Política

Não podemos ficar só no revoga ou não revoga o “novo ensino médio”, se não atacarmos as raízes dos problemas da educação brasileira

A prática da Gestão Democrática nas Escolas e Universidades Públicas deve ser fundamentada na universalidade do acesso, em decisões coletivas nas escolas/universidades e no sistema de ensino e na profissionalização de todos os/as educadores/as. Foto: Agência Brasil

A Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, editada pelo governo golpista de Michel Temer, instituiu o Novo Ensino Médio como uma das primeiras medidas de sua gestão, com o nome pomposo de “política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral”. Essa proposta de reforma do Ensino Médio foi um verdadeiro desmonte de um conjunto enorme de legislação no país, alterando principalmente a LDB (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), o Fundeb (Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007) e a própria CLT (aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943). Esta medida provisória, de forma intempestiva e solenemente imposta de cima para baixo, interrompeu o processo democrático de debate que o conjunto do movimento educacional brasileiro já vinha fazendo no Congresso Nacional. Todo o acúmulo sobre o modelo de ensino médio que as juventudes e os/as profissionais da educação desejam para o Brasil foi cruelmente desprezado.

A política educacional na concepção do capital humano, de caráter gerencial, com base nos resultados apenas das provas de matemática e língua portuguesa, e com foco exclusivo nos resultados das notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), além do programa de escolas em tempo integral para o ensino médio, características que marcam essa atual lei do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017), é aplicada no estado de Pernambuco desde o ano de 2005. À época, o ex-ministro golpista da educação do governo Temer, Mendonça Filho, era vice-governador de Pernambuco, e coordenou a entrega da gestão da escola pública estadual Ginásio Pernambucano a uma organização social privada, denominada Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE). Criada por Marcos Antônio Magalhães, engenheiro elétrico formado pela Universidade Federal de Pernambuco, com Pós-Graduação em Telecomunicações em Eindhoven (Holanda), ele desenvolveu a sua carreira profissional na Royal Philips Electronics, quando ingressou na empresa em 1971. Em 1997, Marcos Antônio assumiu a Presidência Executiva da Philips na América Latina. Dez anos mais tarde, em 2007, ele assume a Presidência do Conselho Consultivo da Philips na América Latina, terminando seu mandato em 2009. No intervalo dessa sua carreira na Philips, em 2003, ele funda o ICE, onde permanece até os dias de hoje como presidente. Ele também exerce a presidência do Instituto de Qualidade no Ensino (IQE) e é membro fundador do Movimento “Todos pela Educação”, além de também acumular a participação no Conselho Internacional do World Fund for Education.

No site do ICE (icebrasil.org.br), encontramos na história contada pelos empresários que exemplifica bem o projeto para a experiência precursora de Pernambuco e, de uma forma geral, de sua proposta nacional para a educação: “O Ginásio Pernambucano foi o ponto de partida da Causa da Juventude com a concepção de um Modelo de educação inovador denominado Escola da Escolha e cujo foco é o Jovem e a construção do seu Projeto de Vida. Após o desenvolvimento do Modelo e da consolidação da política pública em Pernambuco, o ICE iniciou a sua expansão junto às secretarias de educação estaduais e municipais nas cinco regiões brasileiras e continua com intenso trabalho de mobilização para a realização da sua Visão. Hoje a Escola da Escolha atende o Ensino Médio e o Ensino Fundamental.”

A lei do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) determina “adotar um trabalho voltado para a construção de projeto de vida para os estudantes”. Em seu artigo 13, é indicado expressamente que “Fica instituída, no âmbito do Ministério da Educação, a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”. Quero chamar atenção aqui da frase: “a construção do projeto de vida” e da política de Escola em Tempo Integral no Ensino Médio, que constavam nas ações de 2005, quando o Ginásio Pernambuco foi entregue ao ICE, e que, da mesma forma, estão na atual legislação golpista em vigor, a Lei nº 13.415/2017 (Novo Ensino Médio).

Desde 2005 já são 18 anos de aplicação dessas medidas, com base na Teoria do Capital Humano, capitaneada pelo terceiro setor empresarial, entre eles, o ICE, o Todos pela Educação e a Fundação Lemann, que atuaram fortemente pela aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Conselho Nacional de Educação (CNE/MEC), além do Instituto Airton Senna e tantos outros. Com base nestas políticas restritivas e que promovem desigualdades educacionais e sociais, este terceiro setor empresarial, junto com governantes mal intencionados, fazem muitas propagandas dos estados e municípios que melhoram seu Ideb. É bom lembrar que os indicadores do Ideb são as provas de matemática e português e o índice de aprovação nas escolas. Indicadores fáceis de serem manipulados por governantes que desejam ser os primeiros colocados no Ideb para utilizar como propaganda eleitoral. E é dessa forma que ouvimos e lemos em todos os lugares estas pessoas dizerem que o Estado de Pernambuco tem o melhor ensino médio do país, saiu do 21º lugar no Ideb, em 2006, para o primeiro lugar em 2015, e serve de referência para o Brasil. Será mesmo?

A escola pública estadual Ginásio Pernambuco, que ofertava os ensinos fundamental e médio, foi a experiência de um modelo que inspirou a concepção posta na lei golpista 13.415/2017. Tinha 2.200 estudantes matriculados e após a entrega à organização social privada ICE, para se tornar em tempo integral, só comportava 300 estudantes. Em 2022, Pernambuco registrou 62,5% de matrículas em tempo integral no ensino médio. Penso que seja importante resgatar que em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu artigo 34, diz que “a jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola”. No paragrafo 2º deste artigo é determinado que “o ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino”. Pernambuco só possui 7,8% das matrículas em tempo integral no ensino fundamental. Por que o estado de Pernambuco não cumpriu o artigo 34 da LDB, mas investiu em escolas de tempo integral no ensino médio?

Este investimento em tempo integral no ensino médio, sem a correspondente política em tempo integral para o ensino fundamental, mostra que não há uma proposta séria para garantir uma base sólida na formação dos/as nossos/as estudantes. A política educacional de focar o tempo integral no ensino médio promoveu uma redução no número de escolas e de matrículas na rede estadual de ensino. Em 2005, a rede estadual de ensino de Pernambuco tinha 1.107 escolas e 948 mil matrículas. Dezessete anos depois, mesmo com o crescimento populacional, a rede estadual de ensino fechou o ano de 2022 com 1.059 escolas e apenas 534 mil matrículas, sendo 341 mil no ensino médio. Segundo informação do Durval Paulo, assessor pedagógico da Secretaria Executiva de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco, em um debate na rádio Jornal/PE, no dia 20 de março de 2023, este ano são somente 301 mil matrículas no ensino médio em Pernambuco.

O percentual de jovens analfabetos no estado de Pernambuco, com 15 anos ou mais de idade, era de 11,9% em 2018, o que significava 911.690 pessoas sem acesso a leitura e a escrita (IBGE, 2019). No ano 2019, Pernambuco era o terceiro estado do país com mais jovens de 15 a 17 anos de idade fora da escola (15,4% da população nesta faixa etária), segundo dados do Censo Escolar do IBGE de 2020.

Em 2021, em Pernambuco, mais de 800 mil jovens de 15 a 29 anos de idade não estudavam e nem trabalhavam (34,5% da população nesta faixa etária). Neste mesmo ano, dos/as jovens de 15 aos 19 anos de idade, mais de 261 mil não frequentavam a escola (IBGE, 2022).

A situação educacional do povo pernambucano é dramática: 3.441.463 pessoas (56,4% da população do Estado), com 25 anos ou mais de idade, não concluíram a educação básica (IBGE, 2022). Infelizmente, é bom lembrar que uma pessoa hoje com 25 anos de idade, em 2005, tinha oito anos de idade. Muitos e muitas não tiveram acesso ou, de alguma forma, foram expulsos/as das escolas.

O que fazer? Como fazer para que essas situações exemplificadas aqui não se espalhem por todo o Brasil?

Sobre o que fazer, nós da Confederação Nacional dos/as Trabalhadores/as da Educação Básica Pública (CNTE) e de outras tantas entidades do movimento educacional brasileiro, entendemos e defendemos que é preciso revogar a Lei golpista nº 13.415/2017, que tem como base uma concepção gerencialista da educação, com foco nos resultados e que estimula a competição entre as escolas, entre os municípios e entre os Estados, provocando tratamento desigual aos nossos jovens. E isto deve ser feito através do envio de um projeto de lei que reoriente a estrutura do ensino médio em nosso país, com base em uma concepção de educação que efetive a participação social, com foco na formação integral dos/as estudantes e que estimule a prática permanente da solidariedade dentro e fora da escola. Nosso modelo de educação deve buscar atender as demandas das juventudes ao acesso, à permanência e a conclusão dos estudos na educação básica, em condições de exercer plenamente sua cidadania e preparadas para ingressar no mundo trabalho e, se desejar, continuar seus estudos no ensino superior.

Entendo que o espaço adequado para fazer o debate sobre o diagnóstico e avaliação da Lei nº 13.415/2017, bem como a elaboração de uma nova proposta de projeto de lei para o ensino médio, deve ser feito dentro do Fórum Nacional de Educação (FNE), que tem a participação de todos os segmentos e setores que atuam na implementação da educação pública e privada no país. Na composição do FNE temos os/as estudantes (UBES e UNE), trabalhadores/as em educação (CNTE, Contee, Proifes, Fasubra), pais, mães e responsáveis pelos estudantes (Confenapai), dirigentes educacionais (MEC, Consed, Undime, Conif, Andifes, Forundir, Confenem), conselheiros/as de educação (UNCME, Foncede, CNE), pesquisadores/as (SBPC, Anped, Anpae, Anfope, Cedes), as Secretarias do MEC (SEA, Sase, SEB, Sesu, Seres, Setec, Secadi, Capes, Inep),  as comissões de Educação da Câmara dos/as Deputados/as e do Senado Federal, a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, Movimento Inter Fóruns da Educação Infantil do Brasil (Mieib), Fóruns de Educação de Jovens e Adultos do Brasil (Feja), Associações de Educação e Universidades (Abruc, Anec, ABMES), movimento do campo (Contag, MST), comissão técnica nacional de diversidade para assuntos relacionados à educação dos Afro-Brasileiros (Cadara), centro de estudos das relações do trabalho e desigualdade (Ceert), associação brasileira de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos (ABGLT), união brasileira de mulheres (UBM), movimentos em defesa da educação (CNDE, TPE), centrais sindicais (CUT, UGT) e confederações empresariais (CNC, CNI). Este é o locus fundamental da consulta, do debate e da elaboração das políticas educacionais para o nosso país.

Com base nos indicadores apresentados pelo Professor João Monlevade, no seu boletim Pró-Notícia nº 318, de 11 de abril de 2023, ele considera que a prática da Gestão Democrática nas Escolas e Universidades Públicas deve ser fundamentada em três indicadores: a universalidade do acesso, as decisões coletivas nas escolas/universidades e no sistema de ensino e a profissionalização de todos os/as educadores/as. Trago estas referências porque não podemos ficar só no revoga ou não revoga o “novo ensino médio”. Se não atacarmos as raízes dos problemas da educação brasileira, vamos continuar no mesmo lugar e na mesma situação.

Heleno Araújo é professor da educação básica no estado de Pernambuco, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), coordenador do Fórum Nacional de Educação (FNE) e membro da Coordenação do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE)