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A diversidade, tanto ambiental, quanto social, devem ser compreendidas como orgânicas uma à outra. Assim, poderemos levar à risca a diretriz de “não deixar ninguém para trás”

Nos últimos anos foram desenvolvidas práticas de OP voltadas para as mulheres, para os jovens, para os idosos, para o meio ambiente e para instituições de ensino, de saúde etc. Foto Marcos Barbosa/Comus Belém

A cidade como promessa da boa vida

A cidade é uma promessa de vida melhor. Os homens juntam-se para viverem na cidade e ali permanecem a fim de “viver a boa vida”, disse Aristóteles1, que compreendia a cidade como uma associação formada para o bem viver.

Por sua vez, Mumford2 afirma que o impacto do exercício de experiências compartilhadas que a vida nas cidades oportunizou recompôs a vida aldeã dos camponeses num padrão mais complexo e instável.

Esse padrão foi resultado da contribuição de diferentes tipos que passaram a viver nas cidades, como o mineiro, o lenhador, o pescador, o mercador, o soldado, o sacerdote, o engenheiro etc. Cada qual “levando consigo os instrumentos, as habilidades e os hábitos de vida formados sob diferentes circunstâncias.

Para ele, foi essa complexidade que possibilitou uma “enorme expansão das capacidades humanas em todas as direções” e mobilizou o potencial humano ao ponto de produzir uma “explosão de inventividade”.

Ou seja, mais do que qualquer outro fator, é a interação inédita entre pessoas com diferentes experiências de vida, cultura, vivências e classes sociais que tornou a cidade uma novidade transformadora, uma experiência humana tão significativa que não pode ser compreendida apenas na sua dimensão econômica e material, pois ela produziu condições inéditas para a “invenção de direitos e de inovações sociais”3, que elevaram os desejos e as possibilidades humanas.

É muito importante não perdermos de vista essas maravilhosas potencialidades e realizações da vida nas cidades para que possamos enfrentar os imensos desafios presentes, entre os quais se destacam o crescimento das desigualdades e o aquecimento global. Ambos com consequências civilizatórias regressivas já amplamente demonstradas.

São situações tão graves que estão distanciando a vida na maioria das cidades do sonho da “boa vida”, estimulam a sensação de impotência e fomentam posturas sociais conformistas. Um ambiente propício de ser capturado por alternativas não democráticas e salvacionistas que nunca deram bons resultados.

Isso coloca para o campo democrático e humanista o desafio de encontrar maneiras de fazer com que o espaço público recupere a vitalidade criativa necessária para reaproximar a vida nas cidades desse ideal da vida boa. O que, entre tantas coisas, requer que as estruturas institucionais dos governos tenham uma configuração institucional mais permeável a recepcionar a inteligência dos cidadãos e os incorporem nos processos de deliberação e tornem as decisões mais legítimas, tanto política quanto socialmente.

Um descompasso preocupante

Essa permeabilidade das estruturas governamentais é necessária para conseguirmos superar o enorme descompasso entre a velocidade da ocorrência de eventos climáticos extremos e a vagarosa implementação dos acordos feitos para mitigar os efeitos do aquecimento global e enfrentar as desigualdades. Apesar de haver muitas iniciativas inovadoras em curso, nenhuma ainda conseguiu alcançar a escala e o ritmo necessários para evitar que os piores cenários previstos aconteçam.

Esse descompasso gera crescentes incertezas quanto ao efetivo compromisso dos governos em mudar o curso atual, pois não faltam os instrumentos legais, o conhecimento sobre as suas causas e, sequer, uma ampla informação sobre as consequências que a demora na tomada de decisões já está produzindo.

Essa preocupação foi expressa na fala do presidente da COP26, Alok Sharma, ao alertar as autoridades de que “nem durante a pandemia as mudanças do clima tiraram férias e todas as luzes do painel climático estão vermelhas”.

Mesmo que os governos nacionais ainda sejam os principais protagonistas nos acordos globais e possuam um papel imprescindível para que as suas metas sejam alcançadas, as cidades possuem um papel reconhecidamente relevante na produção de alternativas.

Além de consumirem cerca de 70% dos recursos disponíveis e a maior parte da energia gerada, elas emitem grande parte dos gases responsáveis pelo efeito estufa e são onde as desigualdades mais se manifestam. Tanto que a Agenda 2030 reconhece que “o desenvolvimento e a gestão urbana sustentável são cruciais para a qualidade de vida de nosso povo.”

Pois bem! Essa lentidão na implementação das ações previstas nos acordos internacionais suscita uma pergunta fundamental: quais atores precisam ampliar seu protagonismo no processo de tomada de decisão para podermos acelerar a transformação dos objetivos e metas dos ODS em programas e políticas públicas na direção da transição ecológica?

As práticas participativas apontam novas possibilidades

De minha parte, creio que a resposta para esta pergunta está sendo construída, em grande medida, nas milhares de práticas de democracia participativa em curso no mundo, notadamente nas práticas de Orçamento Participativo.

É isso que nos indica o recente estudo feito pela OIDP4, que, depois de analisar 4400 projetos financiados pelos OP’s em dez cidades, em diferentes contextos, identificou mais de 900 projetos com impacto na mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas, evidenciando que a “participação do cidadão pode e deve ser uma ferramenta transformadora no combate às alterações climáticas”.

Algo muito interessante, pois o OP foi concebido precisamente para ser uma alternativa ao déficit de participação dos arranjos tradicionais de democracia. Essa capacidade de renovação e expansão para os mais diferentes lugares no mundo e a sua eficácia na produção de alternativas efetivas no combate às alterações climáticas desafiam as repetidas alegações sobre o desinteresse dos cidadãos em participar da vida pública.

Tanto que as diferentes práticas de OP em curso já envolvem milhões de pessoas em todos os continentes e vultuosas somas de recursos financeiros5, alcançando cidades do porte de Paris, Madrid, Lisboa, Bolonha, Nova York, Seul, Chengdu e tantas outras.

Outra novidade é o fato de o OP ter deixado de ser uma prática exclusiva da gestão nas cidades e ter alcançou o âmbito nacional, como em Portugal e Moçambique, assim como a interessante experiência ocorrida no Peru, a partir de uma lei nacional.

Outra novidade desenvolvida nos últimos anos são as práticas de OP voltadas para as mulheres, para os jovens, para os idosos, para o meio ambiente e para instituições de ensino, de saúde etc. O que conferiu ao OP uma dimensão e escala impossíveis de imaginar quando do seu surgimento e confirmam a sua versatilidade e capacidade de adequação às diferentes realidades.

Esse interesse de participação dos cidadãos, notadamente em relação às temáticas ambientais e de enfrentamento da crise climática é identificado, também, em todas as pesquisas sobre o tema.

Por exemplo, uma pesquisa encomendada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Brasil, em parceria com o programa de Comunicação de Mudança Climática da Universidade de Yale, realizada em 20216, apontou que 77% dos brasileiros acham que é importante proteger o meio ambiente, mesmo que isso signifique menos crescimento econômico; além disto, 92% acham que o aquecimento global está acontecendo e 72% acreditam que ele pode prejudicar – e muito – a atual geração.

Outro exemplo é a pesquisa feita pela Economist Intelligence Unit (EIU) a pedido do WWF, que mediu o ativismo digital sobre a questão ambiental ao longo de quatro anos (2016-2020), em 54 países (80% da população mundial). Neste período, houve um crescimento contínuo em pesquisas na internet por produtos sustentáveis (71%), um aumento de tuítes relacionados à causa (82%) e o volume de notícias que abordam o tema e os protestos contra a destruição da natureza cresceu (60%). Chama a atenção neste estudo o crescimento registrado na Ásia, principalmente na Índia (190%), Paquistão (88%) e Indonésia (53%)7.

A pedagogia social do OP

Um aspecto que não pode ser negligenciado é o caráter pedagógico dos OP’s. O aprendizado de reunir, discutir e organizar uma ordem de prioridades comuns, em razão da insuficiência de recursos para atender todas as demandas ao mesmo tempo, é um efetivo processo de pedagogia social.

Ao participar dessas experiências, as pessoas precisam exercer um sofisticado processo de acordos, saber estabelecer critérios para hierarquizar as prioridades e projetar ao longo dos próximos anos a sequência de investimentos.

Esse aprendizado é uma das maiores fortalezas dos OP’s, pois todos os setores sociais integrados nos processos de discussão e deliberação trazem consigo o seu conhecimento acumulado e, sobretudo, acessam o poder de incidir sobre a aplicação da parcela de recursos colocados em discussão, algo que de outra forma não seria possível.

O reconhecimento das comunidades atuantes nos OP’s como portadoras de um conhecimento valioso, que já existia, mas não era reconhecido, torna o espaço público mais confiável e atrativo à participação e mais próximo da vida concreta das pessoas, mostrando a importância da noção da ecologia dos saberes8, desenvolvida pelo professor Boaventura Santos.

A participação precisa de instituições mais permeáveis

Os dezessete Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS) e suas 169 metas, das quais mais da metade possuem relação com políticas urbanas, servem como um verdadeiro guia para a nossa reflexão e ação.

Esses objetivos e metas nos remetem a um modelo de cidade que reduza as desigualdades sociais, regionais, econômicas, valorize nossa diversidade cultural, incorpore os cidadãos nos processos de deliberação e torne as cidades lugares de promoção da qualidade de vida para todos.

Há alguns critérios que a experiência tem mostrado como decisivos para a conquistar a confiança das pessoas nesses processos: a existência de regras claras, recursos previamente definidos, espaço assegurado para as diferentes opiniões, execução dos acordos realizados e compromisso dos governos em respeitar as decisões.

Outro indicador importante é a permeabilidade das estruturas institucionais à participação da população, pois, em grande parte, isso ajuda a definir as regras que irão influenciar a “configuração dos processos participativos. Questões como: a) quem participa (inclusividade), b) em que condições (igualdade), c) qual o poder real (efetividade), d) quais os temas discutidos (distributivismo) e e) qual o nível de controle do processo (accountability) são elementos analisados”9.

Mesmo que os orçamentos participativos não esgotem o conceito de democracia participativa, há uma relação direta entre ambos. É na democratização do poder de decisão sobre os recursos que a democracia participativa inova e ganha as condições necessárias para alterar o desequilíbrio de poder que a concentração de renda subtrai das maiorias.

Orçamento participativo e a transição socioambiental

O desenho institucional por si só, no entanto, não é capaz de nos colocar no caminho da transição ecológica, pois esse avanço exige compreendermos a cidade como um compósito social, político, cultural e ambiental, o que significa dizer que a gestão urbana é um desafio socioambiental.

O que requer a integração das políticas públicas e o conhecimento dos fluxos naturais e construídos que configuram o território da cidade e asseguram o abastecimento dos bens imprescindíveis para a vida, como água, alimentos, energia, qualidade do ar, assim como emprego, saúde, educação, habitação, cultura, mobilidade etc.

Na realidade das cidades, os bens naturais e construídos se entrelaçam de tal forma que, até metodologicamente é difícil de distingui-los. Esse conjunto de sistemas de engenharia que o homem vai superpondo à natureza, é que dão às cidades uma configuração territorial, de acordo com Milton Santos10.

Essas redes construídas passam a ser tão elementares ao cidadão urbano quanto os demais elementos “naturais”, constituindo uma realidade que vincula de forma indissociável sociedade e natureza. Creio que essa compreensão seja o ponto de partida para pensarmos políticas e ações comprometidas com uma transição ecológica.

É claro que os OP’s não são uma panaceia. Mas é inestimável e já robusto o trabalho de colaboração, estudos, incentivo e financiamento às práticas de OP’s que estão sendo realizados pelos governos comprometidos com os processos de democratização das decisões. O trabalho das redes como o Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), o Fórum das Autoridades Locais pela Inclusão Social e Democracia Participativa (FAL) e a Rede Mercocidades mostram que a transição socioambiental está dando passos concretos em cada uma dessas milhares de experiências.

Não há diversidade ambiental, sem diversidade social

São tantos os exemplos de boas práticas e respostas eficazes produzidas a partir dos processos democráticos que incorporam novos sujeitos nos processos de discussão e deliberação, que podemos afirmar sem receio que as alternativas para a mudança de rumo já estão em curso.

O esforço para aumentar a integração e a colaboração entre essas experiências é fundamental para que os processos democráticos ganhem a escala narrativa de alternativa efetiva para superar o descompasso no cumprimento dos acordos internacionais e suas metas. Os resultados das práticas de democracia participativa são muito relevantes, mas ainda não ganharam o espaço devido nas discussões que buscam afirmar alternativas.

A diversidade, tanto ambiental, quanto social, devem ser compreendidas como orgânicas uma à outra. Assim, poderemos levar à risca a diretriz das Nações Unidas, de “não deixar ninguém para trás”. Essa deve ser a nossa principal guia nesta travessia rumo à transição ecológica, sempre que tivermos dúvidas sobre qual decisão tomar, pois apenas podem ser consideradas sustentáveis, aquele “conjunto de práticas, portadoras da sustentabilidade no futuro”11, o que reafirma a relação inextricável entre as ações realizadas no presente com a construção do mundo desejado.

Basta observar o rumo distópico para o qual a degeneração autoritária do liberalismo está conduzindo a humanidade para perceber que o mundo desejado só poderá ser construído se o controle de renda e poder que a desigualdade produz seja rompido. E isso só será possível com a radicalização dos processos democráticos que tragam a força criadora da transformação que, segundo Paulo Freire, todo o ser humano é dotado.

Gerson Almeida é sociólogo, foi secretário de Meio Ambiente de Porto Alegre (RS) e secretário nacional de Articulação Social no segundo governo de Lula