Mundo do Trabalho

Os impactos no mundo do trabalho com a aprovação do projeto de lei de igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens, no exercício de funções idênticas

Deputadas celebram aprovação na Câmara da proposta que estabelece igualdade salarial entre mulheres e homens. Foto: Arquivo/Psol

A iniciativa do governo Lula já nos primeiros três meses de seu terceiro mandato ao anunciar o projeto de lei de igualdade salarial e remuneratória para mulheres e homens, no exercício da mesma função ou funções idênticas, gerou fortes reações na sociedade. As manifestações contrárias focavam na ideia de que o trabalho das mulheres é menos produtivo, elas geram mais custos e acreditam que pagar salários iguais pode provocar a dissolução dos seus negócios. Um segmento mais conservador via nessa iniciativa o fim dos empregos para as mulheres, tratava-se de uma ousadia das mulheres reivindicarem salários iguais e tentar se igualar aos homens.

Contudo, amplos segmentos da sociedade reconheceram nessa iniciativa o sentido e a importância de enfrentar a secular divisão sexual e racial do trabalho e com a aprovação da lei se conquista mais um instrumento poderoso que contribuirá para confrontar as profundas desigualdades em nossa sociedade. Para além do significado político visto que se trata de uma luta histórica das trabalhadoras, a iniciativa revelou também as fortes raízes patriarcais e racistas em nossa sociedade e o poder discricionário das empresas em determinar a remuneração da força de trabalho a despeito da existência de farta legislação que assegura direitos iguais.

O projeto de lei1 exige das empresas a publicação de relatórios semestrais contendo funções, salários e verbas remuneratórias para mulheres e homens e estabelece multa correspondente a dez vezes o valor do salário devido pelo empregador para assegurar o cumprimento da lei elevado ao dobro em caso de reincidência, o projeto se aplica as empresas da iniciativa privada e a partir de 100 trabalhadores/as.  Em torno de 51% das mulheres em empregos formais estão inseridas em estabelecimentos com 100 ou mais trabalhadores/as.

A sua implementação, depois de aprovado nas duas casas, depende de regulamentação própria. Considerando o número significativo de estabelecimentos será necessário criar ferramentas eficazes de acompanhamento, que necessariamente exigirá a colaboração de distintas instituições públicas e entidades sindicais.

O projeto inova ao reconhecer a centralidade das políticas públicas e prevê a “divulgação periódica de indicadores sobre mercado de trabalho e renda desagregadas por sexo, inclusive indicadores de violência contra a mulher, de vagas em creches públicas, de acesso à formação técnica e superior e de serviços de saúde, bem como demais dados públicos que impactem o acesso ao emprego e à renda pelas mulheres e possam orientar a elaboração de políticas públicas”2.

O projeto evidentemente se insere em um conjunto de outras ações e políticas que precisam ser implementadas de forma conjunta uma vez que, além das desigualdades salariais entre os sexos e raça para as mesmas funções ou ocupações, as desigualdades também se manifestam pela forma desigual como mulheres e homens se inserem no espaço produtivo, dadas as condições em que se realiza a socialização do trabalho doméstico e de cuidados no âmbito das famílias, assim como a sua inserção se dá em ocupações com forte estereótipo de gênero que segrega mulheres e homens para determinadas funções ou ocupações, ou seja, como se personifica no cotidiano a divisão sexual do trabalho.

Os salários são, ao mesmo tempo, a remuneração pela venda de um fator de produção, mas também os meios pelos quais as pessoas são capazes de se sustentar e sustentar suas famílias. Os salários também fazem parte do processo pelo qual as identidades sociais são construídas e reproduzidas. Os dados do IBGE apontam que, atualmente, mais de 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefes de família. Ou seja, como as principais responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos. O número tende a aumentar ainda mais quando se observa os 20,65 milhões de lares de baixa renda no país, dos quais 81,6% são chefiados por mulheres.

Portanto, as desproporções salariais favorecem a pobreza, a vulnerabilidade e as desigualdades sociais, reduz a capacidade de consumo das famílias mais pobres e desestimula a busca por empregos mais protegidos e com direitos.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define igualdade salarial como sendo salário igual para realizar um trabalho igual ou similar, ou um trabalho completamente diferente, mas, com base em critérios objetivos, de igual valor. Esse reconhecimento sobre a igualdade de remuneração para o mesmo tipo de trabalho ou trabalho de igual valor está presente em duas convenções internacionais: a Convenção n. 100 de 1951 e a Convenção n. 111 de 1958, ambas ratificadas pelo Brasil.

Embora ratificadas e incorporadas nas normas constitucionais do Brasil, como a Constituição Federal, a CLT e na maior parte dos instrumentos normativos (acordos e convenções coletivas de trabalho), entretanto, não há mecanismos efetivos que possam avaliar a sua eficácia.

Identificar a existência de discriminação com base no trabalho de igual valor, conforme está previsto na convenção n.100 da OIT, é bastante complexo, uma vez que abrange não só os casos em que ambos os sexos executam trabalhos iguais ou similares, mas também a situação mais frequente em que, embora realizem trabalhos diferentes, ou com conteúdo diferente, envolvendo diferentes responsabilidades, competências ou qualificações, realizados em condições diferentes, são trabalhos de igual valor.

A dificuldade de compreensão sobre a diferença entre os conceitos de salário igual por trabalho igual ou similar e de salário igual para trabalho de igual valor; assim como a falta de nitidez sobre os elementos da remuneração que se considera para a sua avaliação; e a metodologia que se pode utilizar para avaliar objetivamente os postos de trabalho são importantes fatores que contribuem para a manutenção das desigualdades salariais. Nesse sentido, a forma como se valoriza o emprego reflete concepções históricas de valor, incluindo os diferentes valores atribuídos a diferentes tipos de trabalho.

E são precisamente as mulheres que vivenciam no seu cotidiano a falta de reconhecimento social e monetário do seu trabalho muitas vezes visto apenas como uma extensão do trabalho reprodutivo. Neste sentido, o projeto se propõe a criar mecanismos que efetivamente possam captar as diferenças salariais motivadas exclusivamente pela pratica de discriminação, envolver as entidades sindicais e os sistemas de fiscalização é fundamental para assegurar efetivamente que a Lei possa ser eficiente no combate às desigualdades.

As justificativas mais frequentes que reforçam a desigualdade salarial estão respaldadas em argumentos sobre os custos maiores para contratação de mulheres. Essas teses opõem o trabalho remunerado às tarefas de cuidado, com alegações que se concentram no papel das mulheres na família. Entretanto, raramente se faz referência ao salário das mulheres com o mesmo sentido que é atribuído aos homens, como o sustento da família. É como se a sociedade estivesse organizada a partir das famílias com uma mulher sempre disponível para os cuidados.

É certo que essa realidade pouco se alterou mesmo com a elevação da escolaridade das mulheres e a sua forte presença na chefia dos domicílios. Os dados mais gerais de desigualdades salariais revelam que, em média, no 4ºT de 2022, conforme os dados da PNADC, as mulheres recebiam o correspondente a 78% dos rendimentos médios masculinos e as mulheres negras auferiam, em média, 46% dos rendimentos médios dos homens brancos. Neste caso, no entanto, por serem dados agregados, a conclusão a que se pode chegar é que as mulheres estão concentradas nas atividades profissionais ou ocupações de menor remuneração.

Somente a análise desagregada por ocupações e atividades econômicas permitirá entender melhor essa diferença, bem como a distribuição ocupacional por sexo. Contudo, parte das disparidades salariais entre mulheres e homens são determinadas por práticas salariais internas às empresas que se ocultam sob o manto da produtividade, da eficiência e da dedicação para justificar condutas discriminatórias e são esses artifícios que se espera coibir.  Já a amplitude da diferença salarial varia de acordo com o setor, a ocupação, a escolaridade e o tempo de serviço, são recursos usados pelas empresas para justificar condutas discriminatórias.

Pode-se indicar duas principais razões que podem ajudar na compreensão de porque as diferenças salariais permanecem como um problema contínuo e que não pode ser solucionado apenas com mudanças de comportamento. Primeiro, porque os esforços de superar as desigualdades salariais ocorrem em ambientes de mudanças na estrutura produtiva e nos processos organizacionais, o que dificulta ainda mais o acesso à igualdade. Ou seja, a persistência da desigualdade não significa que não tenham ocorrido mudanças, mas sim que ela pode ter se reconstituído em uma outra forma. Ela pode ser reinventada em novas formas de desigualdade, em novas formas de emprego não convencional ou em novas atividades em expansão, a exemplo do trabalho parcial, intermitente, temporário e por conta própria.

A segunda razão diz respeito à vontade política em direção à redistribuição, uma vez que a maior presença das mulheres no mercado de trabalho representa uma menor participação dos salários na renda nacional, o que favorece o capital. Além disso, a igualdade de gênero pressupõe compartilhamento de trabalhos de cuidados com os homens e a existência de políticas públicas que libere as mulheres da sobrecarga da reprodução social.

Os dados sobre o trabalho formal no Brasil para 2021 indicavam que as mulheres representam 44,5% dos vínculos formais, quando se exclui a administração pública cai para 40,7% dos vínculos formais. As mulheres recebem, em média, 83,2% da remuneração média masculina e cai para 72,1% na indústria de transformação em que as diferenças salariais são mais acentuadas. Análise para 606 ocupações da RAIS sugerem que em apenas 21 delas a remuneração média das mulheres é superior à masculina, ou seja, 34%. Contudo, em algumas ocupações a remuneração média das mulheres corresponde 36% na comparação com a dos homens. Os dados de escolaridade para a mesma fonte (RAIS, 2021) mostram que 30% das mulheres e 15,5% dos homens possuem nível superior completo, no entanto, as mulheres com nível superior completo recebem, em média, 64,8% dos homens, com mestrado, 68,5%, e com doutorado, 76,5% dos rendimentos masculinos.

As teorias mais conservadoras tendem a considerar a baixa escolaridade, produtividade e a ausência de experiência profissional como os fatores mais relevantes para explicar as diferenças salariais no ambiente de trabalho. No entanto, as estatísticas indicam que as mulheres ocupadas possuem escolaridade mais elevada do que os homens em todas as ocupações. Portanto, é importante destacar que, para os homens, a experiência profissional está associada a uma trajetória profissional sem intercorrências, o que não se sucede com as mulheres, por serem as primeiras a enfrentar o desemprego em tempos de crise, assim como a informalidade em mercados de trabalho pouco estruturados, ou a penalização em decorrência da maternidade.

Marilane Oliveira Teixeira é economista, doutora em desenvolvimento econômico e social, professora e pesquisadora do Cesit-IE da Unicamp, professora colaboradora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais do IFCH e membra da Rede Brasileira de Economia Feminista