Cultura

Os impactos da economia da cultura ultrapassam, em muito, a economia. Eles abarcam diferentes dimensões, a exemplo da vida democrática, da política, do meio ambiente etc.

As atividades culturais e criativas empregam cerca de 7,5 milhões de pessoas (7% do total da economia brasileira), possuem 130 mil empresas no país (3,25% do total) e produzem em torno de 3% do PIB brasileiro. Foto: Divulgação

O artigo “Economia da cultura, grandeza e complexidade”, publicado no Le Monde Diplomatique - Brasil, assinado por Juca Ferreira, agora no BNDES, traz estimulantes reflexões ao debate sobre as interfaces entre cultura, economia e desenvolvimento. Elas reativam interessantes atuações passadas do banco, quando dirigido por alguns nomes instigantes, como Carlos Lessa. Em tais instantes, o tema da cultura transitou de modo bem acolhido em iniciativas do BNDES.

Sem recorrer às noções ônibus, porque superlotadas de sentidos, de economia e indústria criativa, segundo o autor popularizadas sem “muito rigor conceitual”, o artigo reconhece a grandeza da economia da cultura no país, citando alguns dados disponíveis, ainda que se saiba que eles estão muito aquém da necessidade para desvelar as ricas conexões existentes entre cultura, economia e desenvolvimento. Certos dados devem ser agora relembrados: as atividades culturais e criativas empregam cerca de 7,5 milhões de pessoas (7% do total da economia brasileira), possuem 130 mil empresas no país (3,25% do total) e produzem em torno de 3% do PIB brasileiro. Estes e outros dados, além de servirem para afirmar a grandeza da economia da cultura no país, apontam, de modo perspicaz, a complexidade da temática analisada.

O artigo busca se afastar, de maneira explícita e correta, de uma visão economicista da economia da cultura, reconhecendo que ela “tem singularidades e especificidades, que não permitem o mesmo tratamento dado à economia em geral e nem mesmo é recomendável a sua redução aos padrões de análise e formulação típicos das economias convencionais”. Como bem havia lembrado o amplo debate realizado internacionalmente em torno da exceção cultural e depois da diversidade cultural, a cultura não pode ser encarada como uma mercadoria qualquer, pois ela possui dimensão simbólica fundamental para a configuração de identidades e diversidades em variadas modalidades, inclusive nacionais.

O argumento, muitas vezes acionado, de que a cultura é importante porque produz emprego e renda deve ser observado com certo cuidado. Ao se afirmar a justa importância econômica da cultura, se abre um flanco perigoso com tal argumentação restrita, pois se justifica a cultura tão somente por seu papel econômico, sem dúvida precioso na contemporaneidade, mas que esquece as outras dinâmicas constitutivas e peculiares à cultura, que nunca podem ser olvidadas para sua completa caracterização e da elucidar sua relação com o desenvolvimento. A redução da cultura ao econômico nada mais é que o retorno da velha concepção economicista de mundo, a qual só dá valor ao econômico e despreza toda a rica complexidade da sociedade, da cultura e da vida. Os valores incluem os econômicos, mas eles se situam além deles. O texto é exemplar ao se distanciar da visão economicista.

Nesse horizonte, como bem assinala o artigo, os impactos da economia da cultura ultrapassam, em muito, a economia. Eles abarcam diferentes dimensões, a exemplo da vida democrática, da política, da qualidade das interações sociais, do meio ambiente, da educação, da saúde, do turismo, da ciência e tecnologia, das relações internacionais, do desempenho profissional, da convivência em sociedade, da qualidade de vida etc. O texto não incorre no equívoco de “certa idealização desta economia”, ao acreditar que tais impactos são necessariamente e sempre positivos. A economia da cultura não pode ser concebida como algo “benigno”, “sem as imperfeições e problemas típicos do capitalismo”. Daí resulta a exigência de acentuada postura crítica e, mais que isso, de acionamento e criação de alternativas econômicas, lastreadas na economia solidária, no movimento cooperativista, na economia estatal etc. A constatação, atenta no texto, de que o neoliberalismo não é só economia, mas igualmente um modo de conceber e mesmo estruturar a sociedade, portanto ideologia, reforça a necessidade de alternativas e de enfatizar a relevância do papel do estado democrático, como inclusive indutor, no efetivo desenvolvimento da sociedade, por meio de políticas públicas de cultura.

Para incorporar a cultura “como parte do projeto de nação” é preciso afirmar que o desenvolvimento possui múltiplas interfaces constitutivas, essenciais para a superação da perigosa economia primária dependente apenas de commodites agrícolas e minerais. Para adiante da sempre assinalada aproximação com a economia, hoje parece evidente que o desenvolvimento mobiliza uma dimensão social. Afinal, o IDH como índice de medida do desenvolvimento humano confirma tal constatação. A incorporação das políticas sociais, inclusive no Brasil com seus avanços e retrocessos, como componente do desenvolvimento reforça ainda mais a concepção. Lutas e crises recentes apontam o meio ambiente como instante imprescindível de qualquer visão mais contemporânea de desenvolvimento. Igualmente a política deve ser incorporada ao horizonte do desenvolvimento, pois o governo, a vida democrática e a civilidade não podem ser desconsideradas como dados vitais para um país ser tido como desenvolvido. Resta a dimensão cultural. Aqui cabe proclamar com grito vigoroso, que sem cultura não há desenvolvimento, nem individual, nem coletivo.

A cultura emerge como condição para o desenvolvimento de pessoas e de sociedades. O desenvolvimento cultural produz aprimoramento coletivo e aperfeiçoamento individual, em termos de autoestimas, identidades, diversidades, empoderamentos, organizações, mobilizações, cidadanias e crescimentos intelectuais, emotivos, afetivos e sociais. Diferente da biodiversidade, que busca com fervor a preservação da natureza, o desenvolvimento cultural, tanto preserva, quanto promove a diversidade da cultura. Aliás, a riqueza da cultura no mundo contemporâneo, atravessado por amplos processos de glocalização, depende do repertório da diversidade cultural existente em cada lugar do planeta.

O campo da cultura e a sociedade não podem mais aceitar uma mentalidade reducionista de desenvolvimento, que equipara, sem mais, desenvolvimento e economia. Para uma concepção efetivamente afinada com o mundo contemporâneo e suas exigências, é vital reivindicar que o desenvolvimento deve ser articulado e integral, envolvendo dimensões econômicas, sociais, ambientais, políticas e culturais. Cabe ao campo cultural e aos segmentos democráticos da sociedade insistir, sem concessões, sempre na modalidade complexa de conceber o desenvolvimento. Só ele, em sua complexidade, permite a construção do novo Brasil.

A inserção do país no mundo, indispensável ao desenvolvimento nacional, tem na cultura um componente genuíno e potente. Em tempos de emergência da chamada diplomacia cultural, o país não pode se dar ao luxo de desperdiçar tal diferencial cultural. As conexões latino-americanas, ibero-americanas, afro-americanos e com países lusófonos, da África, do ocidente e oriente, além dos organismos multinacionais, como Mercosul, Unasul, CPLP e Brics, podem ser bastante azeitadas, por meio de um intenso intercâmbio cultural. A superação do traumático complexo de vira-lata frente ao mundo e, em especial, a deificação do primeiro mundo, que contamina nossas elites, tem na cultura brasileira e sua repercussão internacional um fator fundamental para sua transformação.

A compreensão contemporânea do desenvolvimento como integrado e com dimensões articuladas exige um trabalho transversal do campo cultural e de seu ministério. Eles devem ser capazes de dialogar e propor parcerias com as mais diversas áreas da sociedade, do governo e de outros países. A transversalidade possível da cultura é chave para sua participação em um novo projeto nacional, inclusive em posição com certa centralidade, deixado o lugar periférico em que quase sempre se localiza em tais projetos estratégicos. O recurso à transversalidade não só integra a cultura em interfaces com diferentes áreas e territórios, mas pretende mobilizar amplamente a comunidade cultural: fazedores de cultura, artistas, intelectuais, mestres populares, produtores, gestores, curadores, pesquisadores, críticos culturais, estudiosos, professores, técnicos, agentes, instituições, entidades, organizações, empresas, amadores da cultura etc.

Fundamental que um organismo nuclear do desenvolvimento brasileiro, como é o BNDES, possua agora uma visão complexa, delicada e singular da cultura, que a encare como um eixo potente de desenvolvimento para o país, sem desconhecer tal potencial, nem incorrer em reduções economicistas nas conexões entre cultura e desenvolvimento. As formulações explicitadas trazem esperança de uma nova e criativa conexão entre cultura e desenvolvimento no Brasil, que permita pôr em realce toda a potência da cultura brasileira para o desenvolvimento nacional.

Antonio Albino Canelas Rubim é é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)