Política

Só Lula seria capaz de realizar um movimento de negociação que resultasse numa concertação tão ampla que incluiu até adversários de anteontem, sintetizado na escolha de Alckmin para vice

A eleição de Lula neste 30 de outubro de 2022 sintetiza o processo de décadas de lutas das classes trabalhadoras brasileiras. Foto: Ricardo Stuckert

Certos fatos concentram em si mesmos a capacidade simbólica de sintetizar processos históricos que os precederam e lhes deram forma. Podem lançar sobre eles uma luz nova, revelar dimensões ocultas e ressignificá-los sob o olhar das gerações seguintes dispostas a apropriar-se deles como experiências para as disputas sociais futuras.

A eleição de Lula neste outubro de 2022 carrega consigo esse potencial. Sintetiza o processo de décadas de lutas das classes trabalhadoras brasileiras por uma sociedade que não seja sustentada sobre as desigualdades criminosas que conhecemos e confirma uma perspectiva de retomada do desenvolvimento a partir da reconstrução de sólidos alicerces democrático-populares, com inclusão social, tolerância, sustentabilidade e soberania.

Essa vitória popular maiúscula que pode projetar uma virada pós-neoliberal no continente, nos permite compreender melhor, auxiliados já pela distância temporal, pela identificação de fatores aparentemente fortuitos e pelos nexos objetivos revelados entre eles, o desfecho do Golpe de 2016 contra a presidenta legítima Dilma Rousseff.

A sucessão dos acontecimentos, desde então, e seu desfecho neste outubro de 2022, deixa claro que o golpe judicial-midiático-parlamentar se constituiu numa grave ruptura do processo institucional, nos marcos da democracia liberal em curso desde a promulgação da Carta de 1988, em favor dos segmentos mais ricos da sociedade, inconformados com as sucessivas derrotas eleitorais, a partir de 2002.

A vigência, ainda que limitada, da chamada Constituição Cidadã, abriu espaço, ao longo das últimas décadas, para viabilizar experiências políticas inovadoras, participativas em municípios, estados e, a partir de 2003, também em âmbito nacional, lideradas por uma ampla composição política identificada com os setores populares.

Tal estratégia de ruptura posta em andamento a partir das manifestações de 2013 e cujo desfecho se deu em 31 de agosto de 2016, foi precedida de movimentos que corresponderam objetivamente aos interesses de grandes investidores estrangeiros, sobretudo norte-americanos, no marco das “revoluções coloridas”, expressão tática da estratégia mais ampla das “mudanças de regime” protagonizadas pelo Departamento de Estado em diferentes regiões do mundo para estabelecer ou recuperar o controle sobre fontes de energia.

No caso brasileiro, tal estratégia objetivava recuperar o controle sobre a exploração das imensas jazidas descobertas em 2007 no pré-sal, para apropriar-se da renda-petróleo, fonte indispensável de financiamento de qualquer projeto de desenvolvimento duradouro e autônomo para um país das dimensões do Brasil.

Aqueles investidores foram apoiados internamente com entusiasmo por seus associados nacionais, nas camadas sociais situadas “no andar de cima”, no solar da casa-grande. Estavam, estes, inconformados com as políticas dos governos populares voltadas para ampliar a possibilidade de participação política da cidadania e, não menos importante, o acesso democrático por meio de políticas de inclusão social, à renda e à riqueza produzidas por uma das sociedades mais desiguais do mundo.

O Brasil ensaiava, naquele momento, passos tardios, mas significativos no sentido de superar a fratura social herdada da colônia e da chaga da escravidão que historicamente nos caracteriza.

Como se estivessem seguindo um roteiro informal descrito no livro Como as Democracias Morrem (Lewitski e Ziblat, Ed. Saraiva), o conservadorismo brasileiro começou a mover-se, por dentro das instituições, depois de quatro derrotas eleitorais consecutivas, dentro dos marcos da democracia liberal da Carta de 1988, para levar ao colapso o sistema político por ela pactuado.

Era necessário destruir o principal suporte daquela experiência de inclusão social em larga escala: o Partido dos Trabalhadores. A história se encarregou de frustrar esse objetivo. O PT resistiu. Foi um dos poucos partidos que sobreviveram com identidade definida ao colapso do sistema político.

Um déficit histórico do parlamento brasileiro no cumprimento de suas funções institucionais, uma renúncia sistemática a enfrentar temas espinhosos, mas sensíveis para a sociedade (demarcação das terras indígenas, emendas de relator ao orçamento, orçamento secreto, descriminalização do aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, descriminalização da maconha etc.), abriu caminho para um atalho: recorrer ao STF para dirimir questões de competência precípua do Legislativo.

Esse recurso cada vez mais assíduo produziu inicialmente uma distorção nas relações entre os poderes definida pela expressão “judicialização da política”. O que fez do Judiciário uma espécie de poder tutelar sobre os demais poderes e fatalmente engendrou sua contraface: a “politização da justiça”, com o STF cumprindo seu papel histórico de cidadela de defesa do conservadorismo.

Em 2015 vimos a aprovação da Emenda Constitucional No 88, que elevou de 70 para 75 anos a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A emenda, definida como a “PEC da Bengala” foi noticiada pelos jornais como a norma que retirou de Dilma Rousseff a possibilidade de “indicar cinco ministros para o Supremo”, para que a então mandatária, mais tarde golpeada por uma conspiração, não indicasse os próximos juízes da Suprema Corte em substituição aos ministros Celso de Mello com aposentaria prevista para novembro de 2015; Ricardo Lewandowski, maio de 2018; Teori Zavascki, agosto de 2018, e Rosa Weber, outubro de 2018.

Todos tiveram sua continuidade no STF prorrogada, exceto o ministro Zavascki, que faleceria num misterioso acidente aéreo pouco depois de ter repreendido publicamente o então todo-poderoso juiz Sérgio Moro, da 13a Vara de Curitiba, líder da ruidosa operação Lava Jato, pelos atropelos cometidos contra o processo penal e o Estado Democrático de Direito, e seria substituído pelo ministro Alexandre de Moraes.

É possível afirmar que a operação Lava Jato durante certo período de sua vigência – apoiada fortemente pela mídia corporativa – sequestrou setores do Judiciário brasileiro com seu discurso anticorrupção, mais tarde desmoralizado de forma cabal pelos fatos.

O senador Romero Jucá (MDB-RR), uma das inteligências mais agudas e inescrupulosas a serviço das oligarquias brasileiras, ofereceu ao país, num diálogo com o empresário Sérgio Machado, amplamente divulgado pela imprensa à época, a fórmula que sintetizou o arranjo político-institucional que seria utilizado pelos segmentos conservadores da sociedade, para provocar a ruptura do regime quando o aparato dos órgãos de controle ameaçava perigosamente alcançar suas relações promíscuas com o Estado.

Era necessário afastar Dilma Rousseff da Presidência:

“É preciso estancar a sangria” (Romero Jucá);”É um acordo, botar o Michel (Temer), num grande acordo nacional”  (Sérgio Machado); “Com Supremo com tudo” (Romero Jucá).

Dilma foi golpeada. Michel Temer ascendeu ao poder pela porta dos fundos para “estancar a sangria”. E o STF chancelou o golpe: naquele comentário Romero Jucá foi profeta. Um profeta que se empenhou em construir minuciosamente a própria profecia...

A sessão da ignomínia liderada pelo presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, em 17 de abril de 2016, consumou o drama: a primeira mulher eleita presidenta do Brasil foi afastada por um golpe institucional, midiático-judicial-parlamentar, chancelado pela Corte Suprema.

Esse foi o resultado de uma operação criminosa, movida contra um governo legítimo, pelo conluio flagrado de forma irrespondível pela ação do cidadão Walter Delgatti, o “hacker de Araraquara”, e mais tarde reconhecido pelo próprio Judiciário, entre setores do Ministério Público e a 13a. Vara de Curitiba, conduzida por Sérgio Moro: a operação Lava Jato.

Uma operação cinematográfica liderada pela dobradinha Moro/Dallagnol, auxiliada por uma falange de intocáveis ao estilo “Chicago Anos 30” composta, entre outros, pelos procuradores Januário Paludo, Carlos Fernando Santos Lima, Antônio Carlos Welter, Orlando Martelo Júnior, Diogo Castor de Matos, entre outros nomes apaniguados pelo Procurador-Geral da República Rodrigo Janot. Nomes que, por todos os motivos, não merecem a injustiça de serem esquecidos pela sociedade brasileira...

A disseminação do que poderíamos definir como uma “cultura lavajatista”, voltada para criminalizar a atividade política no país, estimulada diariamente pela imprensa corporativa ousou pôr em xeque o Estado Democrático de Direito, expor o sistema Judiciário a uma sequência de vexames, abrir caminho para a emergência de um Estado Policial – uma espécie original de República dos Procuradores – e, em seguida, culminar com a instalação de um governo com características neofascistas no país.

Nada mais emblemático dessa catástrofe judicial do que a decisão emitida por unanimidade pelos desembargadores Gebran Neto, Thompson Flores e Leandro Paulsen, do TRF 4, condenando Lula a dezessete anos, um mês e dez dias de reclusão, para impedi-lo de concorrer nas eleições presidenciais que se aproximavam.

E a assunção posterior de um homem medíocre, o juiz Sérgio Moro à condição de super-ministro da Justiça do governo neofascista que ajudou a eleger e tomou posse em janeiro daquele ano. Uma retribuição pelos serviços prestados.

A prisão de Lula em 7 de abril de 2018 e sua permanência por 580 dias nas dependências da Polícia Federal, em Curitiba, constituiu-se no corolário indispensável do golpe de estado de 2016, que interrompeu o quarto mandato consecutivo dos setores populares, ao afastar a presidenta legítima Dilma Rousseff.

Naquele momento de luto para as forças democráticas do país, as elites conservadoras sentiram-se com força suficiente para afastar Lula, líder em todas as pesquisas de opinião, da disputa presidencial de 2018, assegurar a vigência das políticas neoliberais regressivas conduzidas por Temer e tentar abrir caminho para uma candidatura de direita capaz de legitimá-las pelo voto.

O resultado foi o que conhecemos: no embate eleitoral a direita convencional que conduzira o golpe, acabou por curvar-se à liderança da extrema-direita que tomou para si o programa neoliberal radical e se afirmou como alternativa viável para vencer inicialmente um adversário que se encontrava ilegalmente preso – o ex-presidente Lula – e, no final do processo, seu substituto, o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.

Em síntese, a direita liberal, tal como a conhecíamos desde a Constituição de 1988, não vacilou em voltar-se contra ela e erguer o palanque para a vitória da aventura neofascista, liderada por um energúmeno, aninhado há quase três décadas no submundo do sistema político.

Para fazer justiça ao povo brasileiro, frequentemente exposto como politicamente atrasado ou mesmo despido de consciência política, recorde-se que, mesmo vendo seu principal líder achincalhado, encarcerado e impedido arbitrariamente de disputar as eleições respaldou seu substituto, o professor Fernando Haddad, no segundo turno com 47.038.963 votos, correspondentes a 44,87% do total.

A sociedade brasileira estava se dando conta da dimensão do pesadelo em que fora mergulhada pelos construtores da falaciosa “ponte para o futuro” anunciada por Temer desde o golpe de Estado de 2016.

A partir da posse do novo mandatário, em janeiro de 2019, ladeado por dois superministros – Paulo Guedes e Sérgio Moro – o país passou a ser governado pela crise. A perspectiva anunciada pelo energúmeno com a frase “Eu não venho para construir nada. Eu venho para destruir”, antecipou a política de terra arrasada que se seguiria nas diferentes áreas do governo até a colheita do desastre deste segundo semestre de 2022.

O país, tomado pelo espanto, tornou-se expectador de ameaças semanais ao sistema democrático, do aprofundamento daquele programa econômico neoliberal herdado do governo golpista de Michel Temer, da desconstrução agressiva do sistema educacional, de cultura, de saúde pública (SUS), de assistência social, das políticas ambientais, do acúmulo qualificado e reconhecido do que foi, ao longo do século, a política de relações exteriores, entregue naquele momento a um homúnculo idiotizado pelo fanatismo.

Em março de 2020 fomos tragados pela pandemia da Covid-19, como todo o mundo. Não precisamente como todo mundo. A incúria, a insensibilidade, a incompetência e a corrupção no Ministério da Saúde do governo neofascista fizeram com que o Brasil, um país cuja população soma algo como 2,7% dos habitantes do planeta, alcançasse 13% do total de óbitos causados pela pandemia. Mais de 685 mil mortos. A maior tragédia sanitária da nossa história. Essa condução criminosa produziu uma erosão insuperável na base social e política do governo. E lhe custou acusações de crimes contra a humanidade em tribunais internacionais.

A libertação de Lula em 8/11/19, a partir da mudança de entendimento do STF sobre a prisão em segunda instância; o reconhecimento da Suprema Corte, em decisão do ministro Edson Fachin, em 8 de março de 2021, da incompetência da 13a Vara de Curitiba para julgar Lula e a subsequente decisão de reconhecer a parcialidade do Juiz Moro na condução dos processos, iniciativa do ministro Gilmar Mendes, levaram à nulidade das sentenças emitidas pelo então magistrado e ao reconhecimento público da maior farsa já registrada no sistema judicial brasileiro.

Lula volta ao cenário da disputa eleitoral: a segunda-feira, 8 de março de 2021, nos permitirá compreender melhor o significado do fatídico 7 de abril de 2018. Naquela data Lula não buscou refúgio na embaixada de algum país amigo, não lançou granadas, tiros de fuzil, nem esboçou reação à determinação judicial. Ali no espaço simbólico que lhe deu berço como liderança popular – o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC –, rodeado por uma pequena multidão de apoiadores, emitiu ao país sua mensagem de inconformismo diante da injustiça que estava sofrendo, se apresentou à Polícia Federal enviada por Moro e foi conduzido ao cárcere, em Curitiba.

O Brasil parou para ouvir Lula no 10 de março de 2021. Ao conceder entrevista coletiva no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, confirmou a insuperável capacidade de lidar com o universo simbólico da luta política. E dali, do berço de onde retira a energia, que o mantém na cena política há mais de quarenta anos, falou para o país, para que o mundo o ouvisse. O que se seguiu foi fulminante: em 15 de abril o Plenário do STF declarou a incompetência da 13ª Vara de Curitiba para julgar os processos contra Lula. Em 21 de junho de 2021 o STF decretou a suspeição de Moro.

Estava aberto o caminho para a laboriosa estratégia de reaproximar o centro democrático e os setores da direita convencional incomodados com os maus modos da extrema-direita e convencê-los de que a ruptura havia sido tão profunda que tornara inviável uma terceira via: agora tratava-se de escolher entre a civilização e a barbárie, entre a democracia e o neofascismo.

Só a figura de Lula, e o que ele significa simbólica e politicamente, seria capaz de realizar, navegando ao largo das complicadas elaborações teóricas sobre a necessidade da Frente Ampla para derrotar o energúmeno, um movimento prático de negociação que resultasse numa concertação tão ampla que incluiu até seus adversários de anteontem, sintetizado na escolha do vice, Geraldo Alckmin.

O que de fato ocorreu ao longo de 2022 no Brasil foi a demonstração da capacidade de uma liderança colossal, sem paralelo na história do país, que emergiu das classes trabalhadoras, dos excluídos de sempre, de reocupar o protagonismo na cena política, costurar com os demais atores uma concertação social, política e cultural capaz de resgatar segmentos da direita convencional e mesmo do centro-democrático, da hegemonia avassaladora da extrema-direita e abrir caminho para derrotar o neofascismo.

A combinação desse lúcido esforço de conjugar forças sociais e políticas heterogêneas com sua inacreditável capacidade de convocação e mobilização das forças populares para uma vasta campanha nas ruas e redes, reforçada no segundo turno, resultou nessa vitória maiúscula dos setores progressistas da sociedade brasileira que haverá de conduzir o país a reencontrar-se consigo mesmo e com seu projeto de nação democrática, inclusiva, tolerante, sustentável e soberana. Talvez seja útil revisitar a premonição do poeta:

“Aprendemos que a construção do Brasil

não será obra apenas de nossas mãos.

Nosso retrato futuro resultará

da desencontrada multiplicação

dos sonhos que desatamos...”

Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo

Thiago Pádua é advogado e professor universitário. Ex-assessor no Supremo Tribunal Federal