Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, recebeu cerca de 120 familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. Foto: Clarice Castro/Ministério dos Direitos Humanos
“Lembrar para que nunca mais aconteça”. Há diferentes formas abordar o tema da memória dessa tragédia – o golpe de 1o de abril de 1964 – que marca como uma cicatriz de fogo a história do Brasil.
Quero abrir esse texto com uma reflexão sobre o cansaço das palavras. As palavras não apenas são modificadas no seu sentido ao longo da história. Algumas palavras de tão repetidas na convivência de uma sociedade, são levadas ao esgotamento, à morte, às cinzas.
Então é preciso infundir nelas um sopro novo. Um novo influxo que lhes permita reencontrar-se com seu sentido original. Estou convencido de que a palavra “tortura” no Brasil de hoje, por exemplo, já não comunica para amplos segmentos da população, sobretudo para as novas gerações, o conteúdo de brutalidade que antes transmitia.
Ou, para meu desespero, devo curvar-me à evidência de que a sociedade brasileira se degradou em tal medida que fomos anestesiados pela indiferença de forma que a selvageria já não nos comove moralmente.
Como não é possível aceitar essa abjeção, é preciso lavar com o ácido – da palavra... – o lodo, a ferrugem, a sombra que as recobre.
Quando alguém afirma frente às câmeras de TV: “Você sabe que eu sou a favor da tortura!” é preciso lembrar aos expectadores que assistem o personagem que ele é a favor de espancar pessoas encapuzadas que não podem se defender, pessoas humanas amarradas num pau de arara, submetê-las a choques elétricos, ou atá-las na traseira de um Jeep militar e acoplar um cano de descarga em sua boca, como fizeram com Stuart Edgar Angel Jones ou ainda bater metodicamente na cicatriz recente até romper a sutura de uma cirurgia de apendicite, realizada poucos dias antes de sua captura, como fizeram os esbirros com Alexandre Vannucchi Leme nas dependências do Doi-Codi do II Exército, em São Paulo.
Nesses últimos dias ouvimos assombrados, mais uma vez, o depoimento de Hildegard Angel denunciando, com a dor e a coragem de sempre, o assassinato de seu irmão, Stuart Angel, num quartel da Aeronáutica no Rio.
Poucos testemunhos me comovem tanto quanto o relato da Dra. Eny Raimundo Moreira, inesquecível advogada de presos políticos durante os anos de chumbo, sobre a aterradora execução de Aurora Maria do Nascimento, em 10 de novembro de 1972. Aurora foi desfigurada pelos espancamentos e pela “Coroa de Cristo”: cinta de aço ajustável em torno da cabeça da vítima comprimida até fazer saltar um olho para fora da órbita e provocar o visível afundamento do crânio constatado por quem acompanhou o sepultamento do seu corpo.
Escrevi o livro Poemas do Povo da Noite, entre 1972 e 1977, para seguir olhando meu rosto no espelho e não enlouquecer. Os poemas, de alguma forma, me justificavam a existência porque denunciavam os horrores do quotidiano por onde passamos os presos políticos brasileiros do período 1964/1988, quando voltamos a ter uma Constituição. De certa maneira, com os meios ao meu alcance procurei dar voz aos meus mortos e aos meus sobreviventes:
Poema Prólogo
Fui assassinado./ Morri cem vezes e cem vezes renasci/ sob os golpes do açoite.// Meus olhos em sangue/ testemunharam/ a dança dos algozes/ em torno do meu cadáver.// Tornei-me a mineral/ memória da dor./ Para sobreviver,/ recolhi das chagas do corpo/ a lua vermelha de minha crença,/ no meu sangue amanhecendo.// Em cinco séculos/ reconstruí minha esperança./ A faca do verso feriu-me a boca/ e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.// Fui poeta/ do povo da noite/ como um rito de metal fundido.// Fui poeta/ como uma arma/ para sobreviver/ e sobrevivi.// Companheira,/ se alguém lhe perguntar por mim:/ sou o poeta que busca/ converter a noite em semente,/ o poeta que se alimenta/ do teu amor de vigília/ e silêncio/ e bebeu no próprio sangue/ o ódio aos opressores.// Porque sou o poeta/ dos mortos assassinados,/ dos eletrocutados, dos “suicidas”,/ dos “enforcados” e “atropelados”, dos que “tentaram fugir”,/ dos enlouquecidos.// Sou o poeta/ dos torturados,/ dos “desaparecidos”,/ dos atirados ao mar,/ sou os olhos atentos/ sobre o crime.// Companheira,/ virão perguntar por mim./ Recorda o primeiro poema/ que lhe deixei entre os dedos/ e diz a eles/ como quem acende fogueiras/ num país ainda em sombras:/ meu ofício sobre a terra/ é ressuscitar os mortos/ e apontar a cara dos assassinos.// Porque a noite não anoitece sozinha./ Há mãos armadas de açoite/ retalhando em pedaços/ o fogo do sol/ e o corpo dos lutadores.// Venho falar/ pela boca dos meus mortos.// Sou poeta-testemunha,/ poeta da geração de sonho e sangue/ sobre as ruas de meu país.” (Poemas do Povo da Noite, Editora Fundação Perseu Abramo/ Publisher, S. Paulo)
A nossa leitura dessa tragédia continuada que marca a história do Brasil como uma condenação, não pode ser ofuscada pela barbárie que acabo de relatar. O recurso aos métodos sistemáticos da tortura e da violência contra quem se opunha ao regime obedeceu a um objetivo político claro: deter o avanço dos movimentos sociais dos trabalhadores contra os interesses oligárquicos que sempre monopolizaram o poder econômico, político, social e cultural ao longo da história do Brasil: o latifúndio, que hoje atende pelo nome de agronegócio, os bancos, os setores industriais já associados aos interesses dos EUA, os meios de comunicação que faziam – como hoje, fazem utilizando-se das novas tecnologias digitais – a costura ideológica da dominação (agitando o espectro do comunismo) e os setores conservadores da Igreja Católica, que naquele período exerciam uma influência maior sobre a formação da opinião na sociedade.
Um dado singelo dispensa outras considerações: entre 1o de abril de 1964 e dezembro mais de 500 sindicatos de trabalhadores sofreram intervenção. Seus líderes presos, torturados, mortos ou exilados. Em outras palavras, o golpe foi dado contra os trabalhadores. E o objetivo não deu margem a dúvidas: era necessário aniquilar as lideranças dirigentes dos setores sociais que se opunham à ditadura.
A interferência do Departamento de Estado, antes rejeitada como “teoria da conspiração” é hoje pacificada, documentada por dados oficiais e assumida sem maiores cerimônias. Virou assunto de pesquisas acadêmicas.
Como o Brasil é um país que se move em círculos, vivemos nos últimos dias, um conjunto de experiências de profundo significado:
Na 2a Feira, 27 de março: realizamos um ato na Ponte sobre o Paranoá que liga o Plano Piloto ao Lago Sul, aqui em Brasília. Essa ponte antes, exibia o nome do general que assinou o Ato Institucional no 5. Agora leva o nome de Honestino Guimarães, ex-dirigente da UNE, assassinado em outubro de 1973, aos 26 anos.
Dia seguinte Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e Cidadania do governo Lula, recebeu no auditório do ministério cerca de 120 familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. Ali anunciou a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos extinta pelo governo neofascista derrotado nas eleições de outubro passado.
No 29 de março, reconstituída e reinstalada, a Comissão de Anistia, antes esvaziada e convertida num tribunal de exceção, nos últimos quatro anos, apreciou processos indeferidos no período anterior: os casos do jornalista Romário Schettino, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas do DF, da professora Cláudia de Arruda Campos, do Deputado Ivan Valente (PSOL-SP) e do metalúrgico de Osasco José Pedro da Silva.
Ouvimos emocionados a presidente da Comissão, professora Eneá de Stutz proferir, em nome do Estado Brasileiro, o pedido de desculpas à esses lutadores, pelas perseguições e arbitrariedades contra eles cometidas pela Ditadura Militar e declará-los formalmente, anistiados políticos brasileiros.
O governo neofascista chegou cambaleante ao fim do mandato. Seu líder trânsfuga escapou pela porta dos fundos como o último general do ciclo militar. Não há como fugir de uma constatação: nos últimos quatro anos, esse governo de liquidação nacional foi a expressão cabal de um revanchismo tardio contra a democracia, cultivado pela escória dos herdeiros dos porões defendidos por Sylvio Frota e derrotados por Geisel em 1977. Eles vislumbraram no Capitão Joia a possibilidade de voltar à cena política pelo voto, em 2018 e uma vez no poder, prolongá-lo por meio de um golpe de Estado.
Foram derrotados nas urnas de 2022 e fracassaram na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Esse é o resumo da ópera. A seu modo atualizaram a frase de abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”.
Por fim, qual é o desafio central das bases de sustentação política do governo Lula? Entender, disseminar e converter em ação aquela afirmação de um conhecido líder revolucionário do início do século 20: “As transformações políticas podem ocorrer em dias, as transformações econômicas levam anos, as transformações culturais demandam gerações”. Em uma frase: não há soluções de curto prazo. E o imediato é defender a democracia, condição sine qua non para derrotarmos a extrema-direita na sociedade.
O Brasil está hegemonizado por uma cultura colonizada e fascistizada. Estou convencido de que a ofensiva da extrema-direita no mundo e aqui está ancorada nessa batalha entre os valores individualistas levados ao paroxismo, como vimos no massacre de crianças em Blumenau, o culto da intolerância, da força e da violência como forma única de solução dos conflitos sociais e os valores da participação e da ação coletivas, do diálogo, do respeito às diferenças e aos diferentes, do socialismo e da democracia.
Derrotar o neofascismo! Ditadura nunca mais!
Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo