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Mais do que uma utopia, a Tarifa Zero é possível sim, tanto que hoje no Brasil 67 cidades conseguiram implementar a gratuidade em todo o seu sistema os sete dias da semana

Destaque para três cidades que romperam com o paradigma vigente nos sistemas públicos de transporte: Maricá (RJ), Vargem Grande Paulista (SP) e Caucaia (CE). Foto: Divulgação

O que é mais importante do que se locomover em uma cidade? Não existe uma resposta correta para essa pergunta, porém, em que se pese a importância da saúde, educação, emprego e etc., transporte e mobilidade são as políticas públicas matriciais que garantem o acesso das pessoas aos espaços e direitos sociais.

Em um país marcado pela desigualdade como o Brasil, essa pergunta deve se desdobrar em outros questionamentos como: quanto custa ter acesso à malha de serviços públicos e privados disponíveis em uma localidade? Quem tem acesso? Quem deve garantir esse acesso?

A Constituição Federal de 1988 traz um rol de direitos sociais que devem ser garantidos pelo poder público como: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte etc. Prevê, inclusive, que se dê por meio de ações positivas, ou seja, que atue diretamente na promoção, implementação e execução de políticas públicas para assegurar tais direitos. Contudo, é possível afirmar que, no que tange à questão do transporte, à oferta de ações por parte da União, estados e municípios estão aquém das necessidades da população.

Por razões financeiras e/ou por falta de oferta de serviço de transporte, essa insuficiência se traduz em dificuldades, ou até mesmo exclusão, de um número significativo de pessoas ter acesso a outros direitos constitucionais.

O ente federativo sobre o qual recai a maior parte da responsabilidade de prover o serviço de transporte urbano e rural é o município. No modelo vigente, cabe aos gestores municipais lidar com os problemas, que vão desde o número insuficiente de veículos e linhas, mau estado de conservação dos veículos, má qualidade das vias até, em casos mais grave, a ausência da prestação de serviço, especialmente nas localidades mais afastadas dos grandes centros, normalmente ocupadas por famílias de baixa renda.

Um olhar mais atento sobre o tema, nos permite identificar a ocorrência de um ciclo vicioso. A baixa qualidade do serviço em relação ao custo, acaba por afastar usuários do sistema, o que diminui a arrecadação no sistema. Por sua vez, a arrecadação baixa exerce pressão por aumento tarifário para cobrir os custos. As tarifas mais altas afastam os passageiros que, aqueles que podem, optam pelo transporte individual, ou exclui de fato aquelas pessoas que não podem suportar o custo, agravando ainda mais a situação.

Pandemia e eleições 

A apresentação do cenário acima é o estado da arte do transporte público na maioria das grandes cidades, pelo menos desde o início dos anos 2000, em especial de 2016 para cá. A partir do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, o país foi tomado de assalto por pessoas que impuseram ao Brasil um arrocho econômico que resultou na alta do desemprego e depressão da renda.

Somam-se a isso, dois acontecimentos recentes que trouxeram para o centro do debate público questionamentos sobre o sistemas de transporte coletivo no Brasil: a pandemia de Covid-19 em 2020 e as eleições 2022. Enquanto o primeiro expôs a falência do modelo de financiamento praticado na maioria dos municípios, o segundo nos fez refletir o quanto a tarifa cara e a falta de oferta de transporte impede milhões de pessoas terem acesso a direitos básicos.

A crise sanitária decorrente da Covid-19 provocou o lockdown, diminuindo drasticamente a circulação das pessoas pelas ruas, em especial através do transporte público. De acordo com um estudo apresentado em 2022 pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU), entre 2019 (pré-pandemia) e 2021, o sistema público de transporte teve uma queda de demanda de passageiros pagantes de 32,6%. Isso significa que aproximadamente 11 milhões de passageiros por dia deixaram de se deslocar de ônibus em todo o país. O anuário publicado pela entidade também aponta que a demanda se estabilizou em 70% da apresentada em 2019, indicando um encolhimento estrutural do setor.

Como historicamente os usuários são os principais financiadores dos sistemas de transporte, essa queda de passageiros tem de ser compensada com mais aporte financeiro das prefeituras para subsidiar às empresas de ônibus, diminuindo o impacto do custo real do transporte para quem paga a tarifa. Na cidade de São Paulo, por exemplo, cujo preço da passagem aos usuários é R$ 4,40, os cofres municipais gastam mais de R$ 3,3 bilhões anuais, para custear quase metade do valor real da tarifa; as transferências gratuitas previstas pelo Bilhete Único; e passe livre para idosos e estudantes, entre outros. Apesar do subsídio, o temor do ajuste do valor da passagem é uma questão presente no cotidiano paulistano.

Ainda na pandemia, o governo federal garantiu um aporte financeiro a muitos municípios para que os sistemas não entrassem em colapso, porém sem nenhuma espécie de contrapartida que trouxesse algum benefício aos passageiros, como redução de tarifa ou até mesmo manutenção dos preços. Ou seja, foi uma ação paliativa, focalizada majoritariamente nas empresas de ônibus.

Em 2022, já perto do encerramento do processo eleitoral, o Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 20 de outubro, permitiu que prefeituras e empresas de ônibus oferecessem transporte público gratuito, e no dia 22, o ministro Luís Roberto Barroso estendeu a permissão aos estados também. A justificativa para tal ação era incentivar o comparecimento de eleitores, sem nenhuma espécie de barreira econômica para fazer sua escolha nas urnas. De pronto, muitos prefeitos não quiseram se comprometer com a gratuidade, mas a pressão de pessoas e movimentos sociais pelo exercício efetivo da democracia fez com que os ônibus estivessem liberados sem tarifa no dia da eleição em todas as capitais e Distrito Federal e quinze estados.

De acordo com levantamento realizado pela Campanha Passe Livre Pela Democracia organizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pelo movimento TarifaZero BH, divulgado em 30 de outubro, 378 cidades disponibilizaram transporte público gratuito no segundo turno das eleições. A estimativa é de que 100 milhões de pessoas foram atendidas pela tarifa zero no dia das eleições.

A tarifa do transporte público é um assunto recorrente no debate público, em especial nos momentos de reajuste, causando grande agitação social, mas a gratuidade universal desse direito geralmente ficava restrita a demandas de grupos específicos, em especial estudantes. Porém, os episódios acima ampliaram a abrangência do debate sobre a Tarifa Zero, passando inclusive a ser objeto de atenção de diversos políticos.

Tarifa zero é possível

Durante a pandemia, enquanto candidato a prefeito da capital paulista pelo PT, apresentei a proposta de Tarifa Zero. De forma resumida, a ideia consistia em implantar a gratuidade de forma progressiva, priorizando grupos de interesse, como desempregados, estudantes, idosos, gestantes etc.; depois as linhas noturnas; finais de semana; após 4 anos, chegaria na tarifa zero para todo o sistema.

A equipe responsável pelo plano de governo do PT fez todos os cálculos necessários e propostas de ações para a gestão do sistema, com ganho de eficiência, previsibilidade e, principalmente, transparência e controle sobre os contratos. O plano também trazia fontes de receitas alternativas para subsidiar o benefício.

No processo eleitoral de 2022, em que concorri à vaga de deputado federal, levantei a mesma bandeira, com o objetivo de criar condições legais para a implementação da gratuidade universal em todo o Brasil. Uma vez eleito, apresentei a proposta à equipe de transição do Grupo de Trabalho Cidades, do qual fiz parte. Mas para isso, precisamos pensar para além das amarras das instituições formais e informais que regem a política de transporte na maioria do país.

Mais do que uma utopia, a Tarifa Zero é possível sim, tanto que hoje no Brasil 67 cidades conseguiram implementar a gratuidade em todo o seu sistema os sete dias da semana. Segundo dados da NTU, mais sete municípios adotam a política de forma parcial: em dias específicos da semana, em parte do sistema ou apenas para um grupo limitado de usuários.

Essas cidades romperam com o paradigma vigente nos sistemas públicos de transporte, e adotaram tarifa zero. Destaco três: Maricá (RJ), Vargem Grande Paulista (SP) e Caucaia (CE).

Com uma população de 167 mil habitantes, Maricá implantou e tarifa zero em 2014, na gestão de Washington Quaquá (PT), utilizando parte dos royalties do petróleo para garantir transporte público de graça. Inicialmente, através da EPT, uma autarquia, operava um número limitado de ônibus gratuitos em paralelo às linhas pagas, operadas por duas empresas privadas. Somente em março de 2021, a EPT começou a operar todas as linhas do município.

Atualmente, o sistema de Maricá conta com 120 ônibus e atende a 3,5 milhões de passageiros por mês, com custos mensais de operação em torno de R$12 milhões. Esse sistema teve um impacto econômico significativo, com as famílias economizando R$ 160 milhões em despesas de transporte em 2022, que é injetado diretamente na economia da cidade.

Josué Ramos (PL), prefeito de Vargem Grande Paulista, implantou a tarifa zero em 2019, devido à necessidade crescente de subsídios para o transporte público local. Ele estudou exemplos internacionais, como Luxemburgo, e nacionais, como Maricá e Agudos, para desenvolver um modelo de financiamento baseado em um fundo de transporte.

Esse fundo é composto principalmente por uma taxa paga pelas empresas locais em substituição ao vale-transporte dos funcionários (R$ 39,20 mensais por cada funcionário), além de receitas provenientes de publicidade nos ônibus, aluguel de lojas nos terminais e 30% das receitas provenientes das multas de trânsito.

Caucaia, o segundo município mais populoso do Ceará, iniciou sua política de tarifa zero após a queda de passageiros durante a pandemia. Através de uma criteriosa revisão de contratos, o prefeito Vitor Valim (eleito pelo PROS, atualmente sem partido) decidiu implementar a tarifa zero com recursos do orçamento municipal.

O programa, chamado de “Bora de Graça”, consome cerca de 3% do orçamento e remunera a empresa prestadora do serviço por quilômetro rodado. A iniciativa foi bem-sucedida e tem planos de ser estendida para toda a região metropolitana. O governador eleito Elmano de Freitas (PT) prometeu a gratuidade do transporte intermunicipal metropolitano, além de um projeto sobre o tema também tramitar na Assembleia Legislativa do Ceará.

Nas duas ocasiões em que fui secretário Municipal de Transportes de São Paulo, nos governos de Marta Suplicy e Fernando Haddad, coordenei a implantação de políticas que garantiram tarifa zero para grupos específicos como idosos e estudantes, além do Bilhete Único que permite a integração gratuita entre linhas, durante um período de quatro horas ao custo de apenas uma passagem. Exemplos como da capital paulista nos mostram que é possível conceber de forma gradual uma política que resulte na gratuidade universal.

Como implantar?

Como demonstrado no exemplo acima, cada cidade optou por um modelo de financiamento. Como toda política pública, ela precisa ser desenhada de forma a respeitar as características locais. São Paulo, a maior cidade do país, também está debatendo a Tarifa Zero neste momento. Com um grau de complexidade único, possivelmente quem for implementar essa política terá de lançar mão de um leque de estratégias para garantir o benefício.

Enquanto deputado federal, tenho feito minha parte de propor legislações que facilite o processo para os municípios. Apresentei o Projeto de Lei 1280/2023, que institui o Programa Tarifa Zero, autorizando os municípios a ofertar transporte público gratuito, condicionando a criação de um fundo específico composto com recursos provenientes do vale transporte pago por empregadores, tanto empresas quanto pessoas físicas.

Também apresentei o Projeto de Lei 1743/2022 que institui o Programa de Mobilidade Urbana Sustentável. A proposta visa incentivar a aquisição de ônibus elétricos e/ou híbridos por parte dos municípios, vinculando também a um programa de redução de tarifa ou gratuidade da tarifa.

Isso é apenas o começo. A Tarifa Zero é uma ideia que chegou para ficar e cada vez irá ganhar mais corpo e mais propostas serão construídas, à medida que a sociedade passe a defender e apresentar cálculos de como chegar nesse destino.

As pessoas que são contra apelam para argumentos relativos ao custo, olhando para o cenário atual. Sem qualquer capacidade de abstração, acham que uma política dessas será implantada em uma canetada, e ignoram que esse será um processo construído a muitas mentes e mãos.

Para isso, é fundamental que o Ministério das Cidades coordene as três esferas de governo (União, estados e municípios), parlamentares, representantes de movimentos sociais e empresários do setor se sentem na mesa de negociação, para a construção de uma política de Tarifa Zero que garanta qualidade e previsibilidade, projetando um futuro em que todas as pessoas tenham de fato o direito tão básico de ir e vir.

Jilmar Tatto é professor de História, mestre em Ciências pela Poli-USP, secretário Nacional de Comunicação do PT, eleito deputado federal por São Paulo em 2022