Economia

A inflação é extremamente perversa pois corrói o poder de compra e aumenta o custo de vida da população brasileira, interferindo no bem-estar e na garantia de direitos da população

Publicação da série Textos para Discussão - Economia e Desenvolvimento (pdf aqui)

Apresentação

O combate à inflação deve ser um objetivo fundamental da política econômica e compromisso inarredável do governo. A inflação é extremamente perversa pois corrói o poder de compra e aumenta o custo de vida da população brasileira, interferindo no bem-estar e na garantia de direitos da população. Os governos do PT obtiveram êxito no combate à inflação, no cumprimento das metas estabelecidas e no aumento do poder de compra da população, especialmente da população mais pobre.

Hoje a inflação está fora de controle e não respeita o intervalo estabelecido pelo sistema de metas de inflação. Vivenciamos uma deterioração do poder de compra da população e um trágico aumento da fome e da miséria. Enquanto isso, o governo renunciou ao uso de instrumentos importantes no combate à inflação, a começar pela política de preços de combustíveis que atende aos interesses dos acionistas da Petrobras em detrimento dos interesses nacionais. Em contrapartida, pratica uma política de juros altos que freia a recuperação brasileira acentuando o problema do desemprego, além de pouco contribuir para reduzir a inflação, que decorre essencialmente de um choque de custos.

Este documento tem como objetivo apresentar ideias-força para o combate à inflação e para a gestão das políticas monetária e cambial. Os princípios discutidos são (i) proteger o poder de compra dos brasileiros; (ii) não combater inflação com desemprego; (iii) mobilizar múltiplos instrumentos para uma inflação de múltiplas causas; (iv) a meta de inflação deve ser crível; (v) política cambial para reduzir a volatilidade do real e limitar a especulação nos mercados de câmbio; e, por fim, (vi) o Banco Central deve trabalhar em sinergia com o executivo, a serviço da população.

Proteger o poder de compra dos brasileiros

O principal objetivo do combate à inflação é proteger o poder de compra dos brasileiros. A inflação aumenta o custo de vida da população e reduz salários reais e outros rendimentos, além de provocar distorções distributivas. O histórico de inflação no Brasil mostra os perigos de uma inflação alta e a necessidade de um combate rigoroso à inflação que proteja o poder de compra dos brasileiros e preserve a moeda nacional no cumprimento das suas funções.

A inflação é especialmente perversa com os mais pobres, isso porque o seu impacto é desigual sobre as diferentes classes sociais e pode provocar aumento da desigualdade, da pobreza e no acesso aos direitos, como o direito à alimentação adequada. Por isso, o combate à inflação também deve atentar para a cesta de consumo das classes mais pobres onde pesam produtos como alimentos, gás de cozinha, serviços de água e energia elétrica, transporte público e aluguel.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a inflação acumulada em 2020 para as famílias de renda domiciliar mensal inferior a 1.650 reais foi em torno de 6% enquanto para as famílias de renda domiciliar mensal superior a 16.509 reais, foi de apenas 2,7%. Ou seja, os mais ricos sentiram menos o impacto da inflação do que os mais pobres, pois sua cesta de produtos foi menos impactada pelas variações dos preços. Dessa forma, a inflação tem um impacto desigual sobre a população brasileira e a sua composição é importante para determinar esse impacto.

Além disso, os mais pobres são os que têm menos condição de se proteger de processos inflacionários, uma vez que têm menos acesso aos instrumentos financeiros que protegem a renda e a riqueza da inflação. Os trabalhadores, principalmente os informais, dificilmente têm sua remuneração vinculada aos índices inflacionários, diferentemente da remuneração de formas de capital, como os aluguéis pagos aos detentores de imóveis ou o lucro de empresas que atuam em concessões públicas, com tarifas geralmente indexadas contratualmente aos índices de inflação. As exceções importantes são os salários e benefícios vinculados ao salário mínimo que nos governos do PT protegiam uma parte importante da população das perdas inflacionárias e ainda conferiam ganhos reais com a regra de reajuste pela inflação do ano anterior mais o aumento real do PIB de dois anos antes.

Portanto, o combate à inflação é um meio para garantir bem-estar social e os direitos sociais. Para tal é necessário preservar a estabilidade da moeda e o poder de compra da população, especialmente a de mais baixa renda.

Não combater inflação com desemprego

Combater a inflação com recessão e desemprego fere o princípio de que o combate à inflação deve proteger o poder de compra dos brasileiros. Ou seja, se o objetivo principal do combate à inflação é proteger o poder de compra da população brasileira, em especial de sua parcela mais vulnerável, a estratégia de combater a inflação com recessão e desemprego é contraproducente.

A inflação é um dos determinantes que afetam o poder de compra da população, mas esse também depende, evidentemente, do emprego e da evolução da renda. Dessa forma, o combate à inflação deve estar conciliado com a busca pelo pleno emprego e deve ser compatível com o crescimento da renda, especialmente os salários dos trabalhadores e o rendimento da parcela mais pobre da população.

Há diferentes caminhos para reduzir a inflação. Hoje, o caminho usado é desacelerar a economia por meio de um choque monetário (aumento de juros), mesmo em um contexto de desemprego e alta capacidade ociosa da economia brasileira. Esse caminho é um freio nas pretensões de recuperação econômica do Brasil e prejudica principalmente os trabalhadores, embora beneficie detentores de riqueza financeira.

Além disso, o aumento de juros fragiliza famílias endividadas e tem impactos distributivos via política fiscal, pois aumenta os encargos da dívida do governo que, por sua vez, transfere os serviços dessa dívida para uma parcela mais abastada da população.

Quando a política monetária faz opção pelo desemprego, essa sobrecarrega as políticas sociais e condiciona o próprio processo de desenvolvimento. Além disso, os juros excessivamente altos, e o alto diferencial entre juros doméstico e externo, tende a atrair fluxos de capitais especulativos, aumentar a volatilidade e valorizar excessivamente a moeda brasileira em relação ao dólar, com consequências sobre a estrutura produtiva.

Nesse sentido, uma política monetária que desacelera a economia em contextos de desemprego e capacidade ociosa é pouco eficaz na redução da inflação, mas tem um alto custo social arcado especialmente pelos mais pobres. A inflação é um problema distributivo e combater inflação com desemprego fragiliza os trabalhadores. Existem outras maneiras de combater a inflação a depender das suas diferentes causas.

Mobilizar múltiplos instrumentos para uma inflação de múltiplas causas

No Brasil, durante a vigência do regime de metas, a inflação interna frequentemente seguiu os movimentos da inflação externa, só que em patamar maior, como ilustra a figura abaixo. Nesse período, os maiores descolamentos da inflação doméstica em relação à média internacional ocorreram em períodos de fortes desvalorizações cambiais (2001, 2002, 2015 e 2020), por vezes combinados com choques internos de preços de alimentos, energia elétrica e outros preços administrados.

Portanto, a economia brasileira está sujeita a choques diversos, externos (câmbio, commodities, desorganização de cadeias produtivas), ou internos (alimentos, energia elétrica, combustíveis). Estes repercutem nos índices de inflação e são amplificados pela alta indexação da economia brasileira, que funciona como um mecanismo de propagação para o conjunto de preços da economia. Diante disso, a taxa de juros não pode ser considerada o único instrumento no combate à inflação.

O governo Bolsonaro perdeu o controle da inflação pois renunciou ao uso de instrumentos importantes no combate à inflação, a começar pela política de preços de combustíveis que, diferentemente dos governos do PT, atende os interesses dos acionistas da Petrobras em detrimento dos interesses nacionais. O desmonte da Petrobras e a redução da sua capacidade de refino realizados nos governos Temer e Bolsonaro comprometem a capacidade da economia brasileira de amortecer os choques externos e seus impactos na inflação.

Outros preços estratégicos, como o do gás de cozinha e da energia elétrica, também devem ser alvo de políticas especificas. Nesse sentido, a gestão de estatais como a Petrobras e a Eletrobras voltada para o interesse público contribui para o combate inflacionário.

Os preços de alimentos também foram uma importante fonte inflacionária nos anos recentes. Essa inflação tem impactos sociais graves e deve ser alvo de políticas como a de estoques reguladores de alimentos para garantir abastecimento interno e reduzir oscilações de preços. No caso brasileiro, os estoques da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram praticamente esgotados nos anos recentes. O arroz, alimento fundamental da população brasileira, que chegou a ter um estoque de 1,72 milhão de toneladas do grão em 2012, teve seu estoque reduzido para 1,77 mil toneladas em 2022, de acordo com os dados da Conab.

Outros instrumentos podem ser utilizados para amenizar a inflação de alimentos em momentos específicos, como o aumento de impostos sobre exportações e a redução de impostos sobre alimentos específicos. Ademais, organizar o sistema de distribuição, criar mecanismos de financiamento e incentivar a produção local de alimentos baseados na agricultura familiar pode reduzir volatilidade nos preços.

As políticas macroprudenciais também podem ser uma alternativa para conter a inflação causada por ciclos de crédito e excesso de demanda por bens específicos. A experiência brasileira do primeiro governo Dilma mostrou a eficácia desses instrumentos que amenizam a necessidade do aumento da taxa de juros em determinadas situações.

Além disso, reduzir a volatilidade da moeda brasileira por meio da política cambial é uma forma de amenizar os impactos inflacionários das mudanças no cenário externo. A orientação passiva para a política cambial nos últimos anos acentuou a volatilidade da moeda brasileira em relação ao dólar com consequências perversas para o índice de preços.

Uma reforma tributária voltada para a eficiência produtiva e redução das desigualdades tem potencial de reduzir a inflação no curto prazo ao transferir impostos sobre a produção e comércio para a renda e a riqueza. E, no longo prazo, uma política de investimentos voltada para gargalos logísticos pode reduzir as pressões de custos nos momentos de crescimento econômico.

Portanto, o combate à inflação deve amenizar o impacto dos choques de preços sobre a economia brasileira e reduzir propagação desses choques por meio do incentivo à desindexação de contratos. Para cuidar da inflação não basta o manejo da taxa de juros como ferramenta única, mas é preciso uma “caixa de ferramentas”. A inflação tem múltiplas causas e demanda múltiplos instrumentos para o seu combate eficiente e compatível com a busca do pleno emprego e do crescimento.

A meta de inflação deve ser crível

Os governos Lula cumpriram todos os intervalos estabelecidos pelo regime de metas de inflação em seu próprio governo. Dos 13 anos de governo do PT, em 11 anos a inflação esteve dentro dos intervalos estabelecidos pelo regime de metas de inflação. As exceções foram o ano de 2003, cuja meta foi estabelecida no governo anterior e o presidente Lula assume em meio a um forte choque cambial, e o ano de 2015, no segundo governo da presidenta Dilma, marcado pela crise de governabilidade e a construção política do golpe de 2016.

Além do cumprimento das metas, os governos do PT preservaram o poder de compra e proporcionaram ganhos reais para os trabalhadores, principalmente para os mais pobres. O salário mínimo, por exemplo, cresceu mais de 70% em termos reais nos governos do PT.

Já no governo atual, a inflação não estará no intervalo estabelecido pelas metas na metade dos quatro anos de gestão. Além disso, o período é marcado por uma forte deterioração do poder de compra da população, especialmente da população mais pobre. O salário mínimo, por sua vez, apenas repôs a inflação passada sem garantir praticamente nenhum ganho real.

Desde 2016, iniciou-se uma redução das metas de inflação que se mostra pouco factível para as características estruturais da economia brasileira. O patamar médio da inflação segundo o IPCA durante o Regime de Metas de Inflação (1999 a 2021) foi de 6,5% ao ano, muito acima do centro da meta estabelecida para 2023 e 2024 (3,25% e 3,0% respectivamente). Essa meta também é inferior até mesmo à média da inflação ao consumidor do mundo (4,0%) durante esse período.

Uma meta que é sistematicamente descumprida e exige taxas de juros excessivamente altas não contribui para o combate à inflação. A meta deve ser crível para cumprir seu papel institucional de orientar a atuação adequada da política monetária. A redução da meta de inflação será possível a partir da redução da vulnerabilidade da economia brasileira aos choques de preços (internos e externos) e do seu grau de indexação.

Nesse contexto, a gestão do regime de metas brasileiro vai na contramão do debate internacional sobre a política monetária. Este mudou após os impactos da pandemia e, antes disso, com as políticas de afrouxamento monetário observadas como resposta à crise financeira internacional de 2008. No centro do debate está a crítica a juros excessivos que comprometem o crescimento, têm alto custo fiscal e social, assim como efeitos distributivos regressivos. Em debate também está o desenho institucional dos regimes de metas no que se refere ao alvo da meta, seu horizonte temporal e sua flexibilidade.

Política cambial para reduzir a volatilidade do real e limitar a especulação nos mercados de câmbio

A taxa de câmbio é um preço que afeta a vida de todo brasileiro. Seus movimentos podem aumentar ou diminuir a inflação, favorecer alguns setores econômicos em detrimento de outros, melhorar ou piorar o poder de compra da população, afetar as contas públicas e o setor financeiro privado. Trata-se de um preço estratégico.

Apesar da sua importância, a taxa de câmbio entre a moeda brasileira e o dólar tem se mostrado uma das mais voláteis do sistema internacional e sujeita a ciclos de forte valorização e desvalorização, o que produz um cenário de incerteza e instabilidade e prejudica o combate à inflação assim como o planejamento e o investimento produtivo dos agentes privados.

Há importantes fatores que explicam essa volatilidade cambial, em particular: (1) o alto patamar da taxa de juros em relação a outros países, que torna a moeda brasileira um alvo preferencial das operações especulativas de carry trade; e (2) um ambiente institucional atraente para fluxos de capitais de curto prazo e para apostas nos mercados de derivativos de câmbio, onde se forma a taxa de câmbio dada a sua maior liquidez.

Nesse contexto, a política cambial tem a importante função de neutralizar distorções provocadas pelo setor financeiro, reduzir a volatilidade da taxa de câmbio e fazer com que esse preço estratégico acompanhe as necessidades da economia brasileira. Trata-se de um regime de flutuação administrada, com uma política cambial ativa, mas sem metas específicas para a taxa de câmbio.

Após a crise internacional de 2008, muitos países passaram a administrar fluxos de capitais e adotar outras políticas cambiais ativas, algo que gerou um extenso debate acadêmico e político sobre o tema e flexibilizou as recomendações de política de instituições como o FMI, que passou a publicar estudos orientando o uso de instrumentos de política cambial.

Os governos do PT fizeram uso das intervenções no mercado à vista, dos swaps cambiais, de políticas de regulação do mercado de câmbio e de administração de fluxos de capitais. Essa experiência de política cambial mostra que é possível buscar outro padrão de volatilidade cambial, especialmente no segundo semestre de 2012, quando, após um conjunto de medidas regulatórias sobre os fluxos de capitais, o mercado interbancário e o mercado de derivativos, a volatilidade cambial a atingiu o menor patamar desde o abandono do regime de bandas cambiais em 1999.

As reservas cambiais também têm papel estratégico na redução da vulnerabilidade externa. As compras de dólares nos governos Lula e Dilma permitiram pagar as dívidas com o FMI, evitaram uma valorização ainda maior da taxa de câmbio e, além disso, protegem o Brasil de ataques especulativos e amenizam a restrição externa que historicamente se colocou como uma barreira ao desenvolvimento brasileiro.

O Banco Central deve trabalhar em sinergia com o executivo, a serviço da população

O Banco Central (BC) atuou nos governos do PT com autonomia operacional/funcional, ou seja, autonomia na gestão dos instrumentos para cumprir objetivos determinados pelo governo. A Lei Complementar 179/2021 institui a garantia de mandatos longos e descasados do ciclo eleitoral. O PT foi contrário a esse projeto de Lei, dentre outros motivos, por conta do risco de captura da instituição pelos interesses financeiros e da necessidade de coordenação entre as políticas monetária e fiscal.

Essa lei, no entanto, não concede ao BC a independência na determinação dos objetivos de política monetária e cambial. Esses objetivos cabem ao Conselho Monetário Nacional (CMN), hoje presidido pelo ministro da Economia.

Além disso, a lei institui objetivos adicionais: “o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”, o que reforça o princípio de que o combate à inflação não deve fazer uso de recessão e desemprego.

Nesse contexto, o Banco Central deve trabalhar junto com o executivo para atingir os objetivos previstos por lei e as metas determinadas pelo CMN. Essa última instituição pode ampliar sua representatividade enquanto o Banco Central deve prestar contas à sociedade e criar mecanismos para tornar cada vez mais democrático e transparente o seu processo decisório.

Pedro Rossi (coordenador), André Biancarelli, Antônio Corrêa de Lacerda, Gabriel Galipolo, Guido Mantega, Guilherme Mello e Julia Braga integram o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas – Economia da Fundação Perseu Abramo