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No Qatar, a seleção do Marrocos desfralda a bandeira da Palestina e celebra seus gols com ela, desfilando pelo gramado durante a Copa do Mundo

Jogadores da seleção do Marrocos celebraram classificação com bandeira da Palestina. Foto: Reprodução Twitter

No Qatar, a seleção do Marrocos desfralda a bandeira da Palestina e celebra seus gols com ela, desfilando pelo gramado durante a Copa. Mas não é a primeira nem será a última vez em que a potência de difusão dos esportes servirá à causa dos oprimidos – o que só lhe confere dignidade.

Vimos pelo mundo todo jogadores ajoelharem-se na hora de cantar o hino nacional, em protesto silencioso pelo fuzilamento de negros pela polícia nos Estados Unidos, protesto capitaneado pelo movimento Black Lives Matter. Gerou polêmica e em muitos casos os atletas sofreram sanções, tanto dos clubes quanto das instituições oficiais. Nem por isso deixou de se disseminar.

Essa relação vem de longe e teve um ponto alto nas Olimpíadas presididas por Adolf Hitler na Alemanha, em 1936. Sob propaganda da superioridade dos louros de olhos azuis ou “raça ariana”, o prélio pretendia servir de vitrine para os méritos do nazismo. Mas, para consternação geral, um negro norte-americano, Jesse Owens, desmentiria a propaganda. Ele ganhou quatro provas, a saber: 100 e 200 metros rasos, salto em distância e revezamento 4x100. Recebeu quatro medalhas de ouro, nas barbas dos nazistas. E foi a primeira vez na História que um mesmo atleta levou as quatro simultaneamente. Uma lição de quem fora menino no Alabama.

Mais tarde, nas Olimpíadas do México, em 1968, no auge do movimento pelos direitos civis, ao vencerem a prova dos 100 metros rasos dois norte-americanos negros subiram ao pódio. Mas, em vez de cantar o hino nacional, Tommie Smith e John Carlos levantaram o braço com o punho cerrado, na saudação em voga do Black Power. Foram imediatamente desclassificados, é claro.

Neste capítulo não podemos deixar de lembrar o grande Muhammad Ali, que utilizou de forma sistemática sua projeção no ringue para promover a causa negra. Era bem-falante e seu senso de humor afiado provocava os brancos opressores, invectivando-os e proferindo verdades desagradáveis. Gostava de se jactar de sua força e de sua beleza (coisa que os brancos não admitiam: negro não pode ser bonito...). Como também era superiormente inteligente, acertava no alvo e deixava os críticos com as orelhas a arder.

Nessa época, tinha destaque nos Estados Unidos a religião black muslim, que pregava a violência e invertia as crenças predominantes, alardeando que Deus era negro e o Diabo branco, sendo os negros a raça superior, sua superioridade usurpada pelos brancos. Um dos adeptos era o notável líder Malcolm X, que escreveu uma bela autobiografia e que morreria assassinado. Pois bem, Cassius Clay converteu-se, adotou o nome de Muhammad Ali e rejeitou seu nome “de branco”, como ele dizia, nome dado pelos brancos nos velhos moldes racistas do Sul, sob o império das Leis Jim Crow. Tudo isso se passou durante o ápice dos movimentos pela emancipação negra nos Estados Unidos, quando a ala não-violenta tinha à frente Martin Luther King, a quem também espreitava a bala assassina. Campeão do mundo, a postura de Muhammad Ali, que se recusou a ir lutar na Guerra do Vietnã (“Os vietnamitas nunca me xingaram de negro”, foi sua explicação), pagou-se em prisão, sacrifício da carreira e da saúde. Com o título cassado, ficaria cinco anos proibido de lutar, e isso nos píncaros da fama e da forma física.

É de Muhammad Ali uma notável definição do esporte. Indagado sobre o que é o boxe, o pugilista respondeu: “Boxe é isto: os brancos pagam para dois negros baterem um no outro enquanto eles ficam olhando.” Perfeito, não é? Não é de admirar a quantidade de negros nos times europeus de futebol, pois o princípio é o mesmo. A tal ponto, que no presente jogo Marrocos x França, o escrete marroquino era uniformemente árabe de fenótipo, enquanto o escrete francês era metade negro. Ou seja, os brancos pagam para os negros baterem um nos outros também nos campos de futebol, enquanto eles se divertem... E nem precisam jogar, é como nas guerras imperialistas do século 21: by proxy.

A realização da Copa no Qatar, ou seja, pela primeira vez num país árabe-africano, virou o tabuleiro. O que se vê é uma maciça torcida panárabe, que levantou a bandeira palestina em todos os jogos. Uma braçadeira com as cores dessa bandeira foi fabricada por um torcedor e distribuída aos correligionários.

A vitória do Marrocos frente à Espanha teve ressaibo de revanche do colonizado. Pois, dos três países que constituem o Mahgreb – Marrocos, Argélia e Tunísia – todos de colonização francesa, o Marrocos é parcialmente de colonização espanhola, além de ter sido um Protetorado desse país. E foi pomo da discórdia entre França e Espanha já bem entrado o século 20. Até hoje a Espanha mantém dentro do Marrocos o território de Ceuta, há tempos sob soberania espanhola.

O júbilo pelo desempenho da seleção marroquina ante a espanhola alastrou-se por todo o mundo árabe. Vimos crianças aclamando-a dentro de campo de refugiados, pois o futebol é a diversão preferida nas precárias condições em que vivem; vimos a dança e o ululo de mulheres em diferentes países; vimos engalanada a cidade de Ramallah, sede do governo palestino, onde Yasser Arafat está enterrado. Sem falar nas comemorações que pegaram fogo nas cidades europeias onde há concentração de emigrados marroquinos: Paris, Bruxelas, Londres, Madri, Barcelona. Também saudou a vitória o Club Deportivo Palestino, time de futebol de modestas proporções, mas com um século de existência, várias vezes campeão nacional no Chile, onde há numerosa colônia com cerca de 300 mil palestinos.

Rompendo o monopólio, pela primeira vez na História realiza-se num país árabe uma Copa do Mundo de futebol. Só isso – e vejam como mudam as regras do jogo...

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate