Cultura

A conjuntura, que sobrevivemos desde 2019, colocou a necessidade vital do desenvolvimento, efetividade e consolidação da cidadania cultural e de uma cultura cidadã e democrática

Colocada em cena pela guerra bolsonarista e pela luta democrática, a cultura esteve na agenda político-eleitoral. Foto: Ricardo Stuckert

A cultura ocupou lugar de destaque nas eleições presidenciais brasileiras de 2022. Ela ainda não conquistou a posição de centralidade, como os fazedores de cultura almejam. Como nunca, tal meta esteve próxima de ser alcançada. As diversas referências de Lula à temática atestam o agendamento da cultura na campanha e entre as preocupações do presidente eleito.

Diferentes fatores mobilizaram a cultura a ocupar tal posição. Alguns deles nasceram da dinâmica de atitudes, posturas e manifestações do campo cultural a favor da pluralidade, da diversidade e das liberdades, caras ao ambiente democrático e à vida cultural ativa. Outros derivaram da resistência à atuação da extrema-direita, que tomou o poder nacional e declarou uma guerra cultural contra todas as manifestações de culturas emancipadoras e buscou impor a monocultura autoritária, fundamentalista e negacionista.

Com exceção dos cantores sertanejos do agronegócio e de outros poucos fazedores à direita de cultura, o campo cultural assumiu papel de oposição à gestão Messias Bolsonaro. Ele enfrentou lutas cotidianas e específicas contra o maltrato bolsonarista da cultura: censura, perseguições, cortes de orçamento, violências físicas e simbólicas. O campo cultural conseguiu se organizar, unir e empreender lutas mais amplas, em especial, relativas às leis vitoriosas e federativas de apoio à cultura: Aldir Blanc I, Paulo Gustavo e Aldir Blanc II. Na luta, os ativistas da cultura sensibilizaram e fomentaram alianças com setores relevantes do parlamento, com ênfase para os democráticos e de esquerda.

A cultura colocada em cena pela guerra cultural bolsonarista e pela luta democrática do campo cultural esteve na agenda do ambiente político-eleitoral. A cultura soube expressar os anseios e angústias de amplos setores democrático-populares, apreensivos com a destruição de liberdades, direitos, soberania nacional e civilidade, que marcam de modo brutal a gestão Messias Bolsonaro. A sintonia entre as manifestações culturais e o grave momento vivenciado pelo povo brasileiro se tornou notável durante o processo político-eleitoral.

Os números eleitorais em sua frieza, por vezes, escondem a expressiva vitória de Lula e das forças democráticas em uma das eleições mais arbitrárias, desiguais, violentas e antidemocráticas já vividas no país. A campanha oficial destruiu normas básicas de garantia de uma disputa eleitoral equânime e utilizou de modo escandaloso: o raivoso antipetismo construído pela grande mídia oligopolista; a cruel combinação de ódio, violência e medo; o gigantesco orçamento secreto; os enormes apoios financeiros de empresários; a corrupção e compra de apoios e votos; a coação a trabalhadores do campo e da cidade; o intenso assédio eleitoral; a politização das igrejas fundamentalistas evangélicas e católicas impondo voto quase obrigatório; a proliferação das fake news, em especial relativas a chamada pauta dos costumes; a manipulação escancarada de dados oficiais; a mobilização de forças armadas para interferir nas eleições; a desenfreada instrumentalização eleitoral de todo aparelho do estado nacional. Enfim, a degradação do que restava de democracia e de cultura democrática no Brasil, depois do golpe de 2016, da gestão golpista de Temer, das eleições antidemocráticas de 2018 e da extrema-direita no poder federal, a partir de 2019.

A gigantesca vitória de Lula e das forças democráticas interrompe tal processo. Mas a interdição e a superação da degradação do país, em todas as suas dimensões, exigem clareza e habilidade na atuação frente aos gravíssimos desafios e problemas derivados do profundo retrocesso político-social, que atingiu o Brasil. O texto trata de um deles: como encarar o tema da cultura?

No contexto da imprescindível reconstrução do país cabe discutir o lugar que a cultura irá ocupar no processo de refundação do Brasil. Ela não pode continuar a ser tratada como ornamento secundário, que sempre é mobilizada no calor da campanha político-eleitoral. Carente de cultura democrática, a reconstrução na nação brasileira não terá presente, nem futuro, sem o enfrentamento da questão cultural com cuidadosa atenção. O tema da cultura emerge como vital para que a refundação aconteça em novas bases radicalmente democráticas.

A cultura e o campo cultural, além de cotidianamente continuar a exercitar a imaginação e sensibilizar a sociedade, os partidos e agentes políticos democráticos, deve assumir o compromisso com a criação, difusão e preservação de uma cultura, que não se conceba como etérea e neutra. Como se constata no Brasil atual, a cultura não está à margem do mundo. Ela, como qualquer fenômeno humano-social, é disputada por contradições, lutas e tensões político-culturais, que atravessam a sociedade. Entretanto, não se trata, sem mais, de guerra cultural, pois ela sempre pretende a transformação do adversário em inimigo a ser destruído. Antes se busca uma salutar disputa político-cultural-estética-científica, que estimule criatividade, invenção, inovação e imaginação; preserve e promova alteridade, pluralidade e diversidade e constitua, através desses fundamentos, a dinâmica cultural e a vida democrática.

O novo Brasil, que todos almejamos e lutamos para 2023, não pode se contentar com os justíssimos e necessários desenvolvimentos das mais diversas áreas culturais. Eles, por mais importantes que sejam, sozinhos não bastam. A triste conjuntura, que sobrevivemos desde 2016 e mais especificamente desde 2019, colocou em cena, de modo cruel, a necessidade vital do desenvolvimento, efetividade e consolidação da cidadania cultural e de uma cultura cidadã e democrática no país, tão fragilizado por sua ausência. A sociedade civil e política brasileiras; as forças democráticas e de esquerda; os artistas, intelectuais, mestres populares, professores e demais fazedores de cultura devem colocar, com prioridade, na agenda pública o tema da cultura cidadã e democrática e da cidadania cultural. Ele é vital para o enfrentamento político-cultural imprescindível para a democratização da sociedade e do estado brasileiros e para que a barbárie sofrida nos anos atuais não se repita.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da UFBA