraídos da floresta em pé de forma sustentável. No caso da Amazônia, não só é de fundamental importância resgatar o Bolsa Floresta, um instrumento de pagamento por serviços ambientais que remunera as famílias que mantêm a floresta em pé, como também investir na sociobioeconomia.

Para construir uma sociobioeconomia de alto valor agregado da floresta, o país precisa estabelecer abrangentes políticas de fomento à pesquisa e desenvolvimento, aliada aos conhecimentos tradicionais, que possam no longo prazo pavimentar o caminho para uma nação de tecnologias inovadoras, transformando a vantagem comparativa que o Brasil tem em sua sociobiodiversidade em capacidades da indústria nacional: desenvolvimento com a floresta em pé. A sociobioeconomia nacional é um dos grandes diferenciais do Brasil e pode agregar muito valor a partir dos diferentes biomas.

O Brasil detém cerca de 20% da biodiversidade mundial e mais de 10 mil plantas com potencial farmacêutico, que aponta para o amplo potencial de exploração sustentável e parte central de qualquer plano de transição para uma matriz econômica descarbonizada. Assim como o desafio da valorização de povos e comunidades tradicionais pelo conhecimento acumulado.

Portanto, é preciso estabelecer um Plano Nacional de Economia da Sociobiodiversidade de alto valor agregado, que possa traduzir todo o ciclo de produção industrial tecnológica a partir da proteção social e promoção cultural. A proposta nesse ponto é criar a Empresa Brasileira da Biodiversidade (Embrabio), sustentada por seis pilares: 1) Pesquisa Científica atrelada ao conhecimento tradicional, com foco científico e comercial, envolvendo o corpo de mestrandos e doutorandos das universidades e centros de pesquisa e institutos do governo federal e regionais; 2) Produção Agroflorestal, Agroecológica com ampla Assistência Técnica e Extensão Rural, levando qualidade técnica e segurança na produção para Povos e Comunidades Tradicionais, além de assegurar estabilidade com compras sustentáveis, garantia de compra e crédito rural da biodiversidade; 3) Laboratórios de Negócios de Última Geração – propõe-se criar laboratórios vinculados às universidades públicas, localizados nos territórios de biodiversidade, que sirvam de incubadoras para novas empresas da indústria da biodiversidade (farmacológica, química verde, cosméticos, engenharia verde e outras), com investimentos em equity de bancos de desenvolvimento locais e do BNDES; 4) Reindustrialização Verde, reestruturação do Polo de Manaus e criação do Polo do Cerrado como centros de desenvolvimento industrial e fomento aos mercados internos, assim como direcionamento para exportação; 5) Criação dos Institutos Tecnológicos da Amazônia (ITAs) e Fortalecimento da Científica local, ao ampliar o número de universidades em conjunto com os novos ITAs, além de reforçar a capacidade dos centros já existentes, como o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), entre outros; 6) Criar universidades voltadas para os povos indígenas e comunidades tradicionais do campo, das águas e da floresta, valorizando seus saberes ancestrais e aproximando-os da ciência moderna.

Um plano estruturante em nível nacional como esse requer infraestrutura energética, logística e digital para trazer capilaridade aos polos industriais e aos negócios de pequena escala da floresta, do campo e das águas. Ao mesmo tempo, o financiamento de alto risco exigido deverá ganhar escala e ser coordenado entre instituições locais e nacionais, do Banco Amazônia ao BNDES.

Somado a esses pontos, precisamos fazer girar a economia das Unidades de Conservação, promovendo as oportunidades de extração sustentável de madeira, borracha, açaí e castanhas, aproveitando o potencial da atividade pesqueira (da ordem de 86,5 milhões de reais para o peixe, 55,2 milhões de reais para a camarão e de 24,8 milhões de reais para o caranguejo, totalizando 167,5 milhões de reais de pescado), o turismo e a visitação (em 2016, 17 milhões de visitantes levaram a um impacto econômico estimado entre 2,5 e 6,1 bilhões de reais anuais, correspondendo a uma geração entre 77 e 133 mil ocupações de trabalho; que poderia chegar a 1,2 bilhão de reais e 42 mil postos de trabalho), remunerar o carbono armazenado nas UCs (estima-se que o estoque de carbono das UCs pode valer 130,3 bilhões de reais, correspondendo a fluxos anuais de benefício por conservação entre 3,9 a 7,8 bilhões de reais).

O Brasil tem 69 milhões de hectares de pastagens com degradação moderada ou severa, o que indica que há um potencial de restauração de pastagens e áreas degradas muito além dos 12 milhões de hectares já comprometidos (Planaveg). É preciso potencializar a economia da restauração de ecossistemas, com esforços em todos os biomas do território nacional. A restauração de pastagens degradadas poderá gerar retorno de 19 bilhões de reais e a recuperação em larga escala da vegetação nativa brasileira poderá gerar até 191 mil empregos diretos por ano. Cálculos indicam que o reflorestamento de 12 milhões de hectares na Amazônia podem gerar 1,4 milhões de empregos.

Também precisamos afastar a ideia que tomou conta do país de que somos uma fazenda global e só. A agricultura brasileira de exportação precisa se tornar agroecológica e orgânica e de baixa emissão de carbono, aliada a uma forte estratégia de desenvolvimento da sua cadeia de valor, incluindo sementes, insumos agrícolas sustentáveis, equipamentos e logística. Hoje, o setor corresponde a 27% das emissões do país, em segundo lugar, só perdendo para desmatamento e queimadas, que muitas vezes são processos correlacionados. Precisamos de um setor forte e competitivo do agronegócio. Portanto, para que o mesmo possa contribuir com o desenvolvimento do país para além da geração de divisas, será fundamental investir na construção de capacidades locais e nacionais da sua cadeia de valor, incluindo investimentos em inovação e na geração de soluções, como a agricultura de precisão e smart agriculture. É necessário condicionar os investimentos do agronegócio para tecnologias e práticas de baixo carbono. O Plano Safra deverá ser fundir ao Programa ABC, de modo que toda linha de financiamento para o setor deva ter como premissa a agricultura de baixo carbono e sustentável, com práticas agroecológicas e orgânicas ligadas à eliminação progressiva do uso intensivo de agroquímicos e aliado à regularização fundiária e ambiental.

Precisamos fortalecer a agricultura familiar sustentável. O setor ainda representa 70% dos empregos da região. Segundo o IBGE, a agricultura familiar representa 77% dos estabelecimentos no setor agropecuário do país e sua produção é fundamental para fornecer: 48% do valor da produção de café e banana; 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. Portanto, é necessário, retomar as os projetos de desconcentração da posse de terras no Brasil, valorizando a função social da terra para fomentar a capacidade produtiva dos agricultores familiares e desenvolver cadeias de maior valor agregado, com base tecnológica no setor. Neste ponto, a proposta é construir um sistema que integre os cadastros fundiário, tributário e ambiental. Ainda, o setor agrícola familiar deve ser impulsionado também através dos bioinsumos e linhas de créditos que envolvam uma estratégia de combate às mudanças climáticas, já indicando a capacidade brasileira de alta produção longe do veneno dos agrotóxicos. Somado a esse esforço, a outorga da água para produção agrícola deverá ser pautada por critérios de baixa emissão de carbono. Outro ponto fundamental é o financiamento para a agricultura familiar. As condições deveriam ser diferenciadas para esses produtores, com juros mais atraentes, com mais crédito e com a possibilidade de criar um fundo garantidor para esses pequenos agricultores que precisam de empréstimo.

Missão 2: Cidades e infraestruturas urbanas sustentáveis

A transformação do estilo de desenvolvimento rumo à sustentabilidade econômica, social e ambiental vai além do campo, das águas e das florestas. No Brasil, 85% da população reside em áreas urbanas. E são elas, as cidades, o grande motor da economia nacional. Precisamos construir as cidades que as pessoas merecem e precisam: que ofereçam oportunidades de ter uma vida digna, com empregos decentes, com acesso democrático ao espaço urbano, com qualidade de vida, com uma infraestrutura sustentável de energia, de transporte, de água, de saneamento básico, de gestão de resíduos e de parques.

O passo um é investir fortemente na universalização do saneamento básico para reverter o quadro de injustiça histórica: apenas 60,9% dos domicílios urbanos contam com rede de coleta de esgoto e menos da metade do esgoto gerado (46%) é tratado, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Somam-se revoltantes 39,2% de desperdício de água potável. O desafio da universalização apresenta a oportunidade de criar programas de garantia de emprego, para que obras públicas de saneamento possam ser desenvolvidas, dos maiores centros urbanos aos mais remotos, concomitantemente, o sistema deve ser modernizado para evitar perdas. Essa situação absurda para um país com o nível de renda do Brasil força milhões de pessoas a utilizarem fossas, sumidouros, valas a céu aberto e/ou lançamento direto nos corpos hídricos, expondo a população a diversas doenças infecciosas e parasitárias. Os investimentos em saneamento são essenciais para melhorar as condições de saúde por uma menor exposição a doenças graves e diminuir as iniquidades regionais. Para alcançar a universalização do serviço de água e esgoto até 2033, serão necessários investimentos da ordem 508 bilhões de reais em 20 anos, segundo estabelecido no Plano Nacional de Saneamento Básico.

O passo dois é a construção de uma economia circular capaz de romper o paradigma linear da extração-transformação-consumo-descarte e estabelecer o paradigma da circularidade, de modo a conservar o valor dos recursos extraídos e produzidos, mantendo-os em circulação por meio de cadeias produtivas integradas. Além de contribuir para a sustentabilidade ambiental da gestão de resíduos (plástico, metais, vidro, borracha etc.), a economia circular tem imenso potencial gerador de empregos e renda, bem como de provocar impactos positivos na saúde das pessoas. Trabalhar pela construção de uma economia circular de ponta a ponta, incluindo projetos adjacentes de reutilização de resíduos, com o objetivo de zerar os lixões e produção de lixo no país. Para tanto, é preciso investir em cadeias produtivas circulares que compreendam análises e planejamento do ciclo de vida do produto, a partir de uma base central nacional de dados dos fluxos de materiais e matérias-primas. Assim como o investimento em logística reversa e a extensão da vida útil dos produtos. Ao passo, caberá à União se utilizar de compras sustentáveis (com circularidade e baixa geração de resíduos) nas cadeias onde incide. Somado a isso, o fomento de usinas de reciclagem em ciclo fechado (autossustentáveis).

O terceiro passo é zerar o déficit habitacional em todo o Brasil, que está na casa de 5,8 milhões de moradias e tem crescido nos últimos anos. É urgente investir na universalização de moradias dignas, seguras e sustentáveis. Propõe-se o Minha Casa Minha Vida 2.0, que estará conectado de forma indissociável com os planos e programas de saneamento básico e infraestrutura energética e de mobilidade, oferecendo aos cidadãos um modo de vida decente e sustentável, garantindo um teto para todas as famílias.

Precisamos trabalhar para fortalecer a economia dos cuidados, com foco em investimentos que contribuam diretamente para o bem-estar da população e que reduzam as desigualdades e injustiças históricas, notadamente em relação às mulheres e corpos feminizados. Também necessitamos investir pesadamente na infraestrutura digital de banda larga, que permita a universalização ao acesso à internet de qualidade e recuperar o atraso de competitividade de muitas indústrias.

Por fim, o quinto passo é o da resiliência e adaptação urbana. Como temos visto com as tragédias climáticas por todo o Brasil, sabemos que as cidades não têm a infraestrutura necessária para lidar com esses eventos, o que acarretará ainda mais pessoas deslocadas e mortes. Será necessário construir novas cidades verdes e resilientes ao clima mais hostil, recolocando as empresas de construção civil de novo como protagonistas do desenvolvimento. Para proteger os brasileiros, devemos planejar a infraestrutura de adaptação a desastres naturais, inclusive enchentes, incluindo soluções baseadas na natureza, especialmente em cidades costeiras. O foco deve ser no auxílio às populações mais vulneráveis (encostas de morros, áreas sujeitas a inundações etc.).

O processo de resiliência urbana passará por importantes revisões dos planos diretores, a fim de reter a expansão territorial das cidades, de compreender as reformas urbanas necessárias para evitar maiores acidentes ambientais. O primeiro passo é buscar um processo de planejamento urbano no redesenho de bairros inteiros, acoplando a montagem infraestrutura de cidades com o meio ambiente. É imprescindível que esse redesenho seja acompanhado com um processo de densificação das cidades e dos bairros, impedindo que os centros urbanos continuem se expandindo e emitindo mais gases estufa. Para isso, um pacote robusto de integração social de habitação (prédios onde todas as faixas de renda possam conviver), somado ao amplo transporte público, acesso digital, produção local de energia solar e o fomento à agricultura urbana.

Missão 3: Transporte sustentável

O setor de transportes é uma área chave para o desenvolvimento. A infraestrutura de transporte determina quão integrado está o território. Com o tempo, a malha de transportes se atualizou em termos de capacidade e qualidade, mas a conectividade dos territórios dentro do país continua sendo insuficiente.

O transporte sobre rodas no Brasil exerce um papel expressivo na locomoção de pessoas e de mercadorias. De todas as viagens realizadas pelas pessoas no país, 53,8% são sobre rodas, sendo 29,7% em transporte individual motorizado (automóveis e motocicletas) e 24,2% em transporte coletivo (ônibus). A matriz de transporte de cargas também é muito dependente do transporte sobre rodas, já que o transporte rodoviário é responsável por 65% da movimentação de cargas no país em termos de toneladas-quilômetros úteis. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), 59% da extensão de rodovias no país apresenta problemas, o que leva a um aumento médio dos custos operacionais dos veículos (incluindo manutenção veicular, consumo de combustível, lubrificantes, pneus e freios) de 28,5% no Brasil. A baixa conectividade e qualidade da infraestrutura de transporte brasileira enfraquece sua competitividade sistêmica. O Brasil encontra-se na 71ª posição geral do ranking de competitividade global do Fórum Econômico Mundial, que inclui 141 países, sendo que no quesito infraestrutura de transportes, o país está na 85ª posição. O setor de transportes é o maior consumidor de energia do país (32,7%), seguido da indústria (31,7%), segundo a EPE. Apesar de um aumento da participação das fontes renováveis no setor de transportes (de 15% em 2012 para 23,2% em 2018), o consumo de energia nesse setor é essencialmente fóssil, sendo o óleo diesel e a gasolina responsáveis por, respectivamente, 43,6% e 25,8% de seu consumo energético no país. Consequentemente, o setor de transportes é o responsável pela maior parte das emissões antrópicas associadas à matriz energética brasileira, com 46,3% do total.

Esse padrão de mobilidade e transporte se traduz em uma série de ineficiências econômicas, sociais e ambientais para o país. A movimentação das pessoas em veículos motorizados representa, no Brasil, um custo anual de cerca de 22,9 bilhões de reais associado à poluição atmosférica. Estima-se que, somente na cidade de São Paulo, quatro mil pessoas morrem por ano por problemas causados pela poluição do ar, gerando custos equivalentes a 1,5 bilhão de dólares ao Estado. Ademais, os acidentes de trânsito estão entre as principais causas de mortes no país, levando a mais de 23 mil vítimas fatais por ano. Além disso, o custo anual dos acidentes é estimado em 115,4 bilhões de reais, enquanto o custo anual do ruído é estimado em 4,1 bilhões de reais.

A infraestrutura de transporte e mobilidade determina o acesso das pessoas a oportunidades de emprego, serviços de saúde e educação, atividades culturais e de lazer. Um estudo recente, baseado em estimativas de acessibilidade por modos de transporte ativo (a pé e de bicicleta) para as vinte maiores cidades do Brasil e por transporte público para sete grandes cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Porto Alegre e Curitiba), mostrou que há alta acessibilidade nas áreas centrais das cidades, enquanto as áreas periféricas são caracterizadas por desertos de oportunidades. As disparidades centro-periferia nas cidades, somada à baixa conectividade, apresentam implicações sobre as diversas manifestações da desigualdade. Ainda, a disponibilidade e o custo de serviços de transporte para as regiões centrais das cidades, onde tendem a se concentrar as melhores oportunidades de empregos, podem obstaculizar a participação de residentes na periferia no mercado de trabalho formal. Ou seja, o padrão de mobilidade prevalecente no Brasil tende a consolidar desigualdades de raça e de renda.

A mobilidade sustentável representa uma das grandes oportunidades para se transformar o estilo de desenvolvimento rumo à sustentabilidade econômica, social e ambiental, ao interromper o círculo vicioso de ineficiências econômicas criadas por uma mobilidade ineficiente – de poluição e emissão de GEE até impactos sobre a saúde, a qualidade de vida, a produtividade e o custo logístico sistêmico. Para isso, é necessário articular de forma simultânea diversos fatores e coordenar ações em múltiplos setores, prestando a devida atenção às necessidades de grupos distintos de usuários de serviços de transporte, incluindo variáveis como renda, raça, gênero, etárias, étnicas, dentre outras, enquanto se produzem transformações produtivas e sociais rumo a uma mobilidade mais sustentável no tripé econômico, social e ambiental. Propõe-se implementar uma Estratégia de Investimentos para a Mobilidade Sustentável que priorize a eficiência e a cobertura do transporte público (como ônibus, trem e metrô), estimular a mobilidade ativa (favorecendo redes de transporte para pedestres e ciclistas), fomentar sistemas compactos que aumentem a densidade e a diversidade de usos dos espaços (especialmente os urbanos) e promover a adoção de tecnologias veiculares e de combustíveis menos poluentes (e.g. eletrificação da frota, biocombustíveis etc.).

Junto com o governo federal, os municípios deverão desenvolver sua rede de transporte de baixo carbono, olhando para veículos elétricos movidos a baterias de lítio, a células a combustível de hidrogênio verde e etanol. Principalmente beneficiando o transporte público e modalidades de transporte de pequenos deslocamentos, transformando a frota de ônibus em elétricas, ao mesmo tempo que expande o sistema metroviário e ferroviário no país. As principais rotas de escoamento para exportação precisam ser ferroviárias, assim como o transporte urbano nas capitais e municípios serão de baixa emissão de carbono.

O Brasil conta com uma matriz elétrica abastecida majoritariamente por energias renováveis, vastos recursos naturais e competências produtivas e tecnológicas na cadeia automotiva, apresentando forte potencial para impulsionar políticas públicas de eletromobilidade urbana sustentável, com foco no transporte coletivo, que contribuam para um estilo de desenvolvimento sustentável do ponto de vista ambiental, social e econômico, por meio de investimentos direcionados a ampliar a competitividade setorial. O Ministério da Educação pode ter um papel chave ao comprar ônibus escolares com essas tecnologias, gerando demanda e escala de mercado para viabilizar a indústria nacional. Essa transição ecológica na mobilidade em direção à mobilidade elétrica é importante para a redução de carbono e abre uma outra fronteira de geração de riqueza, tecnologia e renda para os brasileiros. Temos pesquisas em universidades e estatais que já podem ser aplicadas em uma indústria de mobilidade elétrica, e uma política industrial que congregue essas pesquisas a uma aplicação empresarial pode fazer florescer essa indústria verde.

Missão 4: Energia limpa e sustentável para todos

O setor energético é uma área chave para o desenvolvimento. De grande importância também, é o acesso que a eletricidade permite a bens e serviços (e.g. internet) que permitam uma inserção socioeconômica ampliada, diversificação produtiva e agregação de valor, no campo e na cidade. Destarte, os investimentos em energias renováveis podem contribuir substancialmente para um estilo de desenvolvimento mais igualitário e mais sustentável.

A rápida expansão da energia eólica e o desenvolvimento de sua cadeia produtiva no Brasil oferecem lições importantes sobre investimentos transformadores do estilo de desenvolvimento. A coordenação de políticas de oferta (e.g. financiamento BNDES combinado com política de conteúdo local) e de demanda (e.g. leilões), entre outras, mobilizou grandes investimentos em geração eólica – mais de 8,2 milhões de dólares em 2014 –, capacitação da mão de obra, expansão da indústria nacional e das competências tecnológicas e produtivas nacionais –131 fabricantes nacionais produzem 77 itens na cadeia de energia eólica –, além de ter gerado mais 150 mil empregos diretos e indiretos. Contribuiu também para a redução de desigualdades regionais, uma vez que o Nordeste é responsável por 80% da produção de energia eólica no país. No entanto, essa experiência deixa como principal lição aprendida a importância do diálogo social entre o governo, as empresas e as comunidades locais nos quais os empreendimentos se instalam, de modo a prevenir conflitos e assegurar benefícios para as comunidades. Precisamos fazer um PROINFA 2.0 que leve em conta esses aprendizados, dando novo impulso ao desenvolvimento tecnologias nacionais na cadeia das energias renováveis.

A escolha da transição energética do Brasil deverá ser estratégica, tanto para habilitar uma matriz energética que possa sustentar uma ampla expansão da capacidade industrial nacional como para também ser pilar de nossa soberania e fortalecimento geopolítico. Para isso, o Brasil precisa estar ao longo das próximas duas décadas na fronteira do conhecimento, desenvolvendo as tecnologias que irão abastecer o planeta no mundo pós-combustíveis fósseis.

Segundo o Plano Nacional de Energia 2050, o consumo potencial de energia elétrica poderá chegar, em 2050, a até 3,3 vezes o patamar observado em 2015. A necessidade de atender à crescente demanda elétrica do país traz desafios adicionais para a sustentabilidade da matriz elétrica, relacionados especialmente à capacidade de manutenção ou até expansão do relativo alto peso das fontes renováveis na sua matriz elétrica futura. No entanto, devido às crescentes restrições socioambientais em relação à construção de centrais com grandes reservatórios, torna-se cada vez mais insustentável a expansão de grandes centrais hidrelétricas. Estas pressões concentram-se especialmente nas terras indígenas. Esse ponto sublinha a relevância de uma estratégia de investimentos em energias renováveis não convencionais (ERNC), como fontes fotovoltaica, solar térmica, eólica offshore e onshore, biomassa, pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), geotermal, das marés, dos oceanos, do hidrogênio etc.

Logo, precisamos de uma mudança significativa em nossa matriz energética, especialmente no setor de transportes. Atualmente, essa é composta em cerca de 55% de fontes não renováveis, como carvão, gás natural e petróleo. É o momento de iniciarmos nossa transição para o 100% de neutralidade da matriz elétrica até 2035 e a energética até 2045.

Primeiro, precisamos compreender o papel da Petrobras nesse ponto. Ao passo que as principais empresas de petróleo do mundo, estatais ou não, desde Shell, British Petroleum e Aramco, começam a diversificar seus portfólios para projetos mais verdes, a estatal brasileira deve ser o pilar que liderará a transição energética no Brasil. A Petrobras e as concessionárias de energia pública poderiam liderar a agenda de desenvolvimento tecnológico. Poderiam apoiar o desenvolvimento com suas obrigatoriedades de gastos em P&D (Petrobras tem um gasto obrigatório de mais de 1 bilhão de reais em P&D por ano). Além disso, um grande programa da Finep e do BNDES poderia estimular a cadeia de fornecimento nacional dessas tecnologias com subvenção econômica.

É hora de investir de maneira categórica em novas tecnologias, como eólica em alto mar e hidrogênio verde. No Brasil, a eólica offshore tem pedidos de licenciamento no Ibama – para os parques eólicos Aracatu I e Aracatu II, no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, com capacidade de 12MW cada. Ao mesmo tempo, projetos com foco nos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará somam 42GW de energia eólica em projetos aguardando o licenciamento.

Outro ponto de investimento será o Plano Nacional do Hidrogênio Verde. Em 2019, a demanda global por hidrogênio era de 75 milhões de toneladas – a projeção atual é de que esse valor aumente em 7% por ano até 2050. Para que isso aconteça, devemos aumentar a capacidade instalada de eletrolisadores, desenvolver soluções para armazenar, transportar e distribuir hidrogênio líquido e gasoso, e criar arcabouços regulatórios que tragam estabilidade à nova indústria. Estamos falando de um mercado global que deve alcançar 2,5 trilhões de dólares.

De decisões estratégicas como essas, poderemos apoiar um Plano Nacional do Biogás e, a partir do amplo conhecimento brasileiro em biocombustíveis, o avanço do biometanol e projetos para transporte elétrico a partir de células combustíveis de hidrogênio e/ ou etanol. Desta maneira, por exemplo, diversificando a frota de veículos nacional, recebendo investimentos da indústria automotiva e garantindo que estaremos em uma melhor posição no mercado internacional para atender as melhores alternativas de transporte no longo prazo. Outro elemento fundamental é a infraestrutura de smart grids para integração eficiente das diferentes fontes.

Por fim, é fundamental o apoio aos municípios para o financiamento de energia renovável, principalmente os pequenos municípios. Para isso, poderia se utilizar da rede de instituições subnacionais de financiamento que chegam nas pequenas cidades e da caixa econômica federal. Por exemplo, relacionar programas de moradia com o uso de tecnologias renováveis, como a solar.

É essa a direção e o sentido da transformação do estilo de desenvolvimento que é proposta no presente documento. Os desafios que temos pela frente não são insignificantes, mas os benefícios potenciais esperados ao final desse processo certamente superam esse esforço.

Gerson Teixeira, Guilherme Mello, Jorge Messias, Maurício Muniz Barretto de Carvalho, Nabil Bonduki, Nilto Tatto, Penildon Silva Filho, Roberto Vizentin, Tiago Amaral Ciarallo