Cultura

A ausência de disputa político-cultural e enfrentamento de valores autoritários resultou no paradoxo: após 14 anos de governos de esquerda, parcela significativa da sociedade se mostrou conservadora

A primeira e primordial palavra para as políticas culturais do novo Brasil chama-se democracia. Foto: Divulgação/MinC

As políticas culturais se nutrem de muitas atitudes, atos, programas, projetos, eventos, formulações e palavras, que se articulam e entrelaçam em teias de sentido. As palavras, vitais, não podem advir da moda, sempre subservientes ao império do efêmero, na inspirada noção de Gilles Lipovetsky. O campo da cultura, como qualquer outro na contemporaneidade, encontra-se perpassado por efemeridades produzidas na sociedade de consumo desenfreado para acumular capital. As políticas culturais, para além das atitudes, atos, programas, projetos, eventos, formulações, devem se tecer de palavras cheias de significado em sintonia fina com a atualidade. Mas não em suas aparências mais imediatas, ideologia na concepção perspicaz de Theodor Adorno. As palavras, capazes de expressar e traduzir dinâmicas sociais, servem de potentes orientações para políticas culturais atentas ao seu tempo e lugar.

Os instantes atuais, feridos pelos recentes tempos sombrios no país e no mundo, produzem sequelas profundas na sociedade, na política e no mundo da vida. Impossível esquecer os ataques golpistas e violentos aos três poderes da República no fatídico 8 de janeiro de 2023. O genocídio planejado pela gestão federal anterior contra os Yanomamis não merece ser olvidado. Inúmeros outros exemplos de barbárie perpetrados não devem ser deslembrados. Eles, onipresentes, têm que ocupar centralidade nas reflexões e nas palavras sobre o Brasil e suas políticas culturais. Hoje e sempre, impedir a reprodução da barbárie é exigência primordial da política, da cultura e das políticas culturais. Sem tal atitude, elas perdem sua seiva e seu sentido mais essenciais.

Contra as muitas manifestações de barbárie, que invadem no dia a dia o mundo submetido ao capitalismo neoliberal e aos neofascismos, floresce o clamor pela democracia. A ideia de que ela é um valor universal, tão enfatizada por pensadores italianos e pelo baiano Carlos Nelson Coutinho, parece cada vez mais consensual. Todos acariciam a palavra democracia, mas lhes dão hoje múltiplas e contrastantes interpretações. A intensa disputa de sentido em torno da palavra democracia demonstra a potência de seu agendamento e, de modo simultâneo, cria impasses nada desprezíveis para sua realização, pois impõe enorme desgaste a sua efetividade e radicalidade. A barbárie se alimenta, em parte, de promessas não concretizadas da democracia. Bem pior, por vezes, em nome de pretensas democracias barbáries são engendradas e ferem povos inteiros.

Em perspectiva liberal, a democracia se vê reduzida ao regime político do Estado. Nela, a democracia se instala tão somente no âmbito das normas e regras da dinâmica política da sociedade. O restante das relações sociais fica fora de sua alçada. Em contraponto, sem nunca desprezar a relevância da democracia no estrito ambiente profissionalizado da sociedade política, a esquerda, que hoje se assume democrática, exige mais: também as outras relações sociais, em especial públicas, precisam ser democratizadas para a configuração da democracia em plenitude. Políticas distributivas e de reconhecimento articuladas desempenham papel crucial na construção da democracia ampliada. Ela não floresce e se sustenta em situações de profundas desigualdades econômico-sociais e de violentos desrespeitos às diversidades político-sexuais-culturais. A socialização do poder na sociedade brota como processo de luta imprescindível para desenvolver a democracia ampliada.

A barbárie, imposta desde o golpe de 2016 e intensificada na gestão Messias Bolsonaro, obrigou aos setores democráticos da sociedade colocarem, com centralidade, a questão democrática. Ela se torna, na atualidade, o divisor primordial na conjuntura político-cultural brasileira. Improvável as políticas culturais desconhecerem tal centralidade. Elas são obrigadas a encarar a disputa existente entre procedimentos e valores autoritários, próprios da barbárie, e aqueles democráticos, necessários à superação dos tempos sombrios vividos no Brasil e no mundo. Sem tal conexão com a democracia, as políticas culturais deixam caminho escancarado à persistência de autoritarismos, privilégios e violências físicas e simbólicas contra alteridades, diversidades e pluralidades. As políticas culturais não podem ser omissas com relação à barbárie que nos ameaça e destrói a civilidade, já tão desgastada pelos autoritarismos, desigualdades, privilégios, carências vigentes na sociedade brasileira.

A primeira e primordial palavra para as políticas culturais do novo Brasil chama-se democracia. A cultura feita de modos de vida, comportamentos, gestos, atitudes, palavras, argumentos, sensibilidades, emoções, valores e muitos outros ingredientes, necessita assumir feições democráticas e enfrentar manifestações, também culturais, autoritárias. Ela se traduz, por conseguinte, como cultura cidadã, cultura democrática, cultura política democrática, cidadania cultural, direitos culturais e termos afins. O enfrentamento político-cultural vigoroso emerge como vital para o presente e o futuro do Brasil.

No mundo e no Brasil forjados pela ascensão do neoliberalismo, do neofascismo e das guerras culturais, que pretendem transformar adversários em inimigos a destruir, não cabe às políticas culturais nenhuma ilusão de neutralidade. A extrema-direita, no poder, como no Brasil recente, ou fora do poder, coloca em cena a disputa político-cultural de concepções de sociedade e de seus valores em sua modalidade de guerra cultural. O inimigo inventado se intitula “marxismo cultural”, miscelânia de pensamentos emancipadores de tipos bastante distintos. Nele se misturam o marxismo ocidental de Antonio Gramsci, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, as teorias feministas, os ideários contra os racismos, as ideias dos movimentos LGBTQIA+ e diversas outras formulações libertárias.

Busca-se interditar e impedir todas as vertentes de concepções político-culturais críticas e em seu lugar entronizar e impor um mosaico de monoculturas autoritárias. Assim, a extrema-direita reanima no cenário contemporâneo a disputa política-cultural, que a esquerda parecia ter olvidado. As antigas formulações de luta ideológica, batalha das ideias, disputa da hegemonia e outros similares, tão relevantes à tradição da esquerda, se fizeram esquecidas, paradoxalmente, no instante em que a democracia como valor foi assumida por parcela substantiva da esquerda. Como disputar a democracia, em moldes democráticos, sem desenvolver disputas político-culturais? Tal esquecimento cobra ônus político-culturais muito dilacerantes e tem interditado o aprofundamento da democracia na contemporaneidade.

Os governos petistas entre 2003 e 2016 pareciam desatentos a tal indagação. Estranho que, após tantos anos de gestões moderadas de centro-esquerda, valores conservadores e autoritários tenham aflorado e crescido na sociedade brasileira. Todos deveríamos saber que tais valores existiam há muito tempo como resultado da história brasileira marcada por autoritarismos, desigualdades, privilégios, discriminações, violências físicas e simbólicas, genocídio de povos originários e quase 400 anos de brutal escravidão. Eles não só tiveram ambiente propício para emergir, como também para se desenvolver. A ausência da disputa político-cultural e a falta de enfrentamento de valores autoritários resultou no paradoxo: depois de 14 anos de governos de esquerda, parcela significativa da sociedade se fez e se mostrou conservadora.

O frágil enfrentamento nas gestões petistas, para além das fronteiras da democracia liberal, bem com a produção cotidiana do ódio através de muitas instituições, em especial as empresas de mídia, têm enorme responsabilidade na construção de tal cenário. O quase monopólio da mídia; o acionamento de setores conservadores das instituições, a exemplo do judiciário, e atuação antidemocrática das classes dominantes forjam o ambiente. Tais fatores, por mais relevantes que sejam, não podem fazer esquecer o descuido da esquerda com a disputa político-cultural. A velha ilusão economista acreditou que bastava fazer as pessoas ascenderem socialmente para que elas assumissem afinidade com o projeto petista. O economicismo, por exemplo, esqueceu que se percebe a ascensão social por meio de narrativas explicativas do mundo e da vida. A ascensão pode ser considerada como derivada do esforço e mérito pessoais na ideologia competitiva capitalista. Pode ser imaginada como proveniente do apoio divino na versão da ideologia religiosa. Pode ser pensada como decorrente de políticas públicas, em narrativas mais próximas da esquerda. Enfim, pode ser interpretada conforme distintas narrativas, todas elas em disputa. Esquecer a disputa político-cultural das narrativas sobre o mundo e a vida implicou em repercussões dramáticas em nossa história recente.

As políticas culturais para o novo Brasil não podem desprezar o novo cenário, distinto do vivido no ano de 2003, no qual as disputas político-culturais, por óbvio, existiam, mas em ambiente com mais civilidade, com menos violências físicas e simbólicas e com disputas não tão impostas, expostas e expressas na conjuntura, como hoje acontece. Desde modo, revisitar as inovadoras políticas culturais desenvolvidas a partir da gestão de Gilberto Gil, em 2003, vinte anos atrás, pode ser inspirador, mas não basta para atualizar as políticas culturais necessárias ao grave e tenso momento que vivemos. O mundo e o Brasil são outros, para o mal e para o bem. A atualização das políticas culturais torna-se exercício crucial para a refundação da nação brasileira.

Uma nova constelação de palavras-chave se apresenta como crucial na atualidade. A primordial delas, como já dito e repetido, democracia em disputa. Mas palavra-chave não é palavra mágica que tudo resolve. Não basta sua menção para que as políticas culturais se transformem, sem mais. Ela exige ser traduzida em formulações complexas e conexões adequadas, em projetos e programas, que concretizem tal palavra orientadora. Uma questão fundante se impõe: como conceber políticas culturais conectadas e estimuladoras de culturas democráticas? Questão nada simples, que demanda exaustiva e rigorosa elaboração, que transcende o texto.

De imediato, cabe superar a ilusória ideia da neutralidade das políticas culturais, que de maneira sub-reptícia invade mesmo gestões democráticas e de esquerda. Muitas vezes, as políticas culturais são reduzidas a meras políticas de financiamento, cabendo ao Estado tão somente prover e repassar verbas aos fazedores, coletivos, comunidades, movimentos, instituições e empresas para produzirem cultura. A gestão bancária, para lembrar a sagaz noção de Paulo Freire, parece ter medo ou vergonha do óbvio: toda gestão toma decisões e, por consequência, faz política, assuma ou não. Um edital, para se tomar um formato aparentemente mais institucional e neutro, implica sempre opções: escolha de áreas a ser contempladas, definição de requisitos para participação, delimitação de critérios e comissões de seleção e inúmeras outras deliberações. Enfim, as políticas culturais não são neutras, nem apenas formalistas, como pretendem alguns.

Além de superar a ilusória neutralidade, necessário explicitar quais políticas culturais se quer desenvolver. A explicitação exige coerência e traz implicações que necessitam ser enfrentadas. Por exemplo: as políticas culturais do Estado democrático devem apoiar atividades, projetos e obras machistas, racistas, homofóbicas, xenofóbicas, negacionistas, supremacistas e similares? Um apressado sim, em nome da não interferência do Estado, paradoxalmente, coloca em xeque e desmente a própria denominação democrática usada pelas políticas e pelo Estado. Um rápido não, encobre potenciais perigos que devem ser considerados, como possíveis censuras e culturas oficiais, insossas e acríticas. Apesar das ameaças, a resposta mais coerente é um rotundo não, na expressão costumaz de Leonel Brizola. O Estado e as políticas culturais democráticas não podem se curvar à reprodução de autoritarismos, discriminações, preconceitos e privilégios por temor de enfrentar perigos. A delicadeza da questão exige da democracia capacidade de lidar com sutilezas.

A democracia surge como vital, mas as novas políticas culturais se alimentam igualmente de outras palavras orientadoras, que emergiram nestes 20 anos de avanços e retrocessos da nossa pendular democracia, na interessante percepção de Leonardo Avritzer. Como esquecer a noção de diversidade cultural, que mesmo cheia de ambiguidades, causa furor aos fundamentalistas ideológico-religiosos da monocultura. A diversidade cultural se fez cada vez mais essencial para a construção de um Brasil distante do mando do macho branco-ocidental entronizado como dono do poder. Fundamental para constituir uma nação tecida por muitas e diversas gentes, sexos e culturas, sempre oprimidos e invisibilizados em sua história.

Como esquecer a cidadania cultural e os direitos culturais, que emergem em íntima conexão com o diverso? Como não valorizar a pluralidade, depois de tanto autoritarismo e fundamentalismo negando a alteridade e sua existência imprescindível para a democracia? Como não estar atento ao federalismo cultural, depois de seu belo e suado experimento nas leis de emergência cultural, enormes vitórias em uma cena na qual a cultura foi vilipendiada e agredida cotidianamente pelos fundamentalistas e neofascistas? Como não imaginar que estas e outras palavras estejam na centralidade das políticas culturais? Como conceber a velha luta pela centralidade da cultura na disputa político-cultural inerente à democracia sem recorrer a noção de transversalidade, hoje tão recorrente em discursos e manifestos? Transversalidade que permite a cultura ser assumida em sua noção ampliada, como tanto afirmou Gilberto Gil, e, principalmente, dialogar e perpassar as mais diversas áreas sociais, todas elas impregnadas de culturas, em disputa.

Todas estas e outras palavras-chave escrevem as novas, necessárias e possíveis políticas culturais. Elas são requisitos fundantes da imaginação de novas políticas culturais. Suas interseções não são automáticas e sim trabalhosas. Exigem esforço e criatividade para tecer articulações, para inventar programas e projetos, que as traduzam, e para sua efetivação em práticas complexas, coerentes, criativas e ricas. Cabe a nós colocar todas elas em movimento e em luta para refundar a cultura e o Brasil.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)