Lançamento da Lei Paulo Gustavo, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, em 11 de maio. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Na gestão anticultural de Messias Bolsonaro, paradoxalmente, o campo cultural conquistou três vitórias improváveis e fundamentais: as leis Aldir Blanc I e II e a Lei Paulo Gustavo. Gestão anticultural porque combinava ataques às culturas emancipadoras, às instituições culturais progressistas, aos fazedores de cultura democráticos e buscava incessante impor culturas autoritárias, ainda que não tenha conseguido tal intuito de modo substantivo. Improváveis dada a prevalência de tais atitudes hostis à cultura no poder federal e no cenário dominante da sociedade.
Apesar de tudo e de toda adversidade, os agentes culturais, fragilizados pela perversa conjunção entre pandemia e pandemônio, conformado como estratégia política da gestão Messias Bolsonaro, conseguiram se articular, mobilizar, lutar, sensibilizar o parlamento nacional e obter as expressivas vitórias da conquista das três leis de cultura, duas emergenciais e uma vigente pelo prazo de cinco anos.
As vitórias foram impressionantes não só porque obtidas em um panorama tão hostil, mas igualmente porque além de conquistarem expressivos recursos para a cultura, como nunca tinha acontecidos; mobilizaram e organizaram o campo cultural; bem como colocaram em cena o federalismo cultural, mesmo que transfigurado pelo modo reativo à uma gestão nacional adversária às demandas culturais. De qualquer modo, estados, Distrito Federal e municípios foram convocados a participar da repartição dos recursos das leis e na produção de cultura. O campo cultural sabiamente desconfiava da gestão nacional no uso dos recursos e na sua capacidade de desenvolver manifestações culturais criativas e livres.
Entretanto, tais potencialidades inscritas nas leis, como suas inspirações democráticas e sua afinidade com a diversidade cultural, não se tornam efetivas através da mera execução das leis, mesmo quando eficientes. Caso tais processos de realização se reduzam à execução financeira, por mais que ela seja fundamental, nada garante que os potenciais democráticos, de preservação e promoção da diversidade cultural, de consolidação do federalismo cultural, da mobilização e organização do campo cultural e de fortalecimento da institucionalidade cultural sejam automaticamente alcançados.
Os desafios são bem mais complexos. Um deles, talvez central, é a combinação virtuosa da execução otimizada das leis, em termos da máxima execução orçamentária possível, com uma associação umbilical com as dimensões assinaladas, por meio de políticas culturais inventivas, que mobilizem e promovam tais dimensões. Ou seja, de políticas culturais inovadoras e comprometidas intrinsecamente com o aprimoramento da democracia, da diversidade, do federalismo cultural e da organização e mobilização do campo cultural.
Sem tais conexões imprescindíveis para acionar as potencialidades subjacentes às leis, a janela de oportunidades delas pode se fechar. Sem os avanços necessários, a situação tende a se deteriorar e corroer mesmo os resultados financeiros conseguidos. A janela de oportunidades está aberta agora. O campo cultural e o Ministério de Cultura devem estar atentos aos momentos presentes e seus cruciais desafios.
Para além da mera visão financeira e processual das leis, cabe insistir essenciais, o que está em jogo é a capacidade de associar, em plenitude, a implantação e execução das leis com horizontes vitais das políticas culturais pretendidas. Sem elas, os impasses democráticos da sociedade e das culturas brasileiras não serão enfrentados, equacionados e superados.
Um dos maiores desafios de qualquer gestão cultural qualificada é traduzir políticas culturais, quase sempre formuladas em patamares mais gerais, genéricos e abstratos em programas, projetos, eventos, obras e leis com capacidade de serem efetivas e dar concretude às políticas culturais. Assim, as leis têm que ser assumidas sempre como associadas e comprometidas para que efetivamente possam ser vetores de políticas culturais democráticas.
A questão, que emerge em toda sua complexidade, é como vincular as leis conquistadas como as perspectivas que estão subjacentes, mas não automaticamente coladas a elas: democracia, diversidade, federalismo, mobilização e institucionalidade culturais. A regulamentação das leis pode inscrever alguns destes fatores como intrínsecos à realização efetiva das leis. Mas ela só não basta, pois a questão também não pode ser reduzida a termos legislativos.
Para além das leis e das regulamentações que já inspiram razoáveis trilhas para políticas culturais, é imprescindível que os agentes culturais e o Ministério da Cultura sejam capazes, no processo de implementação das leis, de promover uma atuação político-cultural que discuta, desvele e associe a cada instante leis e políticas culturais. Sem tal conexão cotidiana, as leis podem imaginariamente ganhar autonomia, vida própria e serem reduzidas a meros instrumentos financeiros para desenvolver quaisquer culturas, mesmo aquelas autoritárias, antidemocráticas, contrárias à diversidade cultural, antagônicas ao federalismo cultural etc.
Os agentes culturais e o Ministério da Cultura precisam atuar afinados com tais perspectivas para que todo potencial inscrito nas leis se transforme em realidade. A refundação do Brasil e da cultura brasileira exigem políticas culturais atuantes e claras, sem ambiguidades, em defesa do aprofundamento da democracia, do aprimoramento da cultura, da preservação e da promoção da diversidade cultural, da garantia das liberdades de criação e de expressão, do desenvolvimento do federalismo cultural, com a cooperação entre os entes federativos. Enfim, políticas culturais transversais, que dialoguem com todas as áreas afins da cultura, e coloquem a cultura em posição da maior centralidade do projeto nacional de desenvolvimento.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)