Economia

A imensa maioria dos brasileiros é de assalariados e pequenos ou médios empresários. A tabela do IRPF é um dos mais importantes determinantes da renda dessa parte da população

A forma de se implementar aumento de impostos precisa ser gradual e num momento de crescimento da economia. Foto: Marcos Santos/USP Imagem

Passada a disputadíssima eleição e a tentativa dos perdedores de virarem a mesa, é chegado o momento de saber que tipo de governo o PT fará. Se vai caminhar para mudar definitivamente a distribuição de renda no Brasil, ou se vai se curvar aos grupos dominantes e seguir uma proposta mais conservadora.

A questão fundamental do país é a renda, mais especificamente a renda dos assalariados e micro e pequenos empresários, a maioria da população ativa. Embora a transferência de renda do Bolsa Família seja importante, apenas garante a sobrevivência e impede a miséria absoluta. Nos dois primeiros governos de Lula foi o aumento da renda das famílias assalariadas a base do maior consumo, do crescimento da economia e que efetivamente colocou pessoas na classe média.

A única forma de um país ser desenvolvido é ter a maioria de sua população na classe média. Isso faz com que as pessoas consumam serviços de maior valor agregado, em especial educação, saúde e lazer, movimentando a economia e ao mesmo tempo permitindo ao governo destinar os serviços públicos aos mais pobres tornando a assistência social mais efetiva.

As pessoas só atingem a classe média com renda de trabalho por vários anos. Existe um parâmetro importante que há anos não é considerado, que é o salário-mínimo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que em dezembro de 2022 valia R$ 6.647,63. Colocar o máximo possível de brasileiros com ao menos este ganho deveria ser o grande objetivo do governo. Só quem ganha acima disso está efetivamente na classe média.

A imensa maioria dos brasileiros é de assalariados e pequenos ou médios empresários. A tabela do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) é um dos mais importantes determinantes da renda dessa parte da população. Ela determina o quanto é descontado dos salários, aposentadorias e pensões todo mês e está sem atualização há anos. Isso significa que pessoas que ganham R$ 2 mil têm desconto no seu salário, quando deveriam ser isentas.

O impacto disso é enorme, quem recebe o salário de R$ 2 mil hoje paga R$ 185 todo mês, mais de R$ 2.400 de imposto a mais num ano, mais de um salário a menos de renda. O mesmo raciocínio vale para quem ganha mais. Por exemplo, quem ganha R$ 10 mil paga R$ 1.880 por mês, e deveria pagar R$ 1.053. Em um ano paga o superior a um salário inteiro de imposto a mais por causa da falta de correção. Tudo isso reduz o consumo e o crescimento da economia.

Corrigir a tabela do IRPF de fato diminui a arrecadação do governo federal e mesmo dos governos estaduais e municipais, embora aumente a de outros tributos, principalmente ICMS e ISS, pois os recursos chegam no consumidor imediatamente. Não é viável eliminar a desfasagem de uma vez e não é a melhor alternativa corrigir todas as faixas.

O PT deveria considerar que aumentar a renda é muito mais fundamental para quem ganha menos do que para as altas faixas e fazer um reajuste na tabela escalonado ao longo dos quatro anos de governo e privilegiando as faixas de renda com até 15% de imposto, com maiores percentuais de aumento e menor para as duas restantes. Isso fará com que a perda de arrecadação seja menor e se evite aumentar benefícios para as faixas de maior renda.

Se a tabela fosse corrigida integralmente nessas três primeiras faixas, só quem ganha mais de R$ 8.805,54 ficaria com defasagem, de acordo com o Sindifisco. Não são ricos, tampouco as pessoas que mais precisam de ajuda e teriam algum ganho pela correção das faixas inferiores da tabela. E quem ganha até R$ 4.427,59 seria isento, o que seria próximo da promessa de campanha de isentar ganhos até R$ 5 mil, podendo ser integralmente cumprida até o fim do mandato. Pessoalmente, entendo que todos que ganham abaixo do salário-mínimo do Dieese deveriam ser isentos.

Haverá perda de arrecadação, porém, a maioria das pessoas de baixos salários e de classe média baixa sentirá que sua vida está melhorando. É fundamental ter esse tipo de sensação no primeiro ano de governo, para consolidar a vitória e mostrar efetiva mudança e opção pelo trabalhador. A correção da tabela pode ser feita em qualquer momento do ano, quanto antes melhor. Não há restrição legal a aumentar benefício do contribuinte.

O reajuste da tabela e a sensação de melhoria são necessárias o quanto antes porque há outras partes da reforma, que vão criar reações fortes das classes de maior renda. Uma delas é a criação de alíquotas, que só pode ser feita no final do ano para valer no ano seguinte, em função do princípio da não surpresa e do critério da anualidade.

Há um estudo feito pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda que mostra a distribuição de rendimentos dos declarantes de imposto de renda no país por salários-mínimos (SM), conforme segue:

SM                   Milhões de declarantes     % do total

0 a 20                            24                                      92%

20 a 40                         1,5                                      6%

40 a 80                         0,5                                     1%

Mais de 80                   0,2                                    0,5%

Uma pessoa que ganha mais de 20 SM por mês já poderia e deveria pagar mais do que 27,5% de IRPF mensal. Se comparados a países desenvolvidos, as alíquotas para os mais ricos superam 70%. Isso é justiça social, quem tem mais, paga mais. A forma de se implementar aumento de impostos precisa ser gradual e num momento de crescimento da economia.

Se o consumo aumenta com a atualização das tabelas de retenção, conforme explicado acima, as pessoas ganharão mais. É o momento para introduzir três novas alíquotas, digamos uma de 30% para quem ganha mais de 20 SM, uma de 32,5% para quem ganha mais de 40 SM e uma de 35% para quem ganha mais de 80 SM. Isso é ainda muito abaixo dos parâmetros internacionais, todavia, é mais importante introduzir novas alíquotas do que aumentar demais as existentes, o que provocaria forte reação e poderia levar a alegações de confisco de parte excessiva da renda.

O aumento de alíquotas terá a maior reação na elite dos servidores públicos, que são a maior parte dos remunerados por salários altos. O que significa que o governo terá um ganho extra, vai transformar parte de sua despesa com servidores em receita. Além do impacto moralizador, de limitar o enriquecimento de servidores com salários elevados pagos pela população, ainda reduzirá a despesa com supersalários.

É preciso mostrar ao público quem seria afetado por isso e quanto ganha. Na faixa acima de 20 SM, há 1,5 milhões de pessoas que ganham mais de R$ 26.040 por mês. É muito pouca gente que não vai passar nenhuma necessidade por isso. Na faixa acima de 40 SM há apenas 500 mil pessoas, que ganham mais de R$ 52.080 por mês, já são e continuarão sendo ricas. E acima de 80 SM há apenas 200 mil felizardos que ganham mais de R$ 104.610 por mês, mais de R$ 1.249.920 por ano, literalmente milionários, e continuarão sendo com a nova alíquota. Revelar esses números em todos os meios mostrará que poucos brasileiros farão quase nada de sacrifício para beneficiar muita gente.

O momento de apresentar essa proposta é num mês de outubro de um ano. O IRPF só pode ser aumentado quando virar o ano seguinte à apresentação da proposta. Se proposto em outubro, há pouco tempo para articular reação, que será pela maioria simples dos presentes no Congresso, visto que é matéria de lei ordinária, as alíquotas valem. E a tramitação é em novembro e dezembro, quando todos estão ganhando 13º. Aumento de imposto tem de ocorrer quando as pessoas têm dinheiro, diminui a revolta. Com esta estratégia, o aumento pode valer apenas dois meses após proposto, em início de janeiro do ano seguinte.

Não se muda um país sem mudar as faixas de renda e de tributação. A reforma que proponho vai afetar principalmente com altos executivos e os mais altos servidores públicos (juízes, promotores, auditores fiscais, militares de alta patente), que recebem seus vencimentos dos impostos que todos nós pagamos. Essa gente que não pode sair do Brasil por causa de tributos maiores, porque só aqui têm salários tão altos com tributos baixos para a vida toda.

A última parte da reforma do imposto de renda, o PT já anunciou que fará, que é retirar a isenção sobre lucros e dividendos da pessoa física ao IRPF. É essencial, porque a maioria dos ganhos de altos assalariados da iniciativa privada e empresários vêm desses ganhos. Nada mais justo e lógico do que os empresários como pessoas físicas serem taxados.

Isso vem sendo postergado pelo argumento de que se forem muito taxados, os empresários saem do país, vão para outro com menos impostos. É verdadeiro se a taxação for alta. Se não for, o empresário ficará no mercado que conhece e onde tem vantagens competitivas. Não é possível mudar do Brasil sem perder parte do que esses empresários têm aqui.

Novamente, o segredo está em fazer taxação gradativa e num momento de crescimento da economia. Digamos que os lucros e dividendos percam a isenção e sejam taxados em 10%. Que empresário vai mudar de país por isso? Se a taxação for de 50%, pode até ser que alguns saiam, mas não se suas empresas estiverem vendendo bem e crescendo.

Outro ponto importante é associar alíquotas a valores de lucros. O ganho de lucros e dividendos deve ser tratado progressivamente. Quem recebe até R$ 10 mil num ano não é rico, deveria ter taxação muito baixa, algo como 5%; quem ganha acima de R$ 100 mil algo como 10%, acima de R$ 200 mil deveria ser 15% e acima de R$ 500 mil algo como 20%. A retirada de isenção também é sujeita ao princípio da não surpresa e ao critério da anualidade.

Mexer com o IRPF é um desafio, no entanto, é o mais fácil de fazer em termos de tributação. Isso porque a competência de legislar sobre o IRPF é do governo federal e as alterações podem ser feitas com leis ordinárias, de aprovação por maioria simples do Congresso presente no dia da aprovação e a maioria dos afetados são assalariados, com muito menos poder político do que empresários. É muito mais viável mexer no IRPF do que regulamentar o Imposto Sobre Grandes Fortunas ou criar novos tributos, que exigem lei complementar que precisa de maioria absoluta (50%+1 dos parlamentares totais).

Não sou petista e tenho ceticismo sobre a capacidade do partido de mudar o país. Entretanto, votei em Lula porque a única chance que temos é obtendo maiorias mais expressivas da população ao lado do governo, as pessoas que querem mudanças devem ajudar, superando diferenças. Torço para que leiam o texto e para que seja debatido. Ainda que nada seja considerado, só de fomentar a discussão do mais importante tributo do país já terá valido a escrita.

Paulo Gussoni é servidor público estadual de São Paulo, administrador de empresas formado pela EAESP-FGV e mestrando em Políticas Públicas na mesma instituição