Cultura

Nos últimos dias, o mundo foi informado das conclusões de um grupo de cientistas forenses sobre a morte do poeta. Foi envenenado 12 dias após o golpe que derrubou Allende

 

Neruda foi assassinado numa clínica médica antes de completar 70 anos. Foto: Reprodução

A poesia nunca foi um instrumento muito apreciado para derrubar governos, mas não há tirania que não a tema.

Nos últimos dias, o mundo foi informado das conclusões de um grupo de cientistas forenses, de distintos países, sobre a morte do poeta Pablo Neruda, Nobel de literatura. Falecido em 23 de setembro de 1973, na Clínica Santa Maria, em Santiago do Chile, Neruda foi envenenado com uma injeção de Clostridium botulinum no estômago, 12 dias depois do sangrento golpe militar que derrubou o governo democrático de Salvador Allende, líder da Unidade Popular e seu amigo.

Assim, caiu por terra a versão oficial sustentada por quase 50 anos, que apontava como causa da morte um câncer de próstata já em fase de metástase. A denúncia foi divulgada por Rodolfo Reyes, sobrinho do poeta e advogado da família.

Não é demais recordar, a propósito, o assassinato brutal de Victor Jara, cantor e compositor, entre os mais populares do país, no Estádio do Chile, também naqueles dias (16 de setembro) de terror incontrolável.

Tais crimes nos oferecem elementos suficientes para entender o ímpeto do ódio que os esbirros a serviço da ditadura de Augusto Pinochet devotavam naquele momento da história do Chile, e o fascismo, em geral, em qualquer tempo e lugar devota contra as mais elevadas expressões culturais do povo.

De regresso de uma viagem a Isla Negra, há alguns anos, escrevi um texto, para explorar as convergências entre a poética de Neruda e a poética de Walt Whitman. Uma sorte de memória afetiva que me acompanha desde a juventude, quando mantive os primeiros contatos com a poesia dos dois. Dediquei o texto a Zezé Rezende e Sérgio Bueno, dois amigos queridos, companheiros de aventuras. Partilho alguns trechos dele com você que dispensa um pouco do seu tempo para ler estas linhas:

“Meus pés me trouxeram até aqui. A esta penha sobre o Pacífico onde dormem Matilde Urrutia e Pablo Neruda. Mirando o céu deste verão chileno que busca obstinado refletir nos olhos o azul do oceano que late a meus pés. Venho cumprir, mais do que um dever de poeta e militante, uma espécie de devoção aos meus mortos. E contemplar pelos olhos Juliana

– meu amor vertiginoso

que revoga as estações

porque prendeu a primavera na cintura

e os caprichos do destino me oferecem

quando o tempo para mim já é de outono ... –    

os espaços, os nichos, os objetos capturados, a réstia de luz que vaza pela janela sobre a constelação de conchas exiladas dos oceanos do mundo. Aparentemente Neruda alcançou por um momento capturar a alma líquida dos mares que navegou para fixar nesta sala impossível e nos mergulhar na sua sedução. Ouço o silêncio e o rumor das ondas contra Isla Negra: a catedral de espuma.

Que direito tenho eu, um homem de terra e relâmpagos – um sertanejo de ásperos chapadões tão distantes do mar – de me acercar do sono desses ossos que repousam sob a areia de Isla Negra?

 Explico.

Conheci, ainda adolescente, a palavra de Pablo Neruda ao abrir uma antologia publicada em edição bilíngue, salvo engano, pela editora Sabiá, em meados dos anos 60. Com ela e o auxílio de um pequeno dicionário, Neruda me ensinou a ler em espanhol. Uma poesia vulcânica, telúrica que inventa e dá contorno a um continente que acaba de emergir dos abismos do mar. Uma poesia que se move como uma deusa a distribuir aos objetos, aos lugares, rios, cordilheiras, cidades, pessoas ainda pagãs, seus nomes e suas identidades.

(...) Um continente criado pela palavra. ‘No princípio era o verbo’. Dois narradores laicos, mas bíblicos: um reinventa o verso, para que nele caiba um cosmos antes indizível com os recursos da sintaxe herdada do velho continente. O outro estende o sopro pelas cordilheiras do Sul, alarga o verso para narrar o dia da criação. Em ambos a palavra cria, dá forma e som a uma realidade que escapava a qualquer medida antes imaginada. Whitman e Neruda: dois narradores da criação de um continente que emerge dos oceanos para o espanto dos olhos gastos dos navegadores.”

O que faz desses dois poetas uma perigosa ameaça aos olhos da ordem? O selvagem hálito da liberdade, nada além disso. Nada além da capacidade de criar, pela palavra, a possibilidade da vertigem de novos mundos fora da moldura da ordem anacrônica do “homem lobo do homem”. Eles encarnam “A perigosa memória das lutas/ projetam a perigosa imagem dos sonhos.”  Por isso eles constituem uma ameaça.

Isso vale para o fascismo e os seus derivados, como naquela madrugada de agosto de 1936, quando uma patrulha de falangistas a serviço do franquismo deixou sobre as pedras de um tortuoso caminho de Granada, o corpo fuzilado de Federico Garcia Lorca. Essa é a obra do “Fascismo Eterno”, para lembrar Ecco, que nos assalta no mundo contemporâneo.

Cabe recordar que naquele momento a France Navigation, empresa constituída sob os auspícios do Partido Comunista Francês, conseguira comprar uns barcos velhos, em Marselha, já no declínio da República, o Winnipeg era um deles. Com ele Pablo Neruda, então Consul chileno acreditado diante do governo republicano, numa ação a serviço da vida, organizou o resgate dos combatentes da guerra civil espanhola que sobreviveram à ofensiva final franquista, para o exílio no Chile. Neruda foi assassinado numa clínica médica antes de completar 70 anos. Sobre ele se dirá sempre: sobreviveu à ferocidade do fascismo.

Passado o pesadelo dos últimos seis anos, sejamos otimistas, que fez emergir o governo neofascista derrotado nas urnas de outubro último, no Brasil, não temos o direito de nos iludir e por um instante arrefecer o combate à barbárie que o neofascismo disseminado na sociedade brasileira, significa.

É indispensável reencantar a atividade política, engajar a juventude dos setores populares na convicção de que “nada causa mais horror à ordem/ do que homens e mulheres que sonham...”, para ferir de morte os arautos da necropolítica. Aqui reside a razão do temor de toda tirania aos poetas e o que eles representam.

Pedro Tierra é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo